Buenos Aires, Mar 14, 2022 / 15:49 pm
Um dos ex-seminaristas que foi vítima de abusos sexuais cometidos pelo bispo emérito de Orán, dom Gustavo Zanchetta, identificado pela sigla "M.C.", falou pela primeira vez com a imprensa sobre o tempo em que esteve no seminário e a manipulação que sofreu.
Em 4 de março, a justiça argentina condenou dom Zanchetta pelo crime de abuso sexual "em detrimento de G.G. e M.C." a uma pena de quatro anos e meio de prisão.
Ao se referir à vida dele e de seus companheiros no seminário São João XXIII, M.C. disse ao jornal El Tribuno: "A verdade é que foi muito ruim. Embora todos nós tenhamos entrado com a ilusão de ser sacerdotes, de servir as pessoas em nome de Deus, vivemos tempos muito difíceis, de muita discriminação, de muitos maus-tratos e dor porque a Igreja tentou esconder tudo o que foi vivido".
"Discriminação porque nós éramos negros e ele (Zanchetta) vinha de Buenos Aires, ele era um cara branco e nós éramos negros do norte. Nós não éramos praticamente nada para ele. Ele também discriminava alguns colegas por serem gordos, pelo estilo de vida, alguns lá dentro tinham mais de 30 anos e eram tratados como velhos que não serviam para nada. As coisas que vivemos constam nas denúncias", explicou M.C.
A vítima, hoje com 28 anos, entrou no seminário aos 19 anos e lá permaneceu por 7 anos sob a supervisão de Zanchetta.
M.C. narrou na entrevista que, aos poucos, foi gerado o cenário para que o abuso sexual fosse cometido, a partir da manipulação dos jovens.
O ex-seminarista disse que Zanchetta tinha um "grupo seleto" de jovens a quem oferecia "casacos, moletons, computadores, dinheiro".
"Entre aspas, eu pertencia a esse grupo, mas não queria me deixar levar por tudo o que ele fazia. Sofremos muita manipulação, muitos vêm de famílias humildes. Eu também venho de uma família que às vezes a gente não tinha o que comer e, com esse argumento, ele manipulou muito. Tocava onde éramos mais frágeis".
De acordo com M.C. grande parte da manipulação deveu-se a Zanchetta se gabar de sua amizade com o papa.
"Ele sempre se gabava dizendo que era amigo do papa, que o papa telefonava e que contava para ele sobre nós (…) Isso nos pressionava, ali mostrava seu autoritarismo e poder. Ele dizia 'eu posso fechar o seminário', 'não me contradiga porque eu sou o bispo'", narrou.
M.C. disse que naquele momento não "percebia o que estava acontecendo", mas quando estava prestes a deixar o seminário começou a falar com um padre que o ajudou a entender o que realmente estava acontecendo.
"Ali abro os olhos e percebo tudo o que tínhamos vivido. Fomos muito manipulados, não conseguíamos entender a dimensão de tudo que ele havia feito e como tinha começado o processo, desde a coisa mais insignificante até chegar a isso.", lamentou.
"No final, quando ele estava prestes a sair, nossa relação (com Zanchetta) era mais agressiva", disse M.C.
"Quando ele foi embora, não foi bem comigo e foi aí que comecei a abrir os olhos. Embora os seminaristas da época, que agora são padres, dissessem 'o bispo está indo embora' e ficaram tristes, eu não sentia nada. Ele até me perguntou como eu me sentia", disse ele.
E acrescentou: "Eu estava no seminário aqui em Salta e ele ligou e disse que, por motivos de saúde, estava indo para Roma. Falei que estava tranquilo e ele ficou chateado porque queria que eu chorasse por ele, não sentia que fosse um distanciamento afetivo. Já estávamos sabendo e vivendo o que ele tinha feito com os padres, já havia denúncias canônicas na nunciatura".
M.C. disse na entrevista, com tristeza, que realmente queria "ser padre, viver uma vida de celibato e me entregar a Deus". "E foi desfeito meu sonho, aquela vontade de me prostrar e dizer 'aqui estou Senhor'. Hoje duvido da Igreja e da existência de Deus".
