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Homilia do papa Francisco no Domingo da Palavra de Deus 2022

Papa Francisco no Domingo da Palavra de Deus 2020. | Daniel Ibáñez / ACI Prensa

Hoje, 23 de janeiro, o papa Francisco presidiu uma missa na Basílica de São Pedro, no Vaticano, por ocasião da celebração do Domingo da Palavra de Deus, instituído pelo próprio papa no motu proprio Aperuit Illis de 30 de setembro de 2019. Mas, no Brasil, o dia da Bíblia continua sendo o último domingo de setembro.

Em sua homilia, Francisco convidou a voltar a colocar a Palavra de Deus "no centro da pastoral e da vida da Igreja" para escutá-la, rezar com ela para colocá-la em prática.

"Irmãs e irmãos, a Palavra de Deus transforma-nos – a rigidez não nos transforma, dissimula – a Palavra de Deus transforma-nos penetrando na alma como uma espada. Com efeito, se por um lado consola, desvendando-nos o rosto de Deus, por outro provoca e sobressalta-nos, fazendo-nos cientes das nossas contradições. Põe-nos em crise. Não nos deixa tranquilos, se o preço a pagar por esta tranquilidade é um mundo dilacerado pela injustiça e pela fome e quem paga o preço são sempre os mais frágeis", alertou o Papa.

A seguir, a homilia completa do papa Francisco:

Encontramos, na primeira Leitura e no Evangelho, dois gestos paralelos: o sacerdote Esdras coloca em lugar elevado o livro da lei de Deus, abre-o e proclama-o diante de todo o povo; Jesus, na sinagoga de Nazaré, abre o rolo da Sagrada Escritura e, na frente de todos, lê uma passagem do profeta Isaías. Estas duas cenas comunicam-nos uma realidade fundamental: no centro da vida do povo santo de Deus e do caminho da fé, não estamos nós com as nossas palavras; no centro, está Deus com a sua Palavra.

Tudo teve início pela Palavra que Deus nos dirigiu. Em Cristo, sua Palavra eterna, o Pai «escolheu-nos antes da fundação do mundo» (Ef 1, 4). Com a sua Palavra, criou o universo: «Ele ordenou e tudo foi criado» (Sal 33, 9). Desde os tempos antigos, falou-nos por meio dos profetas (cf. Heb 1, 1); por fim, na plenitude do tempo (cf. Gal 4, 4), enviou-nos a sua própria Palavra, o Filho unigénito. Por isso no Evangelho, terminada a leitura de Isaías, Jesus anuncia uma coisa inaudita: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura» (Lc 4, 21). Cumpriu-se: a Palavra de Deus já não é uma promessa, mas realizou-se. Em Jesus, fez-Se carne. Por obra do Espírito Santo, veio habitar no meio de nós e quer habitar em nós, para satisfazer os nossos anseios e curar as nossas feridas.

Irmãs e irmãos, tenhamos os olhos fixos em Jesus, como as pessoas na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4, 20) – fixavam-no, era um deles: Que fenómeno! Que fará este de quem tanto se fala? – e acolhamos a sua Palavra. Meditemos hoje em dois aspetos interligados da mesma: a Palavra desvenda Deus e a Palavra leva-nos ao homem. Está no centro: desvenda Deus e leva-nos ao homem.

