21 de novembro de 2024 Doar
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Onde começou o caminho sinodal

Cardeal Carlo Maria Martini | Mafon1959 via Wikimedia (CC BY-SA 4.0)

Na última entrevista que deu, o cardeal Carlo Maria Martini disse que a Igreja estava 200 anos atrasada. Para “reavivar as brasas sob as cinzas” de uma Igreja “cansada na Europa do bem-estar e nos EUA”, Martini defendia mudanças que aproximassem a Igreja do homem moderno. “Questões sobre sexualidade e todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo”, disse o cardeal. “Precisamos nos perguntar se as pessoas ainda seguem o ensinamento da igreja em questões sexuais. A Igreja ainda é uma referência de autoridade nesse campo, ou é só uma caricatura na mídia?”.

Para o cardeal, além disso, “nem o clero nem a lei eclesiástica substituem a vida interior da pessoa humana. Todas as regras externas, as leis, os dogmas, estão aí para esclarecer essa voz interior e para o discernimento dos espíritos”.

“Os sacramentos não são um instrumento de disciplina, mas uma ajuda para as pessoas em sua jornada e na fraqueza de suas vidas”, disse Martini na mesma entrevista, muitas vezes apontada como seu testamento espiritual. “Estamos levando os sacramentos às pessoas que precisam de novas forças? Penso em todas as pessoas divorciadas e recasadas. Elas precisam de proteção especial”.

Não é difícil ver nessas declarações os traços fundamentais do programa do pontificado do papa Francisco. O Sínodo da Sinodalidade, que teve início na quarta-feira (4) no Vaticano com o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão” é o ponto culminante desse programa.

As declarações de Martini, no entanto, não são recentes. Elas foram dadas ao padre jesuíta George Sporschill, com quem Martini havia escrito um livro, e a Federica Radice Fossati Confalonieri e foram publicadas em 8 de agosto de 2012. O então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, só seria eleito papa em março do ano seguinte.

Martini, no entanto, não era um simples cardeal. Ele foi escolhido para ser arcebispo de Milão por são João Paulo II em 1979. A nomeação foi parte da intervenção do papa polonês na Companhia de Jesus. São João Paulo II exigia dos jesuítas fidelidade à doutrina e ao magistério da Igreja, o que já havia sido feito pelo papa são Paulo VI e pelo beato João Paulo I sem resultado.

Martini se tornou arcebispo de Milão para evitar que fosse o superior-geral da maior ordem sacerdotal do mundo. Ao longo de todo o pontificado de são João Paulo II, foi chamado por meios de comunicação de “antipapa” por sua oposição ao que via como retrocesso no pontificado em relação aos avanços do Concílio Vaticano II. Ele mesmo costumava dizer que não era antipapa, mas ante-papa: sua tarefa era articular a eleição e o programa de quem viesse depois de são João Paulo II. Em 2008, veio Bento XVI, que como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé havia sido o braço direito de são João Paulo II. Em 2013, veio Francisco, o primeiro papa jesuíta da história.

Martini era tido como o sucessor que os jesuítas escolheriam para substituir como superior geral da ordem o espanhol Pedro Arrupe, que ocupou o cargo de 1965 até 1981, quando foi destituído por são João Paulo II.

Quando Arrupe assumiu o cargo, Jorge Mario Bergoglio era um jesuíta de 29 anos com quatro anos de votos perpétuos e ainda a quatro anos de sua ordenação sacerdotal.

Arrupe era uma personalidade global com trânsito e influência muito além da ordem que dirigia e o papa Francisco mostra ter sido muito influenciado por seu superior geral. De Arrupe, vem, por exemplo, a preocupação com os migrantes que tanto marca o papa Francisco. Impressionado com o destino dos “boat people”, vietnamitas que fugiram aos milhares dos comunistas que se instalaram no poder com o fim da guerra do Vietnã, em 1975, e, recusados em todos os países, viveram nos barcos em que fugiram durante anos, Arrupe, que foi provincial dos jesuítas na Ásia, criou um setor específico na ordem para cuidar de refugiados e tornou o tema central para a ordem.

Arrupe era delegado dos jesuítas no Concílio Vaticano II quando o padre Jean Baptiste Janssens, o holandês que fora superior geral dos jesuítas desde 1949, morreu. Janssens havia introduzido na ordem a ideia de “apostolado social”, segundo a qual os jesuítas têm a dupla missão de evangelizar e promover a justiça social.

A preocupação social era nova entre os jesuítas. Em 1938, o teólogo jesuíta Henri de Lubac havia publicado o livro Catolicismo: os Aspectos Sociais do Dogma. O objetivo era extrair consequências políticas da doutrina católica para responder aos críticos que, como o filósofo Auguste Comte, acusavam os católicos de “egoísmo católico” pela preocupação com a salvação pessoal. De Lubac também pretendia “tornar o cristianismo relevante para o homem moderno”.

Nomeado pelo papa são João XXIII como consultor da fase preparatória do Concílio Vaticano II, de Lubac, que teve assim uma reabilitação depois de ver condenados três de seus livros pela Santa Sé, foi muito influente na formação da visão positiva do mundo moderno que o concílio consagrou em documentos como Gaudium et spes, que diz logo no início: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história”.

Na formulação que o papa Francisco gosta de repetir, “ninguém se salva sozinho”, pode-se ver a marca da semente plantada por de Lubac entre os jesuítas.

Em sua primeira entrevista depois de eleito, Arrupe se mostrou um digno sucessor de Janssens. Àquela altura já começavam a aparecer os sinais do alinhamento ideológico entre padres chamados progressistas e as teses revolucionárias que animavam movimentos políticos no mundo todo. Na América Latina começava a ser formulada a Teologia da Libertação, que teria entre jesuítas defensores de peso, como Jon Sobrino SJ, autor de Cristologia a partir da América Latina e um dos principais teólogos da corrente. Respondendo se apoiava os progressistas de sua ordem, Arrupe disse: “Se por progressista se entende aquele que combate as grandes injustiças sociais existentes em todas as partes do mundo, mas sobretudo nos países em vias de desenvolvimento, nós estamos com eles na linha da doutrina social contida nas grandes encíclicas”.

Foi também na Companhia de Jesus sob o comando de Arrupe que, pela primeira vez na história da Igreja, se propôs uma mudança na doutrina moral da Igreja para permitir uma avaliação positiva da homossexualidade. O tema, defendido hoje pelo arcebispo de Luxemburgo, cardeal Jean Claude Hollerich SJ, relator geral do Sínodo da Sinodalidade, e pelo também jesuíta James Martin, convidado pelo papa para tomar parte no sínodo, foi introduzido pelo jesuíta John J. McNeill, americano como Martin, no livro A Igreja e a Homossexualidade, publicado em 1976 e condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé. Em fevereiro do ano passado, Hollerich respondeu uma pergunta da agência de notícias católica alemã KNA dizendo achar que está errada a ideia de que o homossexualismo é pecado. “A maneira como o papa se expressou no passado pode levar a uma mudança na doutrina”, disse o cardeal. “Porque acredito que o fundamento sociológico-científico desse ensinamento não é mais correto”, alegou Hollerich sem citar McNeill, mas usando o mesmo argumento exposto no livro de 1976.

Na mesma primeira entrevista, Arrupe defendeu o teólogo jesuíta Teilhard de Chardin (1881-1955). Paleontólogo, além de teólogo, Chardin via a ciência como caminho para tornar o cristianismo relevante para o homem moderno. Seu projeto foi tentar fazer a visão cristã aceitável para alguém com uma visão de mundo científica. Partindo do conceito de evolução defendido por Charles Darwin, Teilhard de Chardin foi o primeiro a formular a ideia de que Deus é o ponto culminante da evolução do universo criado, rompendo, assim, a divisão radical entre imanência, o que pertence à ordem do criado, e transcendência, a esfera própria de Deus.

“A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal”, escreveu o papa Francisco no número 83 de sua encíclica Laudato sì, remetendo explicitamente à “contribuição do P. Teilhard de Chardin”.

“O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina”, escreve o papa reabilitando informalmente o padre Teilhard de Chardin. O então Santo Ofício, depois Congregação e hoje Dicastério para a Doutrina da Fé, havia condenado as teses do jesuíta em 1962 por conterem “ambiguidades tais, e até mesmo graves erros, a ponto de lesar a doutrina católica”.

A visão evolucionista de