22 de dezembro de 2024 Doar
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Discurso do Papa aos bispos, clero, religiosos e catequistas de Moçambique

Papa Francisco na Catedral da Imaculada. | Edward Pentin / ACI Prensa

A Catedral da Imaculada Conceição foi o cenário do encontro que o Papa Francisco teve com os Bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, consagrados, seminaristas, catequistas e animadores de pastoral de Moçambique, nesta quinta-feira, 5 de setembro, segundo dia de sua viagem pastoral à África, que também o levará a Madagascar e Maurício.

Após escutar os testemunhos de um sacerdote, uma religiosa e um catequista, o Pontífice refletiu sobre a vocação ao sacerdócio e à vida consagrada. Uma de suas reflexões tratou sobre a crise de identidade sacerdotal.

"Perante a crise de identidade sacerdotal, talvez tenhamos que sair dos lugares importantes e solenes; temos de voltar aos lugares onde fomos chamados, onde era evidente que a iniciativa e o poder eram de Deus".

A seguir, o texto completo do discurso do Papa Francisco:

Amados irmãos bispos,
Queridos sacerdotes, religiosas, religiosos e seminaristas,
Prezados catequistas e animadores de comunidades cristãs,
Caros irmãos e irmãs, boa tarde!

Agradeço a saudação de boas-vindas de Dom Hilário em nome de todos vós. Com afeto e grande reconhecimento, vos saúdo a todos. Sei que fizestes um grande esforço para estar aqui. Juntos, queremos renovar a resposta à chamada que uma vez fez arder os nossos corações e que a Santa Mãe Igreja nos ajudou a discernir e confirmar com a missão.

Obrigado pelos vossos testemunhos, que falam das horas difíceis e sérios desafios que viveis, reconhecendo limitações e debilidades; mas também admirando a misericórdia de Deus. Fiquei contente ao ouvir dizer, da boca de uma catequista: «Somos uma Igreja inserida num povo heroico», que se entende de sofrimentos, mas mantém viva a esperança. Com este são orgulho pelo vosso povo, que convida a renovar a fé e a esperança, queremos renovar o nosso sim. Como fica feliz a Santa Mãe Igreja ao ouvir-vos manifestar o amor ao Senhor e à missão que vos deu! Como ela fica contente ao ver o vosso desejo de voltar sempre ao «primitivo amor» (Ap 2, 4)!

Peço ao Espírito Santo que vos dê sempre a lucidez de chamar a realidade pelo seu nome, a coragem de pedir perdão e a capacidade de aprender a ouvir o que Ele nos quer dizer.

Queridos irmãos e irmãs, gostemos ou não, somos chamados a encarar a realidade como ela é. Os tempos mudam e devemos reconhecer que muitas vezes não sabemos como inserir-nos nos novos cenários; podemos sonhar com as «cebolas do Egito» (Nm 11, 5), esquecendo que a Terra Prometida está à frente, não atrás, e neste lamento pelos tempos passados, vamo-nos petrificando. Vamos nos mumificando. Não é uma boa coisa um Bispo, um sacerdote, inclusive um catequista mumificado. Não, não é bom. Em vez de professar uma Boa Nova, o que anunciamos é algo cinzento que não atrai nem inflama o coração de ninguém. Essa é a tentação.

Encontramo-nos nesta catedral, dedicada à Imaculada Conceição da Virgem Maria, para compartilhar como família aquilo que nos acontece; como família, que nasceu naquele sim que Maria deu ao anjo. Ela, nem por um momento olhou para trás. Quem narra estes acontecimentos do início do mistério da Encarnação é o evangelista Lucas. No seu modo de o fazer, talvez possamos descobrir resposta para as perguntas que fizestes hoje. Um Bispo, um sacerdote, a irmã catequista... Os seminaristas não fizeste! Talvez possamos encontrar também o estímulo necessário para responder com a mesma generosidade e solicitude de Maria.