Antes de mais nada, a Palavra desvenda Deus. Jesus, no início da sua missão, ao comentar aquela passagem particular do profeta Isaías, anuncia claramente uma opção: veio para libertar os pobres e os oprimidos (cf. 4, 18). Assim nos desvenda, precisamente através das Escrituras, o rosto de Deus como o d'Aquele que cuida da nossa pobreza e tem a peito o nosso destino. Não é patrão enrocado nos céus – uma imagem perversa de Deus! Ele não é assim -, mas o Pai que acompanha os nossos passos. Não é observador frio, distante e impassível, um Deus «matemático». É o Deus-connosco que Se apaixona pela nossa vida e empenha-Se nela a ponto de chorar as nossas lágrimas. Não é deus neutral e indiferente, mas o Espírito amante do homem, que nos defende, aconselha, toma posição a nosso favor, entra em campo e compromete-Se com a nossa dor. Nesta, sempre está presente. Eis «a Boa-Nova» (4, 18), que Jesus proclama diante do olhar atónito dos presentes: Deus está perto e quer cuidar de mim, de ti, de todos. Esta é o traço distintivo de Deus: a proximidade. Assim se define a Si próprio, quando diz ao povo no Deuteronómio: «Qual povo tem os seus deuses tão próximos de si, como Eu estou próximo de ti?» (cf. Dt 4, 7). O Deus próximo com uma proximidade compassiva e terna, quer aliviar-te dos pesos que te esmagam, quer aquecer o frio dos teus invernos, quer iluminar os teus dias sombrios, quer sustentar os teus passos incertos. E fá-lo através da sua Palavra, com a qual te fala para reacender a esperança por entre as cinzas dos teus medos, para te fazer reencontrar a alegria nos labirintos das tuas tristezas, para encher de esperança a amargura das solidões. Faz-te andar, mas não num labirinto; faz-te andar no caminho, para O encontrares dia a dia cada vez mais.

Irmãos, irmãs, perguntemo-nos: trazemos no coração esta imagem libertadora de Deus, o Deus próximo, o Deus compassivo, o Deus terno? Ou imaginamo-Lo como um juiz rigoroso, um rígido guarda alfandegário da nossa vida? A nossa é uma fé que gera esperança e alegria, ou – pergunto-me… – dentro de nós há ainda uma fé acabrunhada pelo medo, uma fé medrosa? Qual é o rosto de Deus que anunciamos na Igreja: o Salvador que liberta e cura, ou o Deus Temível que esmaga avivando os sentimentos de culpa? Para nos convertermos ao verdadeiro Deus, Jesus indica-nos por onde começar: pela Palavra. Esta, ao narrar a história do amor de Deus por nós, liberta-nos dos medos e preconceitos sobre Ele, que apagam a alegria da fé. A Palavra derruba os ídolos falsos, desmascara as nossas fantasias, destrói as representações demasiado humanas de Deus e traz-nos de volta ao seu rosto verdadeiro, à sua misericórdia. A Palavra de Deus alimenta e renova a fé: voltemos a colocá-la no centro da oração e da vida espiritual! No centro, a Palavra que nos revela como é Deus. A Palavra que nos aproxima de Deus.

E agora o segundo aspeto: a Palavra leva-nos ao homem. Leva-nos a Deus e leva-nos ao homem. Na verdade, quando descobrimos que Deus é amor compassivo, vencemos a tentação de nos fecharmos numa sacra religiosidade, que se reduz a um culto exterior, que não toca nem transforma a vida. Uma tal religiosidade é idolatria, idolatria sumida, idolatria rebuscada, mas é idolatria. A Palavra impele-nos a sair de nós mesmos caminhando ao encontro dos irmãos, animados unicamente com a força serena do amor libertador de Deus. É precisamente isto que nos revela Jesus, na sinagoga de Nazaré: Ele é enviado para ir ao encontro dos pobres (que somos todos nós!) e libertá-los. Não veio para entregar um elenco de normas nem para oficiar nalguma cerimónia religiosa, mas desceu às estradas do mundo para encontrar a humanidade ferida, acariciar os rostos macerados pelo sofrimento, curar os corações dilacerados, libertar-nos das correntes que nos agrilhoam a alma. Revela-nos assim qual é o culto mais agradável a Deus: cuidar do próximo. E desculpai se insisto nisto. Há momentos em que sobrevêm na Igreja as tentações da rigidez, que é uma perversão, e se pensa encontrar Deus tornando-se mais rígidos, com mais normas, acertando as coisas, pondo as coisas claras... Mas não é assim! Quando virmos propostas de rigidez, pensemos imediatamente: isto é um ídolo, não é Deus. O nosso Deus não é assim.