O ex-seminarista diz que quando saiu do seminário conseguiu progredir com a ajuda de sua família. "Decidi sair de Orán e procurar outros caminhos. Resolvi começar do zero aqui em Salta".
Na hora de fazer a denúncia, ele disse que "não sabia se estava fazendo a coisa certa" porque havia muita "pressão de fora".
M.C. contou que a promotora do caso "foi um apoio muito forte, porque ela nos ouviu e nos fez ver que essa era a verdade".
"Eu não tinha dinheiro para pagar por um advogado e não sabia qual advogado realmente iria se arriscar neste caso, porque estava enfrentando uma autoridade da Igreja. Por isso admiro muito a coragem da promotora (Soledad Filtrín Cuezzo) que assumiu o caso e nos defendeu até o fim", disse.
M.C. contou que após a sentença, ele disse: "Esta é uma pequena parte de tudo o que foi vivido. Mas agora nosso trabalho particular continua, para curar aquelas feridas que permanecerão por toda a vida e que custa muito fechar".
O julgamento contra Zanchetta começou em 21 de fevereiro e durante o mesmo o bispo negou as acusações de abuso sexual contra ele, enquanto as vítimas "confirmaram perante o Tribunal suas declarações feitas na fase de investigação, uma delas disse que o padre lhe fez 'propostas amorosas' e exigiu 'massagens'".
O julgamento estava previsto inicialmente para começar em 12 de outubro de 2021, mas foi suspenso a pedido do defensor do bispo, Enzo Gianotti, que pediu aos juízes que aguardassem os arquivos do processo canônico que está sendo feito no Vaticano contra dom Zanchetta.
Em fevereiro de 2019, a Congregação para os Bispos encarregou o arcebispo de Tucumán, Argentina, dom Carlos Alberto Sánchez, de uma investigação preliminar das denúncias contra dom Zanchetta, acusado de abuso sexual e abuso de poder. Em seguida, o caso foi para a Congregação para a Doutrina da Fé, encarregada de tratar desses casos.
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O papa Francisco aceitou a renúncia de dom Zanchetta do cargo de bispo de Orán em 31 de julho de 2017.
O que o papa disse em 2019
Em entrevista concedida à jornalista mexicana da Televisa, Valentina Alazraki, em maio de 2019, o papa falou sobre o caso e também sobre as críticas que recebeu por ter nomeado dom Zanchetta como assessor da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA) em dezembro de 2017, cargo que ocupou até outubro de 2021.
O papa disse que alguns descreviam o bispo como "déspota, mandão e parece que a gestão econômica das coisas não era muito clara, mas isso não está provado. Mas certamente o clero sentia que não era bem tratado por ele", por isso "como clero fizeram uma denúncia à nunciatura".
Nesse sentido, Francisco disse que ligou para a nunciatura e o núncio disse que "a denúncia é séria por maus-tratos, abuso de poder, poderíamos dizer, certo?"; por isso enviou dom Zanchetta à Espanha "para fazer um teste psiquiátrico".
O papa disse que "o resultado do teste foi dentro do normal" e aconselharam que ele recebesse terapia uma vez por mês em Madri, por isso dom Zanchetta não voltou para a Argentina.
Sobre as críticas pela alegada má gestão financeira, o papa disse que "economicamente era desordenado, mas não houve má gestão financeira pelas obras que ele fez. Era desordenado, mas a visão era boa".
Francisco disse que, depois de receber os resultados da investigação preliminar feita sobre dom Zanchetta em 2019, viu "que era necessário fazer um julgamento". "Então eu passei para a Congregação para a Doutrina da Fé, onde eles estão fazendo o julgamento", disse o papa.
A Santa Sé não divulgou os detalhes do processo canônico contra dom Zanchetta e não informou se foi concluído.
A Santa Sé não divulgou se haverá ou não alguma declaração sobre a condenação de dom Zanchetta.
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