São Lucas apresenta em paralelo os acontecimentos relacionados com São João Batista e com Jesus Cristo; pretende que, no contraste, descubramos aquilo que se vai apagando do modo de ser de Deus e de relacionar-se com Ele no Antigo Testamento, e o novo modo que nos traz o Filho de Deus feito homem. De certa forma, no Antigo Testamento, ele desce, e de uma nova maneira que Jesus traz. De um modo, no Antigo Testamento, ele desce, e de um novo modo que traz Jesus.

É evidente que, nas duas Anunciações, há um anjo. Entretanto, numa, a aparição dá-se na Judeia, na mais importante das cidades – Jerusalém – e não acontece num lugar qualquer, mas no templo e, dentro dele, no Santo dos Santos; dirige-se a um varão e… sacerdote. Ao passo que o anúncio da Encarnação é feito na Galileia, a mais remota e conflituosa das regiões, numa pequena aldeia – Nazaré –, numa casa e não na sinagoga ou lugar religioso, feito a uma leiga e... mulher. Que mudou? Tudo. E, nesta mudança, está a nossa identidade mais profunda.

Perguntáveis que fazer com a crise de identidade sacerdotal, como lutar contra ela? A propósito, o que vou dizer relativamente aos sacerdotes é algo que todos (bispos, catequistas, consagrados, seminaristas) somos chamados a cultivar e fomentar.

Perante a crise de identidade sacerdotal, talvez tenhamos que sair dos lugares importantes e solenes; temos de voltar aos lugares onde fomos chamados, onde era evidente que a iniciativa e o poder eram de Deus. Ninguém de nós foi chamado a um lugar importante, ninguém.

Às vezes sem querer, sem culpa moral, habituamo-nos a identificar a nossa atividade cotidiana de sacerdotes com certos ritos, com reuniões e colóquios, onde o lugar que ocupamos na reunião, na mesa ou na aula é de hierarquia; parecemo-nos mais com Zacarias do que com Maria. «Creio não exagerar se dissermos que o sacerdote é uma pessoa muito pequena: a grandeza incomensurável do dom que nos é dado para o ministério relega-nos entre os menores dos homens.

O sacerdote é o mais pobre dos homens – sim, o sacerdote é o mais pobre dos homens –, se Jesus não o enriquece com a sua pobreza; é o servo mais inútil, se Jesus não o trata como amigo; é o mais louco dos homens, se Jesus não o instrui pacientemente como fez com Pedro; o mais indefeso dos cristãos, se o Bom Pastor não o fortifica no meio do rebanho.

Não há ninguém menor que um sacerdote deixado meramente às suas forças; por isso, a nossa oração de defesa contra toda a cilada do Maligno é a oração da nossa Mãe: sou sacerdote, porque Ele olhou com bondade para a minha pequenez (cf. Lc 1, 48)» (Homilia na Missa Crismal, 17 de abril de 2014).

Voltar a Nazaré pode ser o caminho para enfrentar a crise de identidade. Jesus chama, depois da ressurreição, a voltar a Galileia para encontra-los. Voltar a Nazaré, ao primeiro chamado. Voltar a Galileia para resolver a crise de identidade. Voltar a Nazaré para nos renovarmos como pastores-discípulos missionários.

 Vós próprios faláveis de certo exagero na preocupação de gerar recursos para o bem-estar pessoal, por «caminhos tortuosos» que muitas vezes acabam por privilegiar atividades com uma retribuição garantida e criam resistências a dedicar a vida ao pastoreio diário.

A imagem desta donzela simples na sua casa, em contraste com toda a estrutura do templo e de Jerusalém, pode ser o espelho onde vejamos as nossas complicações e preocupações que obscurecem e rarefazem a generosidade do nosso sim.

As dúvidas e a necessidade de explicações de Zacarias destoam com o sim de Maria que solicita apenas saber como se há de verificar tudo o que lhe vai acontecer. Zacarias não pode superar a preocupação de controlar tudo, não pode deixar a lógica de ser e sentir-se responsável e autor do que irá acontecer. Maria não duvida, não olha para Si mesma: entrega-Se, confia. É esgotante viver o vínculo com Deus como Zacarias, como um doutor da Lei: sempre cumprindo, sempre julgando que o salário é proporcional ao esforço feito, que é mérito meu se Deus me abençoa, que a Igreja tem o dever de reconhecer as minhas virtudes e esforços.

Não podemos correr atrás daquilo que redunda em benefícios pessoais; os nossos cansaços devem estar mais relacionados com «a nossa capacidade de compaixão (tenho capacidade de compaixão?): são compromissos nos quais o nosso coração estremece e se comove. Irmãos e irmãs, a Igreja pede a capacidade de compaixão.

Alegramo-nos com os noivos que vão casar; rimos com a criança que trazem para batizar; acompanhamos os jovens que se preparam para o matrimônio e para ser família; entristecemo-nos com quem recebe a extrema-unção no leito do hospital; choramos com os que enterram uma pessoa querida» (Homilia na Missa Crismal, 2 de abril de 2015).

Consagramos horas e dias a acompanhar aquela mãe com AIDS, aquele menino que ficou órfão, aquela avó encarregada de tantos netos ou aquele jovem que veio para a cidade e está desesperado porque não encontra trabalho... «Tantas emoções! Se tivermos o coração aberto, estas emoções e tanto carinho cansam o coração do pastor.

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Para nós, sacerdotes, as histórias do nosso povo não são um noticiário: conhecemos a nossa gente, podemos adivinhar o que se passa no seu coração; e o nosso, sofrendo com eles, vai-se desgastando, divide-se em mil pedaços, compadece-se e parece até ser comido pelas pessoas: "tomai, comei". Esta é a palavra que o sacerdote de Jesus sussurra sem cessar, quando está a cuidar do seu povo fiel: "tomai e comei, tomai e bebei..."

E, assim, a nossa vida sacerdotal se vai doando no serviço, na proximidade ao povo fiel de Deus…, etc., o que sempre, sempre cansa» (Ibid., 2 de abril de 2015). Irmãos e irmãs, a proximidade cansa, sempre cansa. A proximidade ao santo povo de Deus. A proximidade cansa. É belo encontrar sacerdotes, uma irmã, um catequista que se cansa com a proximidade.

Renovar a chamada passa, muitas vezes, por verificar se os nossos cansaços e preocupações têm a ver com um certo «mundanismo espiritual» ditado «pelo fascínio de mil e uma propostas de consumo a que não conseguimos renunciar para caminhar, livres, pelas sendas que nos conduzem ao amor dos nossos irmãos, ao rebanho do Senhor, às ovelhas que aguardam pela voz dos seus pastores» (Homilia na Missa Crismal, 24 de março de 2016); renovar a chamada passa por optar, dizer sim e cansar-nos com aquilo que é fecundo aos olhos de Deus, que torna presente, encarna o seu Filho Jesus. Oxalá encontremos, neste saudável cansaço, a fonte da nossa identidade e felicidade! A proximidade cansa. Este cansaço é a santidade.

Oxalá os nossos jovens descubram em nós que nos deixamos «tomar e comer», e seja isso mesmo o que os leva a interrogar-se sobre o seguimento de Jesus e que eles, deslumbrados com a alegria de uma entrega diária não imposta mas maturada e escolhida no silêncio e na oração, queiram dar o seu sim.

Tu que ainda te interrogas ou tu que já estás a caminho de uma consagração definitiva dar-te-ás conta de que «a ansiedade e a velocidade de tantos estímulos que nos bombardeiam fazem com que não haja lugar para aquele silêncio interior onde se percebe o olhar de Jesus e se ouve a sua chamada. Entretanto receberás muitas propostas bem confeccionadas, que parecem belas e intensas, mas com o passar do tempo, deixar-te-ão simplesmente vazio, cansado e sozinho.

Não deixes que isto te aconteça, porque o turbilhão deste mundo arrasta-te numa corrida sem sentido, sem orientação, nem objetivos claros, e deste modo se malograrão muitos dos teus esforços. Procura, antes, aqueles espaços de calma e silêncio que te permitam refletir, rezar, ver melhor o mundo ao teu redor e então sim, juntamente com Jesus, poderás reconhecer qual é a tua vocação nesta terra» (Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit, 277).

Aquele jogo de contrastes, que nos apresenta o evangelista, culmina no encontro das duas mulheres: Isabel e Maria. A Virgem visita a sua prima idosa e tudo é festa, dança e louvor. Há uma parte de Israel que entendeu a mudança profunda e vertiginosa do projeto de Deus: por isso aceita ser visitada, por isso o menino salta no ventre. Por um momento, numa sociedade patriarcal, o mundo dos homens retrai-se, emudece como Zacarias.

Hoje também nos falou uma catequista, uma mulher moçambicana que nos recordou que nada vos fará perder o entusiasmo de evangelizar, de cumprir o vosso compromisso batismal. Vossa vocação é evangelizar. A vocação da Igreja é evangelizar. A identidade da Igreja é evangelizar. Não fazer proselitismo. O proselitismo não é evangelização. O proselitismo não é cristão. Nossa vocação é evangelizar. A identidade da Igreja é evangelizar.

E, nela, estão todos os que saem ao encontro dos seus irmãos: tanto os que visitam como Maria, como os que, deixando-se visitar, aceitam de bom grado que o outro os transforme compartilhando a sua cultura, os seus modos de viver a fé e de a exprimir.

A inquietação por ti expressa mostra-nos que a inculturação será sempre um desafio, como a «viagem» entre estas duas mulheres que ficarão mutuamente transformadas pelo encontro, o diálogo e o serviço. «As Igrejas particulares hão de promover ativamente formas, pelo menos incipientes, de inculturação.

Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cômodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 129).

A «distância» entre Nazaré e Jerusalém é encurtada, torna-se inexistente por aquele sim de Maria. Porque as distâncias, os regionalismos e os partidarismos, a construção constante de muros, minam a dinâmica da encarnação, que derrubou o muro que nos separava (cf. Ef 2, 14). Vós – pelo menos os mais velhos –, que fostes testemunhas de divisões e rancores que acabaram em guerras, tendes de estar sempre dispostos a «visitar-vos», a encurtar as distâncias. A Igreja de Moçambique é convidada a ser a Igreja da Visitação; não pode ser parte do problema das competências, menosprezos e divisões de uns contra os outros, mas porta de solução, espaço onde sejam possíveis o respeito, o intercâmbio e o diálogo. A pergunta formulada sobre o modo de comportar-se perante um matrimônio inter-religioso desafia-nos quanto a esta tendência persistente que temos para a fragmentação, para separar em vez de unir. E o mesmo se passa com o vínculo entre nacionalidades, entre raças, entre os do norte e os do sul, entre comunidades, sacerdotes e bispos.

É desafio porque, até se desenvolver «uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme», requer-se «um processo constante no qual cada nova geração está envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer integrar-se e aprender a fazê-lo». É o requisito necessário para a «construção de um povo em paz, justiça e fraternidade», para «o desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 220.221).

Tal como Maria caminhou para casa de Isabel, assim também nós da Igreja temos que aprender o caminho frente a novas problemáticas, procurando não ficar paralisados por uma lógica que contrapõe, divide, condena. Ponde-vos a caminho e buscai uma resposta para estes desafios pedindo a assistência segura do Espírito Santo. É Ele o Mestre capaz de mostrar os novos caminhos a percorrer.

Reavivemos, pois, a nossa chamada vocacional, façamo-lo sob este magnífico templo dedicado a Maria e que o nosso sim comprometido proclame as grandezas do Senhor e alegre o espírito do nosso povo em Deus nosso Salvador (cf. Lc 1, 46-47). E encha de esperança, paz e reconciliação o vosso país, o nosso querido Moçambique.

Peço-vos, por favor, que rezeis e façais rezar por mim.

Que o Senhor vos abençoe e a Virgem Santíssima vele por vós.

Obrigado!

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