Irmãs e irmãos, a Palavra de Deus transforma-nos – a rigidez não nos transforma, dissimula – a Palavra de Deus transforma-nos penetrando na alma como uma espada (cf. Heb 4, 12). Com efeito, se por um lado consola, desvendando-nos o rosto de Deus, por outro provoca e sobressalta-nos, fazendo-nos cientes das nossas contradições. Põe-nos em crise. Não nos deixa tranquilos, se o preço a pagar por esta tranquilidade é um mundo dilacerado pela injustiça e pela fome e quem paga o preço são sempre os mais frágeis. Sempre pagam os mais frágeis. A Palavra põe em crise as nossas justificações que sempre fazem depender, aquilo que corre mal, duma coisa diferente e dos outros. Quanta amargura sentimos ao ver os nossos irmãos e irmãs morrerem no mar, porque não os deixam desembarcar! E isto é feito por alguns em nome de Deus. A Palavra de Deus convida-nos a sair às claras, a não nos escondermos atrás da complexidade dos problemas, atrás do «não há nada a fazer» – «é um problema deles», «o problema é seu» – ou «que posso fazer eu?», «Deixemo-los para lá!» Exorta-nos a agir, a unir o culto a Deus e o cuidado do homem. Porque a Sagrada Escritura não foi dada para nos entreter, para nos mimar numa espiritualidade angélica, mas para sair ao encontro dos outros e debruçar-nos sobre as suas feridas. Falei da rigidez, deste pelagianismo moderno, como uma das tentações da Igreja. E esta – a de procurar uma espiritualidade angélica – de algum modo é a outra tentação de hoje: os movimentos espirituais gnósticos, o gnosticismo, propondo-te uma Palavra de Deus que te coloca «em órbita» e não te faz tocar a realidade. A Palavra que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), quer tornar-Se carne em nós. Não nos aliena da vida; mas mergulha-nos nela, nas situações do dia a dia, na auscultação dos sofrimentos dos irmãos, do clamor dos pobres, das violências e injustiças que ferem a sociedade e a terra, a fim de sermos, não cristãos indiferentes, mas diligentes, cristãos criativos, cristãos proféticos.

«Cumpriu-se hoje – diz Jesus – esta passagem da Escritura» (Lc 4, 21). A Palavra quer tornar-Se carne hoje, no tempo que vivemos, não num futuro ideal. Uma mística francesa do século passado, que escolheu viver o Evangelho nas periferias, escreveu que a Palavra do Senhor não é «"letra morta": é espírito e vida. (...) A acústica exigida de nós para bem ressoar a Palavra do Senhor é o nosso "hoje": as circunstâncias da nossa vida quotidiana e as necessidades do nosso próximo» (M. Delbrêl, A alegria de acreditar, Milão 1994, 258). Perguntemo-nos então: queremos imitar Jesus, tornando-nos ministros de libertação e consolação para os outros, realizar a Palavra? Somos uma Igreja dócil à Palavra? Uma Igreja propensa a ouvir os outros, empenhada em estender a mão para aliviar os irmãos e as irmãs daquilo que os oprime, para desfazer os nós dos medos, libertar os mais frágeis das prisões da pobreza, do cansaço interior e da tristeza que apaga a vida? É isto que nós queremos?

Nesta celebração, são instituídos leitores e catequistas alguns dos nossos irmãos e irmãs. São chamados à importante tarefa de servir o Evangelho de Jesus, anunciá-lo para que a sua consolação, a sua alegria e a sua libertação cheguem a todos. Esta é também a missão de cada um de nós: ser arautos credíveis, profetas da Palavra no mundo. Por isso apaixonemo-nos pela Sagrada Escritura, deixemo-nos interpelar profundamente pela Palavra, que desvenda a novidade de Deus e leva-nos a amar incansavelmente os outros. Voltemos a colocar a Palavra de Deus no centro da pastoral e da vida da Igreja! Assim seremos libertos tanto de qualquer pelagianismo rígido, de qualquer rigidez, como da ilusão duma espiritualidade que nos coloca «em órbita» sem cuidar dos irmãos e irmãs. Voltemos a colocar a Palavra de Deus no centro da pastoral e da vida da Igreja. Ouçamo-la, rezemo-la, ponhamo-la em prática.

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