18 de dezembro de 2024 Doar
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Papa Francisco critica ‘intransigência doutrinal’ e ‘esteticismo litúrgico’ em carta aos padres de Roma

Papa Francisco com seminaristas. | Shutterstock

A Sala de Imprensa da Santa Sé divulgou hoje (7), uma carta do papa Francisco dirigida aos sacerdotes da diocese de Roma por ocasião da festa de dedicação da Basílica de Santa Maria Maior, celebrada todo dia 5 de agosto. Na carta, o papa condena os católicos marcados "pela intransigência doutrinal e pelo esteticismo litúrgico, formas e maneiras nas quais a mundanidade 'se esconde atrás de aparências de religiosidade e até de amor à Igreja», mas na realidade «consiste em buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal'" (Evangelii Gaudium, 93)", escreveu Francisco.

Abaixo, a íntegra da carta do papa Francisco em tradução livre do texto publicado em espanhol:

Queridos irmãos sacerdotes

Desejo dirigir-me a vocês com um pensamento de acompanhamento e de amizade, que espero que os sustente no exercício do seu ministério, carregado de alegrias e dificuldades, esperanças e desilusões. Precisamos trocar olhares cheios de cuidado e compaixão, aprendendo de Jesus, que olhava assim para os apóstolos, não exigindo um horário ditado por critérios de eficiência, mas oferecendo-lhes cuidado e alívio. Assim, quando os apóstolos voltaram de sua missão, entusiasmados, mas cansados, o Mestre lhes disse: "Vinde à parte, para algum lugar deserto e descansai um pouco" (Mc 6,31).

Penso em vocês, neste tempo em que pode haver, junto com as atividades de verão, um pouco de descanso depois dos cansaços pastorais dos últimos meses. E gostaria, antes de tudo, de renovar-lhes a minha gratidão: "Obrigado por seu testemunho, obrigado por seu serviço; obrigado por tanto bem escondido que fazem, obrigado pelo perdão e consolo que dão em nome de Deus [...]; obrigado pelo seu ministério, que muitas vezes se realiza no meio de tantas dificuldades, incompreensões e pouco reconhecimento" (Homilia para a Missa Crismal, 6 de abril de 2023).

Por outro lado, nosso ministério sacerdotal não se mede pelos sucessos pastorais (o próprio Senhor teve cada vez menos com o passar do tempo!). No centro da nossa vida não está nem sequer o frenesi da atividade, mas permanecer no Senhor para dar frutos (cf. Jo 15). Ele é o nosso consolo (cf. Mt 11, 28-29). E a ternura que nos consola brota da sua misericórdia, da acolhida do "magis" da sua graça, que nos permite ir adiante no trabalho apostólico, suportar os reveses e fracassos, alegrar-nos com simplicidade de coração, ser mansos e pacientes, e recomeçar sempre, estender as mãos aos outros. Com efeito, os nossos necessários "momentos de recarga" não ocorrem apenas quando descansamos fisicamente ou espiritualmente, mas também quando nos abrimos ao encontro fraterno entre nós: a fraternidade conforta, oferece espaços de liberdade interior e não nos faz sentir sozinhos diante dos desafios do ministério.

É com esse espírito que eu lhes escrevo. Sinto-me em caminho com vocês e gostaria que me sentissem perto de vocês em suas alegrias e sofrimentos, em seus projetos e trabalhos, em suas amarguras e consolações pastorais. Sobretudo compartilho convosco o desejo de comunhão, afetiva e eficaz, enquanto ofereço a minha oração quotidiana para que esta Igreja Mãe nossa, a Igreja de Roma, chamada a presidir na caridade, cultive o precioso dom da comunhão sobretudo no seu interior, fazendo-o germinar nas diversas realidades e sensibilidades que a compõem. Que a Igreja de Roma seja exemplo de compaixão e esperança para todos, com os seus pastores sempre, de fato sempre, dispostos e desejosos de conceder o perdão de Deus, como canais de misericórdia que saciam a sede do homem de hoje.

E agora, queridos irmãos e irmãs, pergunto-me: neste nosso tempo, o que nos pede o Senhor, para onde nos orienta o Espírito que nos ungiu e nos enviou como apóstolos do Evangelho? Na oração, me vem à mente isso: que Deus nos pede para ir fundo na luta contra a mundanidade espiritual. O Padre Henri de Lubac, em algumas páginas de um texto que eu os convido a ler, definia a mundanidade espiritual como "o maior perigo para a Igreja -para nós, que somos a Igreja-, a tentação mais pérfida, aquela que ressurge sempre, insidiosamente, quando as outras estão vencidas". E acrescentava palavras que parecem acertar precisamente: "Se esta mundanidade espiritual invadisse a Igreja e trabalhasse para a corromper, minando o seu próprio princípio, seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro mundanismo meramente moral" (Meditação sobre a Igreja, Milão 1965, 470).

Estas são coisas que eu mencionei noutras ocasiões, mas gostaria de as reiterar, considerando-as prioritárias: a mundanidade espiritual é perigosa porque é um modo de vida que reduz a espiritualidade à aparência: nos leva a ser «comerciantes do espírito», homens vestidos de formas sagradas que, na realidade, continuam pensando e agindo segundo as modas do mundo. Isso acontece quando nos deixamos fascinar pelas seduções do efêmero, pela mediocridade e pelo costume, pelas tentações do poder e da influência social. E, de novo, pela vanglória e pelo narcisismo, pela intransigência doutrinal e pelo esteticismo litúrgico, formas e maneiras nas quais a mundanidade «se esconde atrás de aparências de religiosidade e até de amor à Igreja», mas na realidade «consiste em buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal»" (Evangelii Gaudium, 93). Como não reconhecer em tudo isso a versão atualizada daquele formalismo hipócrita que Jesus via em certas autoridades religiosas da época e que no curso de sua vida pública o fez sofrer talvez mais do que tudo?

A mundanidade espiritual é uma tentação "suave" e por isso ainda mais insidiosa. Na verdade, ela se insinua sabendo se esconder bem atrás das boas aparências, até mesmo dentro de motivações "religiosas". E, mesmo que a reconheçamos e a afastemos de nós, mais cedo ou mais tarde ela volta disfarçada de outro modo. Como diz Jesus no Evangelho: "Quando um espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, buscando repouso; não o achando, diz: 'Voltarei à minha casa, donde saí'. Chegando, acha-a varrida e adornada. Vai então e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele e entram e estabelecem-se ali. E a última condição desse homem vem a ser pior do que a primeira" (Lc 11, 24-26). Precisamos de vigilância interior, de guardar a mente e o coração, alimentar o fogo purificador do Espírito dentro de nós, porque as tentações mundanas voltam e "batem" de maneira educada. "São os 'demônios educados': entram educadamente, sem que eu perceba" (Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2022).

Gostaria de me deter, entretanto, em um aspecto dessa mundanidade. Esta, quando entra no coração dos pastores, assume uma forma específica, a do clericalismo. Desculpe-me por repeti-lo, mas como padres acho que vocês me entendem, porque também compartilham o que acreditam de coração, segundo aquele belo traço tipicamente romano (românico!) pelo qual a sinceridade dos lábios sai do coração, e tem gosto de coração! E eu, como idoso, e de coração, digo a vocês que me preocupa quando recaímos nas formas do clericalismo; quando, talvez sem perceber, damos às pessoas a impressão de que somos superiores, privilegiados, colocados «no alto» e, portanto, separados do resto do Povo santo de Deus. Como me escreveu uma vez um bom sacerdote: "O clericalismo é um sintoma de uma vida sacerdotal e laical tentada a viver na função e não no vínculo real com Deus e com os irmãos". Em suma, denota uma doença que nos faz perder a memória do Batismo recebido, deixando em segundo plano a nossa pertença ao mesmo Povo santo e levando-nos a viver a autoridade nas várias formas de poder, já não percebendo a duplicidade, sem humildade, mas com comportamentos distantes e soberbos.

Para nos sacudir dessa tentação, nos faz bem ouvir o que o profeta Ezequiel diz aos pastores: "Vós bebeis o leite, vestis-vos de lã, matais as reses mais gordas e sacrificais, tudo isso sem nutrir o rebanho. Vós não fortaleceis as ovelhas fracas; a doente, não a tratais; a ferida, não a curais; a transviada, não a reconduzis; a perdida, não a procurais; a todas tratais com violência e dureza" (34 ,3-4). Ele fala sobre "leite" e "lã", sobre o que alimenta e aquece; O risco que a Palavra nos coloca é, portanto, o de nos alimentarmos a nós mesmos e aos nossos interesses, revestindo-nos de uma vida cômoda.

Certamente - como afirma Santo Agostinho - também o pastor deve viver do sustento oferecido pelo leite de seu rebanho; mas o Bispo de Hipona comenta: "Que tomem o leite das ovelhas e as conservem em sua penúria. Porém, que não descuidem da debilidade das ovelhas, isto é, que em sua atividade não busquem, por assim dizer, para seu próprio proveito "dando a impressão de que anunciam o Evangelho para ganhar a vida, mas que dispensem aos demais a luz da palavra de verdade que os ilumina" (Discurso sobre os Pastores, 46.5).

Da mesma forma, Agostinho fala da lã associando-a às honras: ela, que cobre as ovelhas, pode nos fazer pensar em tudo aquilo com que podemos nos enfeitar externamente, buscando o elogio dos homens, o prestígio, a fama, a riqueza. O grande padre latino escreve: "Quem oferece lã rende honras. Estas são as duas vantagens que os pastores que pastoreiam a si mesmos e não às ovelhas buscam das pessoas: recursos para prover suas próprias necessidades e uma consideração especial que consiste em honras e elogios" (ibid., 46.6). Quando nos preocupamos apenas com o leite, pensamos sobre o nosso ganho pessoal, quando procuramos obsessivamente a lã, pensamos em cuidar da nossa imagem e aumentar o nosso sucesso. E, assim, perdemos o espírito sacerdotal, o zelo pelo serviço, a vontade de cuidar das pessoas, e acabamos por raciocinar de acordo com a tolice mundana: "O que isso importa para mim? Que cada um faça o que quiser; meu sustento está assegurado, e minha honra também. Tenho leite e lã suficientes. Cada um vá para onde quiser" (ibid., 46:7).

A preocupação centra-se no "eu": o próprio sustento, as próprias necessidades, o louvor recebido para si e não para a glória de Deus. Isto acontece na vida de quem cai no clericalismo: perde o espírito de louvor porque perdeu o sentido da graça, o estupor pela gratuidade com que Deus o ama, aquela confiante simplicidade de coração que faz estender as mãos ao Senhor, esperando d'Ele o alimento no tempo certo (cf. Sl 104,27), sabendo que sem Ele nada podemos fazer (cf. Jo 15,5). Só vivendo esta gratuidade poderemos viver o ministério e as relações pastorais com espírito de serviço, segundo as palavras de Jesus: "De graça recebestes, de graça dai" (Mt 10, 8).

Devemos olhar precisamente para Jesus, para a compaixão com que vê a nossa humanidade ferida, para a gratuidade com que ofereceu a sua vida por nós na cruz. Eis o antídoto quotidiano contra a mundanidade e o clericalismo: olhar para Jesus crucificado, fixar todos os dias o olhar n'Aquele que se esvaziou e se humilhou até à morte por nós (cf. Fl 2, 7-8). Ele aceitou a humilhação para nos erguer de nossas quedas e nos libertar do poder mal. Assim, olhando para as chagas de Jesus, olhando-o humilhado, aprendemos que somos chamados a oferecer-nos, a tornar-nos pão partido para os famintos, a partilhar o caminho dos cansados ​​e oprimidos. Este é o espírito sacerdotal: fazer-nos servos do Povo de Deus e não senhores, lavar os pés dos nossos irmãos e não os esmagar debaixo dos nossos pés.

Portanto, permaneçamos vigilantes em relação ao clericalismo. Que o Apóstolo Pedro, que, como a tradição nos lembra, até no momento da morte se humilhou de cabeça para baixo para ser igual ao seu Senhor, nos ajude a ficar longe dele. Que o Apóstolo Paulo, que por causa de Cristo Senhor considerou como lixo todos os ganhos da vida e do mundo (cf. Fl 3,8), nos preserve dele.

O clericalismo, sabemos, pode atingir a todos, incluindo leigos e agentes pastorais: pode-se assumir um "espírito clerical" no levar adiante ministérios e carismas, vivendo de maneira elitista o próprio chamado, fechando-se no próprio grupo e erguendo muros para fora, desenvolvendo laços possessivos em relação aos papéis na comunidade, cultivando atitudes presunçosas e arrogantes em relação aos outros. E os sintomas são a perda do espírito de louvor e da gratuidade alegre, enquanto o diabo se insinua, alimentando lamentos, negatividade e insatisfação crônica com o que está mal, ironia que se torna cinismo. Assim, nos deixamos absorver pelo clima de crítica e raiva que se respira ao redor, ao invés de sermos aqueles que, com simplicidade e mansidão evangélica, com bondade e respeito, ajudam nossos irmãos e irmãs a saírem das areias movediças da intolerância.

Em tudo isto, nas nossas fraquezas e insuficiências, assim como na crise de fé de hoje, não desanimemos! De Lubac concluiu dizendo que a Igreja, "ainda hoje, apesar de toda a nossa opacidade [...] é, como a Virgem, o Sacramento de Jesus Cristo. Nenhuma infidelidade nossa pode impedi-la de ser 'a Igreja de Deus', 'a escrava do Senhor'" (Meditação sobre a Igreja, cit., 472). Irmãos, esta é a esperança que sustenta nossos passos, alivia nossas cargas e dá novo impulso ao nosso ministério. Arregacemos as mangas e dobremos os joelhos (os que possam!): rezemos ao Espírito uns pelos outros, peçamos-lhe que nos ajude a não cair, tanto na vida pessoal como na ação pastoral, nessa aparência religiosa cheia de muitas coisas, mas vazia de Deus, para não ser funcionários do sagrado, mas anunciadores apaixonados do Evangelho, não "clérigos de Estado", mas pastores do povo. Precisamos de uma conversão pessoal e pastoral. Como dizia o padre Congar, não se trata de recuperar a boa observância ou reformar as cerimônias externas, mas de voltar às fontes da Igreja do Evangelho, de descobrir novas energias para superar os hábitos, de injetar um novo espírito nas velhas instituições eclesiais, para que não acabemos sendo uma Igreja "rica em autoridade e segurança, mas pouco apostólica e mediocremente evangélica" (Vera e false riforma della Chiesa, Milão 1972, 146).

Obrigado pelo acolhimento que dareis a estas minhas palavras, meditando-as na oração e diante de Jesus na adoração diária; Posso dizer que saíram do meu coração e do carinho que tenho por vocês. Vamos em frente com entusiasmo e coragem: trabalhemos juntos, entre sacerdotes e com os irmãos e irmãs leigos, iniciando formas e caminhos sinodais, que nos ajudem a despojar-nos de nossas seguranças mundanas e "clericais" para buscar, humildemente, caminhos pastorais inspirados pelo Espírito, para que a consolação do Senhor chegue realmente a todos. Diante da imagem da Salus Populi Romani, rezei por vocês. Pedi a Nossa Senhora que os guarde e proteja, que enxugue as suas lágrimas secretas, que reavive em vocês a alegria do ministério e que os faça pastores apaixonados por Jesus todos os dias, prontos a dar a vida sem medida por amor a Ele. Obrigado pelo que fazem e pelo que são. Eu os abençoo e os acompanho na oração. E vocês, por favor, não se esqueçam de rezar por mim.

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