Capitulo II: O que é Evangelizar?

340. Nosso povo clama pela salvação e pela comunhão que o Pai lhe preparou e, no meio de suas lutas por viver e encontrar o sentido profundo da vida, espera de nós, bispos, o anúncio da Boa Nova.

341. O que é pois evangelizar? Quem espera o nosso anúncio de salvação? Qual é a transformação das pessoas e das culturas que a semente do Evangelho tem de fazer germinar? O que é que nos ensina a Igreja sobre a autêntica libertação cristã? Como evangelizar a cultura e a religiosidade de nosso povo? O que diz o Evangelho ao homem que anseia por sua promoção e quer viver seu compromisso político-social?

Propomos agora nossa reflexão sobre estas interrogações.

CONTEÚDO
1. Evangelização: dimensão universal e critérios
2. Evangelização e cultura
3. Evangelização e religiosidade popular
4. Evangelização, libertação e promoção humana
5. Evangelização, ideologias e política


1. EVANGELIZAÇÃO: DIMENSÃO UNIVERSAL E CRITÉRIOS

1.1. Situação

342 Há cinco séculos que estamos evangelizando a América Latina. Hoje vivemos um momento grande e difícil desta evangelização.É verdade que a fé de nossos povos se exprime com evidência.No entanto constatamos que nem sempre ela chega à sua maturidade, e está ameaçada pela pressão secularista, pelos abalos provocados pelas mudanças culturais, pelas ambigüidades teológicas existentes em nosso meio e pelo influxo de seitas proselitistas e de sincretismos que vêm de fora.

Nossa evangelização está marcada por algumas preocupações particulares e por acentos mais fortes:

343 - a redenção integral das culturas, antigas e novas, do nosso Continente tendo em conta a religiosidade de nossos povos;

344 - a promoção da dignidade do homem e a libertação de todas as servidões e idolatrias;

345 - a necessidade de fazer com que a força do Evangelho penetre até ao centro de decisão, "às fontes inspiradoras e aos modelos de vida social e política" (EN 19).

346 Nossos evangelizadores padecem, em certos casos, de uma espécie de confusão e desorientação a respeito de sua identidade, do próprio significado da evangelização, do seu conteúdo e de suas motivações profundas.

347 Para responder a esta situação e dar um novo impulso à evangelização, queremos dizer uma palavra clara e esperançosa que estimule a evangelizar, com prazer e audácia, os nossos povos, em quem percebemos um anseio profundo de receber o Evangelho de Cristo. Para este fim recordamos o sentido da evangelização, sua dimensão e destino universal, como também os critérios e sinais que lhe manifestam a autenticidade.

1.2. O ministério da evangelização

348 A missão evangelizadora é de todo o Povo de Deus. Esta é sua vocação primordial, "sua identidade mais profunda" (EN 14). É a sua felicidade. O Povo de Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar.O dinamismo do Espírito de Pentecostes anima-o e envia-o a todos os povos. Nossas Igrejas particulares hão de escutar, com renovado entusiasmo, o mandato do Senhor: "Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos" (Mt 28,19).

349 A Igreja converte-se cada dia à palavra da verdade. Segue pelos caminhos da história a Cristo encarnado, morto e ressuscitado e faz-se seguidora do Evangelho para transmiti-lo aos homens, com plena fidelidade.

350 A partir da pessoa chamada à comunhão com Deus e com os homens, o Evangelho deve penetrar em seu coração, em suas experiências e modelos de vida, em sua cultura e ambientes, para fazer uma humanidade nova com homens novos e caminharem todos na direção de uma nova maneira de ser, julgar, viver e conviver. Este é um serviço que a todos nós obriga.

351 Afirmamos que a evangelização "deve conter sempre uma proclamação clara de que em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado, se oferece a salvação a todos os homens, como dom da graça e misericórdia de Deus" (EN 27 ).

E aqui está o que é a base, o centro e ao mesmo tempo o cume de seu dinamismo, o conteúdo essencial da evangelização.

352 A evangelização dá a conhecer Jesus como o Senhor que nos revela o Pai e nos comunica seu Espírito. Ela chama-nos à conversão que é reconciliação e vida nova, leva-nos à comunhão com o Pai que nos torna filhos e irmãos.Faz brotar, pela caridade derramada em nossos corações, frutos de justiça, perdão, respeito, dignidade e paz no mundo.

353 A salvação que Cristo nos oferece dá sentido a todas as aspirações e realizações humanas, mas questiona-as e excede-as infinitamente. Embora "comece certamente nesta vida, tem sua plenitude na eternidade" (EN 27).Origina-se em Cristo, em sua encarnação, em toda a sua vida e alcança-se de maneira definitiva, em sua morte e ressurreição. Prossegue na história dos homens pelo mistério da Igreja sob o influxo permanente do Espírito que a precede, acompanha e lhe dá fecundidade apostólica.

354 Esta mesma salvação, centro da Boa Nova é "libertação do que oprime o homem, mas sobretudo libertação do pecado e do maligno, na alegria de se conhecer a Deus e de ser conhecido por Ele, de a pessoa O ver e de se entregar a Ele" (EN 9).

355 Mas esta salvação tem "vínculos muito fortes" com a promoção humana em seus aspectos de desenvolvimento e de libertação , parte integrante da evangelização.Estes aspectos brotam da própria riqueza da salvação, da ativação da caridade de Deus em nós, a que estes aspectos estão subordinados. A Igreja "não necessita, portanto, de recorrer a sistemas e ideologias para amar e defender a libertação do homem e colaborar com ela: no centro da mensagem de que é depositária e pregoeira, encontra inspiração para atuar em prol da fraternidade, da, justiça e da paz; para agir contra as dominações, escravidões, discriminações, violências e atentados à liberdade religiosa, contra as agressões ao homem e a tudo quanto atenta contra a vida" (João Paulo II, Discurso Inaugural III, 2).

A Igreja, mediante seu dinamismo evangelizador, gera este processo:

356 - Dá testemunho de Deus, revelado em Cristo pelo Espírito, que dentro de nós clama Abba "Pai" . Assim comunica a experiência de sua fé n'Ele.

357 - Anuncia a Boa Nova de Jesus Cristo, mediante a palavra da vida: este anúncio suscita a fé, a pregação, a catequese progressiva que a alimenta e educa.

358 - Gera a fé, que é conversão do coração e da vida, entrega da pessoa a Jesus Cristo; dá a participação de sua morte, para que a vida de Cristo se manifeste em cada homem . Esta fé, que também denuncia o que se opõe à construção do Reino, implica em rupturas que são necessárias e às vezes dolorosas.

359 - Leva ao ingresso na comunidade dos fiéis, que perseveram na oração, na convivência fraterna e celebram a fé e os seus sacramentos, cujo ápice é a Eucaristia.

360 - Envia como missionários aos que receberam o Evangelho com ânsias de que todos os homens sejam oferecidos a Deus e de que todos os povos O louvem.

361 Destarte a Igreja, em cada um dos seus membros, é consagrada em Cristo pelo Espírito, é enviada a pregar a Boa Nova aos pobres e a "buscar e salvar o que estava perdido" (Lc 19,10).

1.3. Dimensão e destino universal da evangelização

362 A evangelização tem de calar fundo no coração do homem e dos povos. Por isso sua dinâmica procura a conversão pessoal e a transformação social. A evangelização há de estender-se a todos os povos; por isso sua dinâmica procura a universalidade do gênero humano. Ambos estes aspectos são de atualidade para evangelizar hoje e amanhã a América Latina.

363 O fundamento desta universalidade é, antes de tudo, o mandato do Senhor: "Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos" (Mt 28,19) e a unidade da família humana, criada por um mesmo Deus que salva e assinala com sua graça. Cristo, a morto por todos, atrai a todos por sua glorificação no Espírito. Quanto mais convertidos a Cristo, tanto mais somos arrastados por seu anseio universal de salvação. Assim sendo, quanto mais vital é a Igreja particular, tanto mais tornará presente e visível a Igreja universal e mais forte será o seu movimento missionário na direção dos outros povos.

364 O nosso primeiro serviço para formar uma comunidade eclesial mais viva consiste em fazer a nossos cristãos mais fiéis e amadurecidos em sua fé, alimentando-os com uma catequese adequada e uma liturgia renovada.Eles serão fermento no mundo e darão à evangelização extensão e vigor. Outra tarefa consiste em atender às situações que mais precisam de evangelização:

365 - Situações permanentes: nossos indígenas, habitualmente marginalizados quanto aos bens da sociedade e, em alguns casos, ou não evangelizados ou evangelizados de forma insuficiente; os afro-americanos tantas vezes esquecidos.

366 - Situações novas (AG 6) que nascem de mudanças sócio-culturais e exigem uma outra evangelização: pessoas que emigram para outros países; grandes aglomerações urbanas no próprio país; massas de todos os estratos sociais em precária situação de fé; grupos expostos aos influxos de seitas e ideologias que não lhes respeitam a identidade, que confundem e provocam divisões.

367 - Situações particularmente difíceis: grupos cuja evangelização é urgente, mas muitas vezes adiada: universitários, militares, operários, jovens, mundo da comunicação social etc.

368 Finalmente chegou para a América Latina a hora de intensificar os serviços recíprocos entre as Igrejas particulares e de estas se projetarem para além de suas próprias fronteiras, ad gentes.É certo que nós próprios precisamos de missionários, mas devemos dar de nossa pobreza.Por outro lado nossas Igrejas podem oferecer algo de original e importante; o seu sentido de salvação e libertação, a riqueza de sua religiosidade popular, a experiência das Comunidades Eclesiais de Base, a floração de seus ministérios, sua esperança e a alegria de sua fé.Já se realizaram esforços missionários que se podem aprofundar e se devem ampliar.

369 Não podemos deixar de agradecer a generosa ajuda da Igreja universal e nesta ajuda a das Igrejas irmãs pedindo que continuem a nos acompanhar especialmente na formação de agentes autóctones.Assim nos sentiremos sempre fortalecidos para assumir este compromisso universal e teremos maior capacidade de responder ao serviço próprio de nossa Igreja particular.

1.4. Critérios e sinais de evangelização

370 O evangelizador participa da fé e da missão da Igreja que o envia. Necessita de critérios e sinais que permitam discernir o que corresponde de fato à fé e à missão da Igreja, isto é, à vontade de seu Senhor.

"Cada um considere como constrói, pois ninguém pode lançar outro fundamento. além do que foi lançado, que é Jesus Cristo" (1 Cor 3, 10-11) . "Portanto, assim como acolhestes a Cristo Jesus, o Senhor, continuai a guiar-vos por Ele.

Arraigai-vos n'Ele e edificai-vos sobre Ele, perseverai na fé que vos foi ensinada e transbordai em ações de graça!" (Cl 2,6-7).

371 Estes critérios e sinais são inspiradores de uma evangelização autêntica e viva. As distorções e perplexidades fretam ou paralisam seu dinamismo.

Apresentamos os seguintes critérios fundamentais:

372 - A Palavra de Deus contida na Bíblia e na tradição viva da Igreja, particularmente expressa nos símbolos ou profissões de fé e dogmas da Igreja. A Sagrada Escritura deve ser a alma da evangelização.Mas não adquire só por si a clareza perfeita. Deve ser lida e interpretada dentro da fé viva da Igreja. Nossos símbolos ou profissões de fé resumem a Sagrada Escritura e explicitam substâncias de mensagem pondo em relevo a "hierarquia das verdades".

373 - A Fé do Povo de Deus. É a fé da Igreja universal que se vive e exprime concretamente em suas comunidades particulares. Uma comunidade particular concretiza em si mesma a fé da Igreja universal e deixa de ser comunidade privada e isolada; supera sua própria particularidade na fé da Igreja total.

374 - O magistério da Igreja. O sentido da Escritura, dos símbolos e das formulações dogmáticas do passado não brota só do próprio texto, mas também da fé da Igreja.No seio da comunidade encontramos a instância de decisão e interpretação autêntica e fiel da doutrina da fé e da moral; é o serviço do sucessor de Pedro que confirma a seus irmãos na fé e dos bispos "sucessores dos apóstolos no carisma da verdade" (DV 8).

375 - Os teólogos prestam um serviço importante à Igreja: sistematizam a doutrina e as orientações do magistério em uma síntese de contexto mais amplo, traduzem-na para uma linguagem adaptada ao tempo: submetem a uma nova investigação os fatos e as palavras reveladas por Deus, para referi-las a novas situações sócio-culturais , ou a novas descobertas e problemas suscitados pela ciência, pela história ou pela filosofia .Servindo assim à Igreja, procurarão não causar prejuízo à fé dos fiéis, seja com explicações difíceis, seja divulgando questões discutidas e discutíveis.

376 - O trabalho teológico implica certa pluralidade que resulta do uso de "métodos e modos diferentes para conhecer e expressar os divinos mistérios" .Existe, portanto, um pluralismo bom e necessário que procura exprimir as legítimas diversidades, sem afetar a coesão e a concórdia. Também existem pluralismos que fomentam a divisão.

377 - Todos participamos da missão profética da Igreja. Sabemos que o Espírito distribui seus dons e carismas para o bem de todo o corpo.Devemos recebê-lo com gratidão, mas seu discernimento, isto é, o juízo a respeito de sua autenticidade e a regulamentação do seu exercício, corresponde à autoridade na Igreja, à qual compete, antes de tudo não sufocar o Espírito, mas sim experimentar tudo e reter o que é bom.

Algumas atitudes nos revelam a autenticidade da evangelização:

378 - Uma vida de profunda comunhão eclesial.

379 - A fidelidade aos sinais da presença e da ação do Espírito nos povos e nas culturas que sejam expressão das legítimas aspirações dos homens. Isto supõe respeito, diálogo missionário, discernimento, atitude caridosa e operante.

380 - A preocupação de que a palavra da verdade chegue ao coração dos homens e se faça vida.

381 - A contribuição positiva para a edificação da comunidade.

382 - O amor preferencial e a solicitude para com os pobres e necessitados.

383 - A santidade do evangelizador (EN 76), cujas notas características são o sentido da misericórdia, a firmeza e a paciência nas tribulações e perseguições, a alegria de a pessoa saber que é ministro do Evangelho (EN 80).

384 Em conclusão, o que se pede ao servidor do Evangelho é que seja encontrado fiel . Sua fidelidade cria comunhão; "dela emana uma grande força apostólica" (PC 15) que enriquecerá a Igreja com frutos abundantes do Espírito.

2. EVANGELIZAÇÃO DA CULTURA

2.1. Cultura e culturas

385 Nova e valiosa contribuição pastoral da exortação Evangelii Nuntiandi está no chamado de Paulo VI a que se enfrente a tarefa da evangelização da cultura e das culturas (EN 20).

386 Com a palavra "cultura" indica-se a maneira particular como em determinado povo cultivam os homens sua relação com a natureza, suas relações entre si próprios e com Deus (GS 53b), de modo que possam chegar a "um nível verdadeira e plenamente humano" (GS 53a).É "o estilo de vida comum" (GS 53c) que caracteriza os diversos povos; por isso é que se fala de "pluralidade de culturas" (GS 53c).

387 A cultura assim entendida abrange a totalidade da vida de um povo: o conjunto dos valores que o animam e dos desvalores que o enfraquecem e que, ao serem partilhados em comum por seus membros, os reúnem na base de uma mesma "consciência coletiva" (EN 18).A cultura abrange, outrossim, as formas através das quais estes valores ou desvalores se exprimem e configuram, isto é, os costumes, a língua, as instituições e estruturas de convivência social, quando não são impedidas ou reprimidas pela intervenção de outras culturas dominantes.

388 No quadro desta totalidade, a evangelização procura alcançar a raiz da cultura a zona de seus valores fundamentais, despertando uma conversão que possa ser a base e a garantia da transformação das estruturas e do ambiente social.

389 O essencial da cultura é constituído pela atitude com que um povo afirma ou nega sua vinculação religiosa com Deus, pelos valores ou desvalores religiosos.Estes têm a ver com o sentido último da existência e radicam naquela região mais profunda onde o homem encontra respostas para as perguntas básicas e definitivas que o atormentam, quer as encontre numa orientação positivamente católica ou, pelo contrário, numa orientação atéia.E por isso que a religião ou a irreligião são inspiradoras de todas as restantes ordens culturais familiar, econômica, política, artística, etc. - enquanto as libera para a ordem da transcendente ou as encerra em seu próprio sentido imanente.

390 A evangelização, que leva em consideração o homem todo, procura atingi-lo em sua totalidade, a partir de sua dimensão religiosa.

391 A cultura é uma atividade criadora do homem pela qual ele responde à vocação de Deus que lhe pede que aperfeiçoe toda a criação (Gênese) e nela as próprias capacidades e qualidades espirituais e corporais.

392 A cultura vai-se formando e transformando à base de uma contínua experiência histórica e vital dos povos. Transmite-se através de um processo de tradição genealógica.O homem, portanto, nasce e desenvolve-se no seio de uma determinada sociedade, condicionado e enriquecido por uma cultura particular.Ele recebe-a e modifica-a criativamente e continua a transmiti-la. A cultura é uma realidade histórica e social.

393 Sempre submetidas a novos desenvolvimentos, à interpenetração e ao encontro recíprocos, passam as culturas, em seu processo histórico, por períodos em que se vêem desafiadas por novos valores ou desvalores e pela necessidade de realização de novas sínteses vitais.Nestes períodos, a Igreja se sente chamada a estar presente juntamente com o Evangelho, particularmente nas fases em que decaem e morrem velhas formas, segundo as quais o homem organizou seus valores e sua convivência para dar lugar a sínteses novas .É melhor evangelizar as novas formas culturais logo ao nascer e não quando já cresceram e se estabilizaram. É este o desafio global que no momento a Igreja enfrenta, já que "se pode falar, com razão de uma nova época da história humana" (GS 54).Por isso a Igreja da América Latina procura dar novo impulso à evangelização em nosso Continente.

2.2. Opção pastoral da Igreja da América Latina: a evangelização da própria cultura, no presente em vista do futuro

Finalidade da evangelização

394 Cristo enviou sua Igreja para anunciar o Evangelho a todos os homens, a todos os povos . Uma vez que cada um dos homens nasce no seio de uma cultura, a Igreja procura alcançar, por meio de sua ação evangelizadora não só o indivíduo senão também a cultura do povo.

Procura "alcançar e transformar pela força do Evangelho os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que estão em contraste com a palavra de Deus e com o projeto da salvação.

Poder-se-ia exprimir isso dizendo: importa evangelizar - não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade, e isto até às suas raízes - a cultura e as culturas do homem" (EN 19-20).

Opção pastoral

395 A ação evangelizadora de nossa Igreja latino-americana há de ter como meta geral a constante renovação e transformação evangélica de nossa cultura, quer dizer, a penetração pelo Evangelho, dos valores e critérios que a inspiram, a conversão dos homens que vivem segundo esses valores e a mudança que, para ser mais plenamente humanas, requerem as estruturas em que aqueles vivem e se expressam.

396 Para isso, é de primeira importância atender à religião de nossos povos, não só assumindo-a como objeto de evangelização, mas também, por estar já evangelizada, como força ativamente evangelizadora.

2.3. Igreja, fé e cultura

Amor aos povos e conhecimento de sua cultura

397 A fim de desenvolver sua ação evangelizadora com realismo, a Igreja há de conhecer a cultura da América Latina. Mas ela parte, antes de tudo, de uma profunda atitude de amor aos povos.Deste modo, não só por via científica, mas também pela conatural capacidade de compreensão afetiva que dá o amor, poderá conhecer e discernir as modalidades próprias de nossa cultura, suas crises e desafios históricos e solidarizar-se, em conseqüência disso, com ela no seio de sua história.

398 Um critério importante que há de guiar a Igreja em seu esforço de conhecimento é o seguinte: importa verificar para onde se orienta o movimento geral da cultura e não tanto os encraves que se detêm no passado, as expressões atualmente vigentes e não tanto as meramente folclóricas.

399 A tarefa da evangelização da cultura em nosso Continente deve ser .focalizada sobre o pano de fundo de uma arraigada tradição cultural, desafiada pelo processo de transformação cultural que a América Latina e o mundo inteiro vêm vivendo nos tempos modernos e que atualmente chega a seu ponto de crise.

Encontro da fé com as culturas

400 A Igreja, Povo de Deus, quando anuncia o Evangelho e os povos acolhem a fé, neles se encarna e assume suas culturas. Instaura assim não uma identificação, mas uma estreita vinculação com ela.Por um lado, efetivamente, a fé transmitida pela Igreja é vivida a partir de uma cultura pressuposta, isto é, por fiéis "vinculados profundamente a uma cultura, e a construção do Reino não pode deixar de servir-se de elementos da cultura e das culturas humanas" . Por outro lado, continua válido, na ordem pastoral, o princípio de encarnação formulado por Santo Ireneu: "O que não é assumido não é redimido".

O princípio geral de encarnação se concretiza em diversos critérios particulares:

401 As culturas não são terreno vazio, carente de autênticos valores. A evangelização da Igreja não é um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento desses valores; uma contribuição ao crescimento dos "germes do Verbo" presentes nas culturas.

402 Com maior interesse assume a Igreja os valores especificamente cristãos que encontra nos povos já evangelizados e que são vividos por estes segundo sua própria modalidade cultural.

403 A Igreja, parte, em sua evangelização, daquelas sementes lançadas por Cristo e desses valores, frutos de sua própria evangelização.

404 Tudo isso implica que a Igreja - obviamente a Igreja particular - se esmere por adaptar-se, realizando o esforço de transvasamento da mensagem evangélica para a linguagem antropológica e para os símbolos da cultura em que se insere.

405 A Igreja, ao propor à Boa Nova, denuncia e corrige a presença do pecado nas culturas, purifica e exorciza os desvalores.Estabelece, por conseqüência, uma crítica das culturas, uma vez que o reverso do anúncio do Reino de Deus é a crítica das idolatrias, isto é, a crítica dos valores erigidos em ídolos ou dos valores que uma cultura assume como absolutos sem que o sejam. A Igreja tem a missão de dar testemunho do "verdadeiro Deus e do único Senhor".

406 Não se pode considerar como violação a evangelização que é um convite a que se abandonem as falsas concepções de Deus, procedimentos antinaturais e manipulações aberrantes do homem feitas pelo homem.

407 A tarefa específica da evangelização consiste em "anunciar a Cristo" e convidar as culturas não a ficar sob um esquema eclesiástico, mas sim a acolher pela fé o domínio espiritual de Cristo, fora de cuja verdade e graça não poderão encontrar sua plenitude.Deste modo pela evangelização a Igreja procura que as culturas se renovem, se elevem e se aperfeiçoem pela presença viva do Ressuscitado, centro da história e do seu Espírito (EN 18,20,23; GS 58d, 61a).

2.4. Evangelização da cultura na América Latina

Já foram indicados os critérios fundamentais que orientam a ação evangelizadora das culturas.

408 Nossa Igreja, por seu lado, realiza a referida ação nesta área humana especial da América Latina. Seu processo histórico-cultural já foi descrito (cf. Parte I). Retomamos agora brevemente os principais dados estabelecidos na primeira parte deste documento, para poder discernir os desafios e problemas que o momento atual coloca para a evangelização.

Tipos de cultura e fases no processo cultural

409 A América Latina tem sua origem no encontro da raça hispano-lusitana com as culturas pré-colombianas e africanas. A mestiçagem racial e cultural marcou fundamentalmente este processo, e sua dinâmica indica que no futuro continuará marcando.

410 Este fato não nos pode fazer desconhecer a persistência de várias culturas indígenas ou afro-americanas em estado puro e a existência de grupos com diversos graus de integração nacional.

411 Posteriormente, durante os dois últimos séculos, afluem novas correntes migratórias, sobretudo no Cone Sul, que trazem modalidades próprias integrando-se basicamente no estrato cultural preexistente.

412 Na primeira época, isto é, do século XVI ao XVIII se lançam as bases da cultura latino-americana e de seu real substrato católico. Sua evangelização foi suficientemente profunda para que a fé passasse a ser constitutiva de sua essência e da sua identidade, dando-lhe a unidade espiritual que subsiste, apesar da anterior divisão em diversas nações e apesar de estar marcada por rupturas em nível econômico, político e social.

413 Esta cultura impregnada de fé e, com freqüência, sem uma catequese conveniente, manifesta-se nas atitudes próprias da religião de nosso povo, penetradas de um profundo sentimento de transcendência e ao mesmo tempo da proximidade de Deus.Traduz-se em uma sabedoria popular com expressões contemplativas que orienta o modo peculiar como o homem latino-americano vive sua relação com a natureza e com os outros homens, num sentido de trabalho e festa, de solidariedade, de amizade e parentesco.Traduz-se igualmente no sentimento de sua própria dignidade que não é diminuída pela vida pobre e singela que leva.

414 É uma cultura que, conservada de um modo mais vivo e articulando toda a existência nos setores pobres, está marcada especialmente pelo coração e suas intuições.Exprime-se não tanto nas categorias e na organização mental características das ciências, mas nas artes plásticas, na piedade que se faz vida e nos espaços de convivência solidária.

415 Esta cultura, primeiro a mestiça e depois pouco a pouco a dos diversos agrupamentos indígenas e afro-americanos, começa no século XVIII a sofrer o impacto da chegada da civilização urbano-industrial, dominada pela mentalidade físico-matemática e pela idéia de eficácia.

416 Esta civilização é acompanhada de fortes tendências à personalização e à socialização. Produz uma acentuada aceleração da história, que exige de todos os povos um grande esforço de assimilação e criatividade, para que suas culturas não sejam postergadas ou até eliminadas.

417 A cultura urbano-industrial com a conseqüente e a intensa proletarização dos setores sociais e até de diversos povos, é controlada pelas grandes potências que detêm a ciência e a técnica. Este processo histórico tende a tornar cada vez mais agudo o problema da dependência e da pobreza.

418 O advento da civilização urbano-industrial acarreta igualmente problemas no plano ideológico e chega a ameaçar as próprias raízes de nossa cultura, uma vez que esta civilização nos chega de fato, em seu real processo histórico, impregnada de racionalismo e inspirada em duas ideologias dominantes: o liberalismo e o coletivismo marxista.Em ambas se aninham a tendência não só a uma legítima e desejada secularização, mas também ao secularismo.

419 No quadro deste processo histórico surgem em nosso Continente fenômenos e problemas particulares e importantes: a intensificação das migrações e dos deslocamentos de população do campo para a cidade; a presença de fenômenos religiosos como o da invasão de seitas, que por parecerem marginais, não devem ficar desapercebidas ao evangelizador; a enorme influência dos meios de comunicação social como veículos de novas diretrizes e modelos culturais; o anseio da mulher por sua promoção, de acordo com sua dignidade e peculiaridade no conjunto da, sociedade; o surgimento de um mundo operário que será decisivo na nova configuração de nossa cultura.

A ação evangelizadora: desafios e problemas

420 Os fatos acima indicados são os desafios que a Igreja há de enfrentar. Neles se manifestam os sinais dos tempos, que apontam o futuro para onde vai o movimento da cultura.

A Igreja deve discerni-los, para poder consolidar os valores e derrubar os ídolos que alentam esse processo histórico.

A cultura universal em ascensão

421 A cultura urbano-industrial, inspirada na mentalidade científico-técnica, promovida pelas grandes potências e marcada pelas ideologias mencionadas, pretende ser universal.Os povos, as culturas particulares, os diversos grupos humanos, são convidados, e mais ainda, obrigados a integrar-se nela.

422 Na América Latina esta tendência traz de novo à tona o problema da integração das etnias indígenas no quadro político e cultural das nações, precisamente por estas se verem compelidas a avançar a um desenvolvimento maior, a ganhar novas terras e braços para uma produção mais eficaz, para poder integrar-se com maior dinamismo no curso acelerado da civilização universal.

423 Os níveis que esta nova universalidade apresenta são diversos: o dos elementos científicos e técnicos como instrumentos de desenvolvimento; o de certos valores que são acentuados, como os do trabalho e de uma crescente posse de bens de consumo; o nível de um "estilo de vida" total que traz consigo uma determinada hierarquia de valores e preferências.

424 Nesta encruzilhada histórica, alguns grupos étnicos e sociais se fecham em si mesmos, defendendo sua própria cultura, num isolamento infrutuoso; outros, em contrapartida, se deixam absorver facilmente pelos estilos de vida que instaura o novo tipo de cultura universal.

425 A Igreja, em sua tarefa evangelizadora, procede com fino e laborioso discernimento. Por seus próprios princípios evangélicos, contempla com satisfação os progressos da humanidade para a integração e comunhão universal.Em virtude de sua missão específica, se sente enviada, não para destruir, mas para ajudar as culturas a se consolidarem em seu próprio ser e identidade, convocando os homens de todas as raças e povos a se reunirem, pela fé, sob Cristo, no mesmo e único Povo de Deus.

426 A Igreja promove e fomenta até mesmo o que vai além desta união católica na mesma fé e que se concretiza em formas de comunhão entre as culturas e de integração justa nos níveis econômico, social e político.

427 Mas ela questiona, é claro, aquela "universalidade", que é sinônimo de nivelamento e uniformidade, que não respeita as diferentes culturas, debilitando-as, absorvendo-as ou eliminando-as.Com maior razão a Igreja não aceita aquela instrumentação da universalidade que equivale à unificação da humanidade mediante uma injusta e lesante supremacia e domínio de uns povos ou setores sociais sobre outros povos e setores.

428 A Igreja da América Latina se propõe reencetar com renovado vigor a evangelização da cultura de nossos povos e dos diversos grupos étnicos para que germine ou seja reavivada a fé evangélica e para que esta, como base de comunhão, se lance em formas de justa integração nos quadros respectivos de uma nacionalidade, de uma grande pátria latino-americana e de uma integração universal que permita a nossos povos o desenvolvimento de sua própria cultura, capaz de assimilar de modo próprio as descobertas científicas e técnicas.

A cidade

429 Na passagem da cultura agrária para a urbano-industrial, a cidade se transforma em propulsora da nova civilização universal.Este fato requer um novo discernimento por parte da Igreja.Globalmente, deve inspirar-se na visão da Bíblia, a qual ao mesmo tempo que comprova positivamente a tendência dos homens à criação de cidades onde conviver de um modo mais associado e humano, é crítica da dimensão desumana do pecado que nelas se origina.

430 Assim sendo, nas atuais circunstâncias, a Igreja não alenta o ideal da criação de megalópoles que se tornam irremediavelmente desumanas, como tampouco de uma industrialização excessivamente acelerada que as atuais gerações tenham que pagar às custas de sua própria felicidade, com sacrifícios desproporcionais.

431 Por outro lado, reconhece que a vida urbana e as transformações industriais levantam problemas até agora desconhecidos. Em seu interior se modificam os modos de vida e as estruturas habituais da vida: a família, a vizinhança, a organizarão do trabalho.Alteram-se igualmente as condições de vida do homem religioso, dos fiéis e da comunidade cristã .As características anteriores constituem aspectos do chamado "processo de secularização", ligado evidentemente ao surgimento da ciência e da técnica e à urbanização crescente.

432 Não há razão de se pensar que as formas essenciais da consciência religiosa estejam exclusivamente ligadas à cultura agrária.É falso dizer que a passagem para a civilização urbano-industrial acarrete necessariamente a abolição da religião. Contudo, constitui um evidente desafio, ao se condicionar com novas formas e estruturas de vida, a consciência religiosa e a vida cristã.

433 A Igreja se encontra pois diante do desafio de renovar sua evangelização, de modo que possa ajudar aos fiéis a viver sua vida cristã no quadro dos novos condicionamentos que a sociedade urbano-industrial cria para a vida de santidade; para a oração e a contemplação; para as relações entre os homens, que se tornam anônimas e arraigadas no meramente funcional; para uma nova vivência do trabalho, da produção e do consumo.

O secularismo

434 A Igreja assume o processo de secularização no sentido de uma legítima autonomia do secular como justo e desejável, conforme entendem a GS e a EN.

Contudo, a passagem para a civilização urbano-industrial, considerada não em abstrato, mas em seu real processo histórico ocidental, é inspirada pela ideologia que chamamos "secularismo".

435 Em sua essência, o secularismo separa e opõe o homem com relação a Deus; concebe a construção da história como responsabilidade exclusiva do homem, considerado em sua mera imanência. Trata-se de "uma concepção do mundo segundo a qual este último se explica por si mesmo, não sendo necessário recorrer a Deus: Deus seria pois supérfluo e até mesmo um obstáculo. Este secularismo, para reconhecer o poder do homem, acaba se colocando acima de Deus ou mesmo negando-o. Novas formas de ateísmo - um ateísmo antropocêntrico, não abstrato e metafísico, mas prático e militante - parecem derivar dele.Em união com este secularismo ateu, nos é proposta todos os dias, sob as formas mais diversas, uma civilização de consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma vontade de poder e de domínio, de discriminações de toda espécie: constituem elas outras tantas inclinações desumanas deste "humanismo" (EN 55).

436 A Igreja, pois, em sua tarefa de evangelizar e suscitar a fé em Deus Pai providente e em Jesus Cristo, ativamente presente na história humana, passa por um confronto radical com esse movimento secularista. Vê nele uma ameaça à fé e à própria cultura de nossos povos latino-americanos.Por isso, uma das incumbências fundamentais do novo impulso evangelizador há de ser atualizar e reorganizar o anúncio do conteúdo da evangelização partindo da própria fé de nossos povos, de modo que estes possam assumir os valores da nova civilização urbano-industrial, numa síntese vital cujo fundamento continue sendo a fé em Deus e não o ateísmo, conseqüência lógica da tendência secularista.

Conversão e estruturas

Ficou assinalada a incoerência entre a cultura de nossos povos, cujos valores estão marcados de fé cristã, e a condição de pobreza em que muitas vezes permanecem retidos injustamente.

437 Sem dúvida, as situações de injustiça e de pobreza extrema são um sinal acusador de que a fé não teve a força necessária para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança, ideológica e da organização da convivência social e econômica de nossos povos. Em povos de arraigada fé cristã impuseram-se estruturas geradoras de injustiça. Estas, que estão em conexão com o processo de expansão do capitalismo liberal e em algumas partes se transformam em outras inspiradas pelo coletivismo marxista, nascem das ideologias de culturas dominantes e são incoerentes com a fé própria de nossa cultura popular.

438 A Igreja convida, pois, a uma renovada conversão no plano dos valores culturais, para que a partir daí se impregnem de espírito evangélico as estruturas de convivência.

Ao convidar a uma revitalização dos valores evangélicos, ela insiste numa rápida e profunda transformação das estruturas, uma vez que estas estão destinadas a conter, por sua própria natureza, o mal que nasce do coração do homem e se manifesta igualmente em forma social, e em servir como condições pedagógicas para uma conversão interior, no plano dos valores .

Outros problemas

439 No conjunto desta situação geral e de seus desafios globais, se inserem alguns problemas particulares de importância que a Igreja há de atender em seu novo impulso evangelizador.Estes são: a organização de uma adequada catequese partindo de um devido conhecimento das condições culturais de nossos povos e de uma compenetração com seu estilo de vida, com suficientes agentes pastorais autóctones e diversificados, que satisfaçam o direito de nossos povos e de nossos pobres em não ficar esquecidos na ignorância ou em níveis de formação rudimentares de sua fé.

440 Um questionamento crítico e construtivo do sistema educativo na América Latina.

441 A necessidade de traçar critérios e caminhos, baseados na experiência e na imaginação, para uma pastoral da cidade, onde se encontram em gestação os novos modos de cultura bem como o aumento do esforço evangelizador e promotor dos grupos indígenas e afro-americanos.

442 A instauração de uma nova presença evangelizadora da Igreja no mundo operário, nas elites intelectuais e entre as artísticas.

443 A contribuição humanista e evangelizadora da Igreja para a promoção da mulher, conforme sua própria identidade específica.

3. EVANGELIZAÇÃO E RELIGIOSIDADE POPULAR

3.1. Noção e afirmações fundamentais

444 Entendemos por religião do povo, religiosidade popular ou piedade popular o conjunto de crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes básicas que derivam dessas convicções e as expressões que as manifestam.Trata-se da forma ou da existência cultural que a religião adota em um povo determinado. A religião do povo latino-americano, em sua forma cultural mais característica, é expressão da fé católica. É um catolicismo popular.

445 Com deficiências e apesar do pecado sempre presente, a fé da Igreja marcou a alma da América Latina , caracterizando-lhe a identidade histórica essencial e constituindo-se na matriz cultural do Continente, da qual nasceram os novos povos.

446 O Evangelho encarnado em nossos povos congrega-os numa originalidade histórica cultural que chamamos América Latina. Essa identidade está simbolizada muito luminosamente no rosto mestiço da Virgem de Guadalupe que surge no início da evangelização.

447 Esta religião do povo é vivida de preferência pelos "pobres e simples" (EN 48), mas abrange todos os setores sociais e, às vezes, é um dos poucos vínculos que reúne os homens em nossas nações politicamente tão divididas.Por outro lado, deve sustentar-se que tal unidade contém diversidades múltiplas segundo os grupos sociais, étnicos e, mesmo, as gerações.

448 A religiosidade do povo, em seu núcleo, é um acervo de valores que responde com sabedoria cristã às grandes incógnitas da existência.A sapiência popular católica tem uma capacidade de síntese vital; engloba criadoramente o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e corpo, comunhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria, inteligência e afeto.sta sabedoria é um humanismo cristão que afirma radicalmente a dignidade de toda pessoa como Filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina a encontrar a natureza e a compreender o trabalho e proporciona as razões para a alegria e o humor, mesmo em meio de uma vida muito dura.sa sabedoria é também para o povo um princípio de discernimento, um instinto evangélico pelo qual capta espontaneamente quando se serve na Igreja ao Evangelho e quando ele é esvaziado e asfixiado com outros interesses! (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 6-AAS, LXXI, p. 203).

449 Uma vez que esta realidade cultural abrange setores sociais muito extensos, a religião do povo tem a capacidade de congregar multidões. Por isso, no âmbito da piedade popular, a Igreja cumpre com seu imperativo de universalidade.Efetivamente, "sabendo que a mensagem não está reservada a um pequeno grupo de iniciados, de privilegiados ou eleitos, mas se destina a todos" (EN 57), a Igreja consegue essa amplidão de convocação das multidões nos santuários e nas festas religiosas.Aí a mensagem evangélica tem oportunidade, nem sempre aproveitada pastoralmente, de chegar "ao coração das massas" (Ibid.).

450 A religiosidade popular não só é objeto de evangelização, mas também, enquanto contém encarnada a Palavra de Deus, é uma forma ativa com que o povo se evangeliza continuamente a si próprio.

451 Esta piedade popular católica, na América Latina, não chegou a impregnar adequadamente ou mesmo não conseguiu evangelizar certos grupos culturais autóctones ou de origem africana, que por sua vez possuem riquíssimos valores e guardam "sementes do Verbo" à espera da Palavra viva.

452 A religiosidade popular, embora marque a cultura da América Latina, não se expressou suficientemente na organização de nossas sociedades e Estados. Por isso deixa um espaço para o que S. S. João Paulo II tornou a designar como "estruturas de pecado" (Homilia Zapopán, 3-AAS, LXXI, p. 230).Destarte a distância entre ricos e pobres, a situação de ameaça que vivem os mais fracos, as injustiças, as postergações e sujeições indignas que sofrem, contradizem radicalmente os valores de dignidade pessoal e de irmandade solidária, que o povo latino-americano traz em seu coração como imperativos recebidos do Evangelho.Por isso a religiosidade do povo latino-americano se converte muitas vezes num clamor por uma verdadeira libertação. É uma exigência ainda não satisfeita.O povo por sua vez, movido por esta religiosidade, cria ou utiliza dentro de si, em sua convivência mais estreita, alguns espaços para exercer a fraternidade, por exemplo: o bairro, a aldeia, o sindicato, o esporte. Entretanto, não desespera, aguarda com confiança e com astúcia os momentos oportunos para progredir em sua libertação tão almejada.

453 Por falta de atenção dos agentes de pastoral e por outros fatores complexos, a religião do povo mostra em certos casos sinais de desgaste e deformação: aparecem substitutos aberrantes e sincretismos regressivos.Além disso, pairam em algumas partes sobre ela sérias e estranhas ameaças que se apresentam exacerbando a fantasia com tons apocalípticos.

3.2. Descrição da religiosidade popular

454 Como elementos da piedade popular podemos assinalar: a presença trinitária que se percebe em devoções e em iconografias, o sentido da Providência de Deus Pai; Cristo celebrado em seu mistério de encarnação (Natal, Menino Jesus), em sua crucifixão, na eucaristia e na devoção ao Sagrado Coração; amor a Maria: ela e "seus mistérios pertencem à identidade própria desses povos e caracterizam sua piedade popular" (João Paulo II, Homilia Zapopán, 2, - AAS, LXXI, p. 228) - venerada como Mãe Imaculada de Deus e dos homens, como Rainha de nossos diversos países e do Continente inteiro; os santos, como protetores; os defuntos; a consciência de dignidade pessoal e de fraternidade solidária; a consciência de pecado e de necessidade de expiação; a capacidade de expressar a fé numa linguagem total que supera os racionalismos (canto, imagens, gestos, cor, dança); a fé situada no tempo (festas) e em lugares (santuários e templos); a sensibilidade para a peregrinação como símbolo da existência humana e cristã; o respeito filial aos pastores como representantes de Deus; a capacidade de celebrar a fé em forma expressiva e comunitária; a integração profunda dos sacramentos e sacramentais na vida pessoal e social; o afeto particular pela pessoa do Santo Padre; a capacidade de sofrimento e heroísmo para suportar as provas e confessar a fé; o valor da oração; a aceitação dos outros.

455 A religião popular latino-americana, há tempo, sofre por causa do divórcio entre a elite e o povo. Isso significa que lhe faltam educação, catequese e dinamismo, devido à carência de uma adequada pastoral.

456 Os aspectos negativos são de origens várias. De tipo ancestral: superstição, magia, fatalismo, idolatria do poder, fetichismo e ritualismo.Por deformação da catequese: arcaísmo estático, falta de informação e ignorância, reinterpretação sincretista, reducionismo da fé a um mero contrato na relação com Deus. Ameaças: secularismo difundido pelos meios de comunicação social, consumismo, seitas, religiões orientais e agnósticas, manipulações ideológicas, econômicas, sociais e políticas, messianismos políticos secularizados, perda de suas raízes e proletarização urbana, em conseqüência das transformações culturais.Podemos afirmar que muitos desses fenômenos são verdadeiros obstáculos para a evangelização.

3.3. Evangelização da religiosidade popular; processo, atitudes e critérios

457 Como toda a Igreja, a religião do povo deve ser evangelizada sempre de novo. Na América Latina, depois de quase quinhentos anos de pregação do Evangelho e do batismo generalizado de seus habitantes, esta evangelização há de apelar para a "memória cristã de nossos povos".Será um esforço de pedagogia pastoral, em que o catolicismo popular seja assumido, purificado, completado e dinamizado pelo Evangelho. Isso implica, na prática, reencetar um diálogo pedagógico, a partir dos últimos elos que os evangelizadores de outrora deixaram no coração de nosso povo.Para tanto se requer conhecer os símbolos, a linguagem silenciosa, não verbal, do povo, com o fim de conseguir, num diálogo vital, comunicar a Boa Nova mediante um processo de reinformação catequética.

458 Os agentes de evangelização, com a luz do Espírito Santo e cheios de "caridade pastoral", saberão desenvolver a "pedagogia da evangelização" (EN 48 ) .Isso exige, sobretudo, amor e aproximação ao povo, prudência e firmeza, constância e audácia para educar essa preciosa fé, algumas vezes tão debilitada.

459 As formas concretas e os processos pastorais deverão ser avaliados segundo esses critérios característicos do Evangelho vivido na Igreja. Tudo se há de fazer para que os batizados sejam mais filhos no Filho, mais irmãos na Igreja, mas responsavelmente missionários para estender o Reino. Nessa direção há de amadurecer a religião do povo.

3.4. Tarefas e desafios

460 Estamos em uma, situação de urgência. A transformação de uma sociedade agrária em uma sociedade urbano-industrial submete a religião do povo a uma crise decisiva.Os grandes desafios que a piedade popular levanta para o fim do milênio na América Latina configuram as seguintes tarefas pastorais:

461 a ) A necessidade de evangelizar e catequizar adequadamente a grande maioria que foi batizada e vive um catolicismo popular debilitado.

462 b ) Dinamizar os movimentos apostólicos, as paróquias, as Comunidades Eclesiais de Base e os militantes da Igreja em geral, para que sejam de maneira mais generosa "fermento na massa".Será necessário revisar as espiritualidades, as atitudes e as táticas das elites da Igreja com referência à religiosidade popular.Como bem salientou Medellin: "Esta religiosidade coloca a Igreja diante do dilema de continuar sendo Igreja universal ou de converter-se em seita, ao não incorporar vitalmente a si aqueles homens que se expressam com esse tipo de religiosidade" (Pastoral popular, 3).Devemos desenvolver em nossos militantes uma mística de serviço evangelizador da religião de seu povo. Essa tarefa é agora mais atual do que então: as elites devem assumir o espírito de seu povo, purificá-lo, aquilatá-lo e encarná-lo de forma esclarecida.Devem participar nas convocações e nas manifestações populares para darem sua contribuição.

463 c) Adiantar uma crescente e planificada transformação de nossos santuários para que possam ser "lugares privilegiados" (João Paulo II Homilia. Zapopán 5 AAS, LXXI, p. 231 ) de evangelização.Isso requer purificá-los de todo tipo de manipulação e de atividades comerciais. Uma tarefa especial cabe aos santuários nacionais, símbolos da interação da fé com a história de nossos povos.

464 d) Atender pastoralmente a piedade popular da zona rural e indígena para que, segundo sua identidade e seu desenvolvimento, cresçam e se renovem com a doutrina do Concílio Vaticano II. Assim se hão de preparar melhor para a transformação cultural generalizada.

465 e) Favorecer a mútua fecundação entre liturgia e piedade popular que possa orientar com lucidez e prudência os anseios de oração e vitalidade carismática que hoje se comprovam em nossos países.Por outro lado, a religião do povo, com sua grande riqueza simbólica e expressiva, pode proporcionar à liturgia um dinamismo criador. Este, devidamente discernido, há de servir para encarnar mais e melhor a oração universal da Igreja em nossa cultura.

466 f) Procurar as reformulações e reacentuações necessárias da religiosidade popular no horizonte de uma civilização urbano-industrial.E já é um processo que se percebe nas grandes metrópoles do Continente, onde a piedade popular está se expressando espontaneamente em modos novos e enriquecendo-se com novos valores amadurecidos em seu próprio seio.Nessa perspectiva, dever-se-á procurar que a fé desenvolva uma personalização crescente e uma solidariedade libertadora; fé que alimente uma espiritualidade capaz de assegurar a dimensão contemplativa, de gratidão para com Deus e de encontro poético, sapiencial, com a criação; fé que seja fonte de alegria popular e motivo de festa mesmo em situações de sofrimento. Desse modo podem se plasmar formas culturais que resgatem a industrialização urbana do tédio opressor e do economicismo frio e asfixiante.

467 g) Favorecer as expressões religiosas populares com participação de grandes massas pela força evangelizadora que possuem.

468 h) Assumir as inquietações religiosas que, como angústia histórica, estão despertando no fim do milênio. Assumi-las no domínio de Cristo e na Providência do Pai, para que os filhos de Deus obtenham a paz necessária enquanto lutam no tempo.

469 Se a Igreja não reinterpretar a religião do povo latino-americano, se dará um vazio que será ocupado pelas seitas, pelos messianismos políticos secularizados, pelo consumismo que produz tédio e a indiferença ou o pansexualismo pagão.Novamente a Igreja enfrenta o problema: o que não é assumido em Cristo, não é redimido e se constitui em ídolo novo com malícia antiga.

4. EVANGELIZAÇÃO, LIBERTAÇÃO E PROMOÇÃO HUMANA

A evangelização em sua relação com a promoção humana, a libertação e a doutrina social da Igreja.

4.1. Palavras de ânimo

470 Reconhecemos os esforços realizados por muitos cristãos da América Latina para aprofundar na fé e iluminar com a Palavra de Deus as situações particularmente conflitantes de nossos povos.Animamos a todos os cristãos a continuar prestando esse serviço evangelizador e a discernir seus critérios de reflexão e investigação, tendo cuidado especial em conservar e promover a comunhão eclesial, tanto em nível local quanto universal.

471 Estamos conscientes de que, a partir de Medellin, os agentes de pastoral conseguiram progressos muito significativos e esbarraram em não poucas dificuldades. Estas não devem desanimar-nos; devem levar-nos antes a novas procuras e melhores realizações.

4.2. Doutrina social da Igreja

472 A contribuição da Igreja à libertação e promoção humana vem se concretizando num conjunto de orientações doutrinais e critérios de ação que costumamos chamar "doutrina social da Igreja", os quais têm sua fonte na Sagrada Escritura, na doutrina dos Santos Padres e dos grandes teólogos da Igreja e no Magistério, especialmente dos últimos papas.Como se evidência desde sua origem, há neles elementos de validade permanente que se fundamentam numa antropologia nascida da própria mensagem de Cristo e nos valores perenes da ética cristã. Mas há também elementos que são alteráveis e respondem às condições próprias de cada país e de cada época, (GS, Nota 1).

473 Seguindo Paulo VI (0A, 4), podemos formular esta doutrina assim: atenta aos sinais dos tempos, interpretados à luz do Evangelho e do magistério da Igreja, toda a comunidade cristã é chamada a se tornar responsável pelas opções concretas e pela sua efetiva atuação para responder às interpelações que as circunstâncias mutáveis apresentam.Esta doutrina social tem, pois, um caráter dinâmico e em sua elaboração e aplicação os leigos hão de ser não passivos executores, mas ativos colaboradores dos pastores, a quem levam sua experiência cristã, sua competência profissional e científica (GS 42).

474 Está claro, pois, que toda a comunidade cristã, em comunhão com seus legítimos pastores e guiada por eles, constitui sujeito responsável pela evangelização, pela libertação e promoção humana.

475 O objeto precípuo desta doutrina social é a dignidade pessoal do homem, imagem de Deus e a tutela de seus direitos inalienáveis (PP 14-21).A Igreja explicitou seus ensinamentos nos diversos campos da vida: social, econômico, político, cultural, segundo as necessidades.Portanto, a finalidade dessa doutrina da Igreja - que traz sua visão própria do homem e da humanidade (PP 13) - é sempre a promoção de libertação total da pessoa humana, em sua dimensão terrena e transcendente, contribuindo assim para a construção do Reino último e definitivo, sem confundir, contudo, progresso terreno e crescimento do Reino de Cristo.

476 Para que nossa doutrina social seja acreditável e aceita por todos, deve responder de maneira eficaz aos desafios e aos problemas graves que surgem de nossa realidade latino-americana.Homens diminuídos por carências de toda espécie reclamam ações urgentes em nosso esforço promocional que tornam sempre necessárias as obras assistências.Não podemos propor eficazmente esta doutrina sem sermos nós mesmos interpelados por ela em nosso comportamento pessoal e institucional. Ela exige de nós coerência, criatividade, audácia e entrega total.Nossa conduta social é parte integrante de nosso seguimento de Cristo.Nossa reflexão sobre a projeção da Igreja no. mundo como sacramento de comunhão e salvação é parte de nossa reflexão teológica, porque "a evangelização não seria completa se não levasse em conta a interpelação recíproca que ao longo dos tempos se estabelece entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social do homem (EN 29).

477 A promoção humana implica atividades que ajudam a despertar a consciência do homem em todas as suas dimensões e a lutar por si mesmo como protagonista de seu próprio desenvolvimento humano e cristão.Educa para a convivência, dá. impulso à organização, fomenta a comunicação cristã dos bens, ajuda de modo eficaz a comunhão e a participação.

478 Para se conseguir a coerência do testemunho da comunidade cristã no empenho de libertação e de promoção humana, cada país e cada Igreja particular organizará sua pastoral social com meios permanentes e adequados que mantenham e estimulem o compromisso comunitário, garantindo a necessária coordenação de iniciativas, no diálogo constante com todos os membros da Igreja.A "Cáritas" e outros organismos que vêm trabalhando com eficácia há muitos anos, podem oferecer um bom serviço.

479 A teologia, a pregação, a catequese, para serem fiéis e completas, exigem ter diante dos olhos todo o homem e todos os homens e comunicar-lhes em forma oportuna e adequada "uma mensagem particularmente vigorosa em nossos dias sobre a libertação" (EN 29) "sempre no desígnio global da salvação" (EN 38).Parece, pois, necessário que digamos uma palavra esclarecedora sobre o próprio conceito de libertação no momento atual do Continente.

4.3. Discernimento da libertação em Cristo

480 Em Medellin se desenvolve um processo dinâmico de libertação integral cujos ecos positivos se fazem sentir na EN e na Mensagem do Papa João Paulo II a esta Conferência.É um anúncio que vem urgindo a Igreja e faz parte da própria essência da evangelização que tende à realização autêntica do homem.

481 Existem, porem, concepções e aplicações da libertação. Embora entre elas se descubram traços comuns, existem enfoques difíceis de se levar a uma adequada convergência.Por isso, o melhor é oferecer critérios que emanam do magistério e que servem para o necessário discernimento acerca da original concepção da libertação cristã.

482 Surgem dois elementos complementares e inseparáveis: a libertação de todas as servidões do pecado pessoal e social, de tudo o que transvia o homem e a sociedade e tem sua fonte no egoísmo, no mistério da iniqüidade, e a libertação para o crescimento progressivo no ser, pela comunhão com Deus e com os homens, que culmina na perfeita comunhão do céu, onde Deus é tudo em todos e não haverá mais lágrimas.

483 É uma libertação que se vai realizando na história, a libertação de nossos povos e a nossa própria pessoal e abrange as diversas dimensões da existência: o social, o político, o econômico, o cultural e o conjunto de suas relações.Em tudo isso há de circular a riqueza transformadora do Evangelho, com sua contribuição própria e específica, que se deve salvaguadar.Do contrário, como adverte Paulo VI: "A Igreja perderia seu sentido mais profundo; sua mensagem não teria nenhuma originalidade e facilmente poderia ser monopolizada e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos" (EN 32).

484 É necessário esclarecer que esta libertação se fundamenta em três grandes pilares que o Papa João Paulo II nos lembrou como orientação definida: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem.

485 Assim, se não chegamos à libertação do pecado com todas as suas seduções e idolatrias; se não ajudamos a concretizar a libertação que Cristo conquistou na cruz, mutilamos a libertação de modo irreparável, e a mutilamos igualmente se esquecemos o eixo da evangelização libertadora, que é a que transforma o homem em sujeito de seu próprio desenvolvimento individual e comunitário. Também a mutilamos se esquecemos a dependência e as escravidões que ferem direitos fundamentais que não são concedidos por governos ou instituições, ainda as mais poderosas, mas que têm como autor o próprio Criador e Pai.

486 É uma libertação que sabe utilizar meios evangélicos, com sua peculiar eficácia e que não recorre a nenhuma espécie de violência nem à dialética da luta de classes, mas à vigorosa energia e ação dos cristãos, que, movidos pelo Espírita, acodem para responder ao clamor de milhões e milhões de irmãos.

487 Como pastores da América Latina, temos razões gravíssimas para urgir a evangelização libertadora, não só porque é necessário recordar o pecado individual e social, mas também porque de Medellin para cá a situação se agravou na maioria de nossos países.

488 Alegra-nos comprovar exemplos numerosos de esforços por viver a evangelização libertadora em sua plenitude.Uma das principais tarefas para continuarmos animando a libertação cristã é a procura criativa de caminhos que se afastem de ambigüidades e de reducionismos (EN 32) em plena fidelidade à Palavra de Deus que nos é dada na Igreja e nos move ao alegre anúncio aos pobres, como um dos sinais messiânicos do Reino de Cristo.

489 Como muito bem salientou João Paulo II em seu discurso inaugural: "Há muitos sinais que ajudam a discernir quando se trata de uma libertação cristã e quando, ao contrário, se nutre mais de ideologias que lhe tiram a coerência com uma visão evangélica do homem, das coisas, dos acontecimentos (EN 35).São sinais que derivam dos conteúdos que anunciam, ou das atitudes concretas que, assumem os evangelizadores. É preciso observar em nível de conteúdos, qual a fidelidade à Palavra de Deus, à Tradição viva da Igreja, a seu Magistério.Quanto às atitudes, é necessário ponderar qual o seu sentido de comunhão com os bispos, em primeiro lugar, e com os outros setores do Povo de Deus: qual a contribuição que damos a construção efetiva da comunidade e qual a forma de dedicarmos com amor nossa solicitude para com os pobres, doentes, despojados, desamparados, angustiados e como, descobrindo neles a imagem de Jesus 'pobre e paciente', nos esforçamos por remediar suas necessidades e procuramos servir neles a Cristo (LG 8).Não nos enganemos: os fiéis humildes e simples, como por instinto evangélico, compreendem espontaneamente quando se serve na Igreja ao Evangelho e quando este é esvaziado e asfixiado com outros interesses".

490 Quem tem sobre o homem a visão que o cristianismo dá, assume por sua vez o compromisso de não poupar sacrifícios para garantir a todos a condição de autênticos filhos de Deus e irmãos em Jesus Cristo. Assim a evangelização libertadora tem sua plena realização na comunhão de todos em Cristo segundo a vontade do Pai de todos os homens.

4.4. Evangelização libertadora para uma convivência humana digna dos filhos de Deus

491 Nada, é divino e adorável fora de Deus. O homem cai na escravidão quando diviniza ou absolutiza a riqueza, o poder, o Estado, o sexo, o prazer ou qualquer criatura de Deus, inclusive seu próprio ser ou sua razão humana.O próprio Deus é a fonte de libertação radical de todas as formas de idolatria, porque a adoração do não adorável e a absolutização do relativo, levam à violação do que há de mais íntimo na pessoa humana: sua relação com Deus e sua realização pessoal.Eis a palavra libertadora por excelência: "Ao Senhor adorarás, e só a Ele prestarás culto" (Mt 4,10) . A queda dos ídolos restitui ao homem seu campo essencial de liberdade. Deus, livre por excelência, quer entrar em diálogo com um ser livre, capaz de fazer suas opções e exercer suas responsabilidades individualmente e em comunidade.Existe, pois, uma história humana que, embora tenha sua consistência própria e sua autonomia, está destinada a ser consagrada pelo homem a Deus. A verdadeira libertação, com efeito, liberta de uma opressão para poder chegar a um bem superior.O homem e os bens da terra.

492 Os bens e riquezas do mundo, por sua origem e natureza, segundo a vontade do Criador, são para servir efetivamente à utilidade e ao proveito de todos e cada um dos homens e dos povos.Por isso a todos e a cada um compete um direito primário e fundamental, absolutamente inviolável, de usar solidariamente esses bens, na medida do necessário, para uma realização digna da. pessoa humana.Todos os outros direitos, também o de propriedade e livre comércio lhe estão subordinados. Como nos ensina João Paulo II: "Sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social" .A propriedade compatível com aquele direito primordial é antes de tudo um poder de gestão e administração, que, embora não exclua o de domínio, não o torna absoluto nem ilimitado.Deve ser fonte de liberdade para todos, nunca de dominação nem de privilégios. É um dever grave e urgente fazê-lo retornar à sua finalidade primeira .Libertação do ídolo da riqueza.

493 Os bens da terra se convertem em ídolo e em sério obstáculo para o Reino de Deus , quando o homem concentra toda sua atenção em tê-los ou em cobiça-los. Então eles se tornam absolutos. "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" ( Lc 16,13 ).

494 A riqueza absolutizada é obstáculo para a verdadeira liberdade. Os contrastes cruéis de luxo e extrema pobreza, tão visíveis em todo o Continente, agravados, ademais, pela corrupção que muitas vezes invade a vida pública e profissional, manifestam até que ponto nossos países se encontram sob o domínio do ídolo da riqueza.

495 Essas idolatrias se concentram em duas formas opostas que têm uma mesma raiz: o capitalismo liberal e, como reação, o coletivismo marxista. Ambos são formas do que se pode chamar "injustiças institucionalizadas".

496 Finalmente, como já ficou dito, importa tomar consciência dos efeitos devastadores de uma industrialização descontrolada e de uma urbanização que vai tomando proporções alarmantes.Os esgotamentos dos recursos naturais e a contribuição do ambiente constituirão um problema dramático.Afirmamos uma vez mais a necessidade de uma profunda revisão da tendência consumiste das nações mais desenvolvidas; cumpre levar em consideração as necessidades elementares dos povos pobres que formam a maior parte do mundo.

497 O novo humanismo proclamado pela Igreja que rejeita toda idolatria permitirá "ao homem moderno encontrar-se a si mesmo, assumindo os valores do amor, da amizade, da oração e da contemplação. Assim poderá realizar em toda a sua plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é o passo, para cada um e para todos, de condições de vida menos humanas a condições mais humanas" (PP 20).Desse modo se planejará a economia a serviço do homem e não o homem a serviço da economia, como acontece nas duas formas de idolatria, a capitalista e a coletivista. Será a única maneira de que o "ter" não afogue o "ser".

O homem e o poder

498 As diversas formas do poder na sociedade pertencem fundamentalmente à ordem da criação. Portanto, levam em si a vontade essencial do serviço que devem prestar à comunidade humana.

499 A autoridade, necessária em qualquer sociedade, vem de Deus e consiste na faculdade de mandar segundo a reta razão.Por conseguinte, sua força obrigatória procede da ordem moral e dentro dela deve desenvolver-se para que obrigue em consciência. "A autoridade é sobretudo uma força moral".

500 O pecado corrompe o uso que os homens fazem do poder, levando-o ao abuso dos direitos dos outros, às vezes em formas mais ou menos absolutas.Isso ocorre mais notavelmente no exercício do poder político, por se tratar do campo das decisões que determinam a organização global do bem-estar temporal da comunidade e por servir mais facilmente não só aos abusos dos que detêm o poder , mas à absolutização do próprio poder, apoiados na força pública,.Diviniza-se o poder político quando na prática ele é tido como absoluto. Por isso, o uso totalitário do poder é uma forma de idolatria e como tal a Igreja o rejeita inteiramente (GS 75). Reconhecemos pesarosamente a presença de muitos regimes autoritários e mesmo opressivos em nosso Continente.Eles constituem um dos mais sérios obstáculos ao desenvolvimento dos direitos da pessoa, dos grupos e das próprias nações.

501 Infelizmente, em muitos casos isso chega ao ponto de que os próprios poderes políticos e econômicos de nossas nações, para além das normais relações recíprocas, estão sujeitos a centros mais poderosos que operam em escala internacional.Agrava a situação o fato de que estes centros de poder se acham estruturados em formas encobertas, presentes em toda parte, e se subtraem facilmente ao controle dos governos e dos próprios organismos internacionais.

502 É urgente libertar nossos povos do ídolo do poder absoluto para conseguir uma convivência social em justiça e liberdade.Com efeito, para que os povos latino-americanos possam cumprir a missão que lhes assinala a história como povos jovens, ricos em tradições e cultura, necessitam de uma ordem política que respeite a dignidade do homem, que garanta a concórdia e a paz interior da comunidade civil e em suas relações com as outras comunidades.Entre os anseios e exigências de nossos povos para que isso seja uma realidade, destacam-se:

503 A igualdade de todos os cidadãos com o direito e o dever de participar no destino da sociedade, com as mesmas oportunidades, dando sua contribuição para os ônus eqüitativamente distribuídos e obedecendo às leis legitimamente estabelecidas.

504 O exercício de suas liberdades, amparadas em instituições fundamentais que garantam o bem comum, no respeito aos direitos das pessoas e associações.

505 A legitima autodeterminação de nossos povos que lhes permita organizar-se segundo seu próprio gênio e a marcha de sua história (GS 74) e cooperar numa nova ordem internacional.

506 A urgência de restabelecer a justiça não só teórica e formalmente reconhecida, mas também posta eficazmente em prática, por instituições adequadas e realmente vigentes.

5. EVANGELIZAÇÃO, IDEOLOGIAS E POLÍTICA

5.1. Introdução

507 Nos últimos anos se percebe uma deterioração crescente do quadro politico-social de nossos países.

508 Neles se sente o peso de crises institucionais e econômicas e claros sintomas de corrupção e violência.

509 Essa violência é gerada e fomentada, tanto pela injustiça, que se pode chamar institucionalizada em diversos sistemas sociais, políticos e econômicos, quanto pelas ideologias que a transformam em meio para a conquista do poder.

510 Este último provoca, por sua vez, a proliferações de regimes de força, muitas vezes inspirados na ideologia da Segurança Nacional.

511 A Igreja, como Mãe e Mestra, perita em humanidade, deve discernir e iluminar, a partir do Evangelho e de sua doutrina social, as situações, os sistemas, as ideologias e a vida política do Continente. Deve fazer isso, embora saiba que se procura instrumentalizar sua mensagem.

512 Por isso, projeta a luz de sua palavra sobre a política e as ideologias, como mais um serviço a seus povos e como guia orientadora e segura para todos os que, de um modo ou de outro, devem assumir responsabilidades sociais.

5.2. Evangelização e política

513 A dimensão política, constitutiva do homem, representa um aspecto relevante da convivência humana.Possui um aspecto englobante, porque tem como fim o bem comum da sociedade. Mas nem por isso esgota a gama das relações sociais.

514 A fé cristã não despreza a atividade política; pelo contrário, a valoriza e a tem em alta estima.

515 A Igreja - falando ainda em geral, sem distinguir o papel que compete a seus diversos membros - sente como seu dever e direito estar presente neste campo da realidade: porque o cristianismo deve evangelizar a totalidade da existência humana, inclusive a dimensão política.Por isso ela critica aqueles que tendem a reduzir o espaço da fé à vida pessoal ou familiar, excluindo a ordem profissional, econômica, social e política, como se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem importância aí.

516 Efetivamente a necessidade da presença da Igreja, no âmbito político, provém do mais íntimo da fé cristã: do domínio de Cristo que se estende a toda a vida.Cristo marca a irmandade definitiva da humanidade; cada homem vale tanto quanto o outro: "Todos sois um em Cristo Jesus" (Gl 3,28).

517 Da mensagem integral de Cristo derivam uma antropologia e teologia originais que abrangem "a vida concreta, pessoal e social do homem" (EN 29).É uma mensagem que liberta porque salva da escravidão do pecado, raiz e fonte de toda opressão, injustiça e a discriminação.

518 Estas são algumas das razões da presença da Igreja no campo do político, para iluminar as consciências e anunciar uma palavra transformadora da sociedade.

519 A Igreja reconhece a devida autonomia do temporal (GS 36); isso vale para os governos, partidos, sindicatos e outros grupos no campo social e político.O fim que o Senhor determinou à sua Igreja é de ordem religiosa e, portanto, ao intervir neste campo, não a anima nenhuma intenção de ordem política, econômica ou social."Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a lei de Deus" (GS 42).

520 Interessa especialmente distinguir neste campo da política aquilo que corresponde aos leigos, o que compete aos religiosos e o que compete aos ministros da unidade da Igreja, o bispo com seu presbitério.

5.3. Conceitos de política e de compromisso político

521 Devemos distinguir dois conceitos de política e de compromisso político: primeiro, a política em seu sentido mais amplo que visa o bem comum, no âmbito nacional e no âmbito internacional.Corresponde-lhe precisar os valores fundamentais de toda a comunidade - a concórdia interna e a segurança externa - conciliando a igualdade com a liberdade, a autoridade pública com a legítima autonomia e participação das pessoas e grupos, a soberania nacional com a convivência e solidariedade internacional.Define também os meios e a ética das relações sociais. Neste sentido amplo, a política interessa à Igreja e, portanto, a seus pastores, ministros da unidade. É uma forma de dar culto ao único Deus, dessacralizando e ao mesmo tempo consagrando o mundo a Ele ( LG 34 ).

522 A Igreja contribui assim para promover os valores que devem inspirar a política, interpretando em cada nação as aspirações de seus povos especialmente os anseios daqueles que uma sociedade tenda a marginalizar. E o faz mediante seu testemunho, sua doutrina e sua multiforme ação pastoral.

523 Segundo: a realização concreta dessa tarefa política fundamental se faz normalmente através de grupos de cidadãos que se propõem conseguir e exercer o poder político para resolver as questões econômicas, políticas e sociais segundo seus próprios critérios ou ideologias.Neste sentido se pode falar de "política de partido". As ideologias elaboradas por esses grupos, embora se inspirem na doutrina cristã, podem chegar a diferentes conclusões.Por isso, nenhum partido político, por mais inspirado que esteja na doutrina da Igreja, pode arrogar-se a representação de todos os fiéis, já que seu programa concreto nunca poderá ter valor absoluto para todos (João Paulo II, Discurso Inaugural, I, 4-AAS, LXXI, p. 190).

524 A política partidarista é o campo próprio dos leigos (GS 43). Corresponde à sua condição leiga constituir e organizar partidos políticos, com ideologia e estratégia adequada. para alcançar seus legítimos fins.

525 O leigo encontra na doutrina social da Igreja os critérios adequados, à luz da visão cristã do homem. Por seu lado, a hierarquia lhe garantirá sua solidariedade, favorecendo sua formação e sua vida espiritual e estimulando-o em sua criatividade para que procure opções cada vez mais conformes com o bem comum e as necessidades dos mais fracos.

526 Os pastores, pelo contrario, uma vez que devem preocupar-se com a unidade, se despojarão de toda ideologia político-partidária que possa condicionar seus critérios e atitudes.Terão, assim, liberdade para evangelizar o político como Cristo, a partir de um Evangelho sem partidarismos nem ideologizações.O Evangelho de Cristo não teria tido tanto impacto na história, se Ele não o houvesse proclamado como uma mensagem religiosa. "Os Evangelhos mostram claramente como para Jesus era mais tentação o que alterasse sua missão de Servo de Javé .Não aceita a posição daqueles que misturavam as coisas de Deus com as atitudes meramente políticas" (João Paulo II, Discurso Inaugural, I, 4-AAS, LXXI, p. 190).

527 Os sacerdotes, também ministros da unidade e os diáconos, deverão submeter-se a idêntica renúncia pessoal.Se militassem em política partidarista, correriam o risco de absolutizá-la e radicalizá-la, dada sua vocação a ser "os homens do absoluto"."Mas na ordem econômica e social e principalmente na ordem política, em que se apresentam diversas opções concretas, ao sacerdote como tal não lhe cabe diretamente a decisão, nem a liderança, nem tampouco a estruturação de soluções" (Med., Sac. 19)."Ao assumir uma função diretiva (leadership), "militar" ativamente em um partido político, é algo que deve excluir qualquer presbítero, a não ser que, em circunstâncias concretas e excepcionais, o exija realmente o bem comum, obtendo o consentimento do bispo, consultado o conselho presbiteral e - se o caso o requer - também a Conferência Episcopal" (Sínodo 1971, Parte II, 2b). Certamente, a tendência atual da Igreja não está neste sentido.

528 Os religiosos, por sua forma de seguir a Cristo, segundo a função peculiar que lhes compete dentro da missão da Igreja, de acordo com seu carisma específico, também cooperam na evangelização do político.Numa sociedade pouco fraterna, dada ao consumismo e que se propõe como fim último desenvolvimento de suas forças produtivas mate riais, os religiosos têm que ser testemunhas de uma real austeridade de vida, de comunhão com os homens e de intensa relação com Deus. Deverão, pois, resistir, igualmente, à, tentação de comprometer-se em política partidarista, para não provocar a confusão dos valores evangélicos com uma ideologia determinada.

529 Uma atenta reflexão dos bispos, sacerdotes e religiosos sobre as palavras do Santo Padre, será preciosa orientação para seu serviço neste campo: "A alma que vive em contacto habitual com Deus e se move dentro do ardente raio de seu amor, sabe defender-se com facilidade da tentação de particularismos e antíteses, que criam o risco de dolorosas divisões; sabe interpretar, à justa luz do Evangelho, as opções pelos mais pobres e por cada uma das vítimas do egoísmo humano, sem ceder a radicalismos sócio-políticos, que com o tempo se revelam inoportunos, contraproducentes e geradores eles próprios de novas violações.Sabe aproximar-se das pessoas e inserir-se no meio do povo, sem questionar a própria identidade religiosa, nem obscurecer a 'originalidade específica' da própria vocação que deriva do peculiar 'seguimento de Cristo', pobre, casto e obediente.Um momento de verdadeira adoração tem mais valor e fruto espiritual do que a mais intensa atividade, ainda que se tratasse da própria atividade apostólica.Essa é a 'contestação' mais urgente que os religiosos devem opor a uma sociedade onde a eficácia veio a ser um ídolo, sobre cujo altar não poucas vezes se sacrifica até a própria dignidade humana" (João Paulo II aos Superiores Maiores Religiosos, 24-11-1978 ).

530 Os leigos dirigentes da ação pastoral não devem empregar sua autoridade em função de partidos ou ideologias.

5.4. Reflexão sobre a violência política

531 Diante da deplorável realidade de violência na América Latina, queremos pronunciar-nos com clareza.A tortura física e psicológica, os seqüestros, a perseguição de dissidentes políticos ou de suspeitos e a exclusão da vida pública, por causa das idéias são sempre condenáveis. Se tais crimes são realizados pela autoridade encarregada de tutelar o bem comum, tornam vis aos que os praticam, independentemente das razões aduzidas.

532 Com igual decisão a Igreja repele a violência terrorista e guerrilheira, cruel e incontrolável quando se desencadeia.De nenhum modo se justifica o crime como caminho de libertação. A violência gera inexoravelmente novas formas de opressão e escravidão, geralmente mais graves do que aquelas das quais se pretende libertar e homem.Mas, sobretudo, é um atentado contra a vida que só depende do Criador. Devemos salientar igualmente que quando uma ideologia apela para a violência, reconhece com isso sua própria insuficiência e debilidade.

533 Nossa responsabilidade de cristãos é promover de todos os modos os meios não violentos para restabelecer a justiça nas relações sócio-politicas e econômicas, segundo a doutrina do Concílio, que vale tanto para a vida nacional como para a vida internacional: "Só podemos calorosamente aplaudir aqueles que, para reivindicar os seus direitos, renunciam ao emprego da violência e recorrem aos meios de defesa, que aliás estão ao alcance também dos mais fracos, contanto que isso seja viável sem lesar direitos e obrigações de outros ou da comunidade" (GS 78).

534 "Devemos dizer e reafirmar que a violência não é nem cristã nem evangélica e que as transformações bruscas e violentas das estruturas serão enganosas, ineficazes em si mesmas e certamente não conformes com a dignidade do povo" (Paulo VI, discurso em Bogotá, 23-8-1968). Com efeito, "a Igreja está consciente de que as melhores estruturas e os sistemas mais idealizados logo se tornam desumanos se as inclinações do homem não forem sanadas, se não houver a conversão do coração e da mente por parte daqueles que vivem nessas estruturas ou as dirigem" (EN 36).

5.5. Evangelização e ideologias

Discernimento sobre as ideologias na América Latina e os sistemas que nelas se inspiram.

535 Entre as múltiplas definições que se podem propor, chamamos aqui ideologia toda concepção que ofereça uma visão dos diversos aspectos da vida, desde o ponto de vista de um grupo determinado da sociedade.A ideologia manifesta as aspirações desse grupo, convida para certa solidariedade e combatividade e fundamenta sua legitimação em valores específicos.Toda ideologia é parcial, já que nenhum grupo particular pode pretender identificar suas aspirações com as da sociedade global. Uma ideologia será, pois, legítima se os interesses que defende o forem e se respeitar os direitos fundamentais dos demais grupos da nação.Neste sentido positivo, as ideologias surgem como algo necessário para a esfera social, enquanto são mediações para a ação.

536 As ideologias trazem em si mesmas a tendência a absolutizar os interesses que defendem, a visão que propõem e a estratégia que promovem. Neste caso, se transformam em verdadeiras "religiões leigas".Apresentam-se como "uma explicação última e suficiente de tudo e se constrói assim um novo ídolo, do qual se aceita às vezes, sem se dar conta, o caráter totalitário e obrigatório" (0A 28).Nesta perspectiva não é de estranhar que as ideologias tentem instrumentalizar pessoas e instituições a serviço da eficaz consecução de seus fins. Eis o lado ambíguo e negativo das ideologias.

537 Não devemos analisar as ideologias somente do ponto de vista de seus conteúdos conceituais. Elas constituem, transcendendo a eles, fenômenos vitais de dinamismo envolvente, contagioso.São correntes de aspirações com tendência para a absolutização, dotadas também de poderosa força de conquista e fervor redentor. Isso lhes confere uma "mística" especial e a capacidade de penetrar os diversos ambientes de modo muitas vezes irresistível.Seus slogans, suas expressões típicas, seus critérios, chegam a marcar profundamente e com facilidade mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais.Desse modo, muitos vivem e militam praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem haverem tomado consciência disso.Este é outro aspecto que exige constante revisão e vigilância. Tudo isso se aplica tanto às ideologias que legitimam a situação atual, como àquelas que pretendem mudá-la.

538 Para o necessário discernimento e julgamento crítico sobre as ideologias, devem os cristãos apoiar-se no "rico e complexo patrimônio que a Evangelii Nuntiandi denomina Doutrina Social ou Ensinamento Social da Igreja" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 7 - AAS, LXXI, p. 203 ).

539 Esta Doutrina ou Ensinamento Social da Igreja expressa "o que ela possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade" (PP 13).Deixa-se interpelar e enriquecer pelas ideologias no que elas têm de positivo e, por sua vez, as interpela, relativiza e critica.

540 Nem o Evangelho nem a Doutrina ou Ensinamento Social que dele provém são ideologias. Pelo contrário, representam para estas uma poderosa fonte de questionamentos de seus limites e ambigüidades.A originalidade sempre nova da mensagem evangélica deve ser permanentemente esclarecida e defendida diante das tentativas de ideologização.

541 A exaltação desmedida e os abusos do Estado não podem, contudo, fazer esquecer a necessidade das funções do Estado moderno, respeitoso dos direitos e das liberdades fundamentais.Estado que se apoie sobre uma ampla base de participação popular, exercida através de diversos grupos intermédios.Propulsor de um desenvolvimento autônomo, acelerado e eqüitativo, capaz de afirmar o ser nacional diante de pressões ou interferências indevidas, tanto em nível interno como internacional.Capaz de adotar uma posição de ativa cooperação com os esforços de integração continental e no âmbito da comunidade internacional. Estado, enfim, que evite o abuso do poder monolítico, concentrado nas mãos de poucos.Na América Latina há diversas ideologias que exigem uma análise.

542 a) O liberalismo capitalista, idolatria da riqueza em sua forma individual. Reconhecemos a força que infunde a capacidade criadora da liberdade humana e que foi o propulsar do progresso.Contudo, "considera o lucro como o motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos meios de produção como direito absoluto, sem limites nem obrigações sociais correspondentes" (PP 26).Os privilégios ilegítimos, derivados do direito absoluto de propriedade, causam contrastes escandalosos e uma situação de dependência e opressão, tanto no âmbito nacional quanto no internacional.Embora seja evidente que em alguns países se atenuou sua expressão histórica original, devido à influência de uma necessária legislação social e de precisas intervenções do Estado, em outros lugares ainda manifesta persistência ou, mesmo, retrocesso a formas primitivas e de menor sensibilidade social.

543 b) O coletivismo marxista conduz igualmente - por seus pressupostos materialistas - a uma idolatria da riqueza, mas em sua forma coletiva.Embora nascido de uma crítica positiva ao fetichismo do comércio e ao desconhecimento do valor humano do trabalho, não conseguiu ir à raiz dessa idolatria que consiste na recusa do Deus de amor e justiça, único Deus adorável.

544 O motor de sua dialética é a luta de classes. Seu objetivo, a sociedade sem classes, que se alcança através de uma ditadura proletária que, enfim, estabelece a ditadura do partido.Todas as suas experiências históricas concretas, como sistema de governo, se realizaram dentro do quadro de regimes totalitários fechados a toda. possibilidade de crítica e retificação. Alguns crêem possível separar diversos aspectos do marxismo, em particular sua doutrina e sua análise.Recordamos com o Magistério pontifício que "seria ilusório e perigoso chegar a esquecer o nexo íntimo que os une radicalmente; aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária e violenta a que conduz tal processo" (OA 34).

545 Cumpre salientar aqui o risco de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza partindo de uma práxis que recorre à análise marxista.Suas conseqüências são a total politizarão da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé no das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã.

546 Ambas as ideologias assinaladas - liberalismo capitalista e marxismo - se inspiram em humanismos fechados a qualquer perspectiva transcendente. Uma, devido a seu ateísmo prático; a outra, por causa da profissão sistemática de um ateísmo militante.

547 c) Nos últimos anos vem se impondo em nosso Continente a chamada "Doutrina da Segurança Nacional", que na realidade é mais uma ideologia do que uma doutrina.Está vinculada a um determinado modelo econômico-político, de características elitistas e verticalistas, que suprime a participação ampla do povo nas decisões políticas. Pretende mesmo justificar-se em certos países da América.Latina como doutrina defensora da civilização ocidental cristã. Desenvolve um sistema repressivo, em conformidade com seu conceito de "guerra permanente". Em alguns casos expressa uma clara intencionalidade de protagonismo geopolítico.

548 Uma convivência fraterna, entendemos perfeitamente, necessita de um sistema de segurança para impor o respeito de uma ordem social justa, que permita a todos cumprir sua missão com relação ao bem comum.Este, portanto, exige que as medidas de segurança estejam sob o controle de um poder independente, capaz de julgar sobre as violações da lei e de garantir medidas que as corrijam.

549 A Doutrina da Segurança Nacional, entendida como ideologia absoluta, não se harmonizaria com uma visão cristã do homem enquanto responsável pela, realização de um projeto temporal nem do Estado, enquanto administrador do bem comum.Impõe, com efeito, a tutela do povo por elites de poder, militares e políticas, e conduz a uma acentuada desigualdade de participação nos resultados do desenvolvimento.

550 Em plena conformidade com Medellin, insistimos que "o sistema liberal capitalista e a tentação do sistema marxista parecem ter esgotado em nosso Continente as possibilidades de transformar as estruturas econômicas.Ambos os sistemas atentam contra a dignidade da pessoa humana; pois um tem como pressuposto a primazia do capital, seu poder e sua discriminatória utilização em função do lucro; o outro, embora ideologicamente sustente um humanismo, visa antes ao homem coletivo e, na prática, se traduz numa concentração totalitária do poder do Estado. Devemos denunciar que a América Latina se encontra fechada entre essas duas opções e permanece dependente de um ou outro dos centros de poder que canalizam sua economia" (Med; Justiça 10).

551 Diante desta realidade, "a Igreja quer manter-se livre com relação aos sistemas opostos, para optar só pelo homem.Quaisquer que sejam as misérias ou sofrimentos que aflijam ao homem, não será através da violência, dos jogos de poder, dos sistemas políticos, mas mediante a verdade sobre o homem, que a humanidade encontrará, seu caminho para um futuro melhor" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 3 - AAS, LXXI, p. 199).Sobre a base deste humanismo os cristãos obterão força para superar a porfiada alternativa e contribuir para a construção de uma nova civilização, justa, fraterna e aberta para o transcendente.Será, além disso, testemunho de que as esperanças escatológicas animam e dão sentido às esperanças humanas.

552 Para essa ação corajosa e criativa, o cristão fortalecerá sua identidade nos valores originais da antropologia cristã. A Igreja "não precisa, portanto, recorrer a sistemas e ideologias para amar, defender e colaborar na libertação do homem: no centro da mensagem da qual é depositária e pregoeira, ela encontra inspiração para atuar em favor da fraternidade, da justiça, da paz, contra todas as dominações, escravidões, discriminações, atentados à liberdade religiosa, opressões contra o homem e tudo o que atenta contra a vida" (João Paulo II, Discurso Inaugural, III, 2 - AAS, LXXI, p. 199).

553 Inspirando-se nesses conteúdos da antropologia cristã, é indispensável o compromisso dos cristãos na elaboração de projetos históricos conformes às necessidades de cada momento e de cada cultura.

554 Cabe ao cristão ter atenção e discernimento especiais em seu eventual compromisso em movimentos históricos nascidos de diversas ideologias que, por outro lado, são diferentes delas.De acordo com a doutrina de Pacem m Terris (55 e 152) retomada em Octogesima Adveniens, não se pode identificar as teorias filosóficas falsas com os movimentos históricos originados nelas, na medida em que estes movimentos históricos podem ser influenciados em sua evolução.O compromisso dos cristãos nesses movimentos, em todo caso, coloca para eles certas exigências de fidelidade perseverante que facilitarão seu papel evangelizador:

555 a) Discernimento eclesial, em comunhão com os pastores, segundo OA 4.

556 b) Fortalecimento de sua identidade, nutrindo-a nas verdades da fé e sua explicitação na Doutrina ou Ensinamento Social da Igreja e o apoio de uma rica vida sacramental e de oração.

557 c) Consciência crítica das dificuldades, limitações, possibilidades e valores destas convergências.

5.6. Riscos de instrumentalização da Igreja e de atuação de seus ministros

558 As ideologias e os partidos, ao proporem uma visão absolutizada do homem à qual tudo submetem, inclusive o próprio pensamento humano, tratam de utilizar a Igreja ou de tirar-lhe sua legítima independência.Esta instrumentalização, que é sempre um risco na vida política, pode provir dos próprios cristãos e mesmo de sacerdotes e religiosos, quando anunciam um Evangelho sem conexões econômicas, sociais, culturais e políticas.Na prática, esta mutilação equivale a certo conluio - em hora inconsciente - com a ordem estabelecida.

559 A tentação de outros grupos, pelo contrário, é considerar uma política determinada como a primeira urgência, como uma condição prévia para que a Igreja possa cumprir sua missão.É identificar a mensagem cristã com uma ideologia e submetê-la a ela, convidando a uma "releitura" do Evangelho a partir de uma opção política . Pois bem, é preciso ler o político a partir do Evangelho e não o contrário.

560 O integrismo tradicional espera o Reino, acima de tudo, do retrocesso da história para a reconstrução de uma cristandade no sentido medieval: aliança estreita entre o poder civil e o poder eclesiástico.

561 A radicalização de grupos opostos cai na mesma cilada, esperando o Reino de uma aliança estratégica da Igreja com o marxismo, excluindo qualquer outra alternativa. Não se trata para eles somente de ser marxista, mas de ser marxista em nome da Fé.

5.7. Conclusão

562 A missão da Igreja em meio dos conflitos que ameaçam o gênero humano e o Continente latino-americano, em face das violações da justiça e da liberdade, em face da injustiça institucionalizada de regimes que se inspiram em ideologias opostas e em face da violência terrorista é imensa e mais do que nunca necessária.Para cumprir essa missão, requer-se a ação da Igreja toda - pastores, ministros consagrados, religiosos, leigos, cada qual em sua missão própria.Uns e outros, unidos a Cristo na oração e na abnegação, se comprometerão, sem ódios nem violências, até as últimas conseqüências, na conquista de uma sociedade mais justa, livre e pacífica, anseio dos povos da América Latina e fruto indispensável de uma evangelização libertadora.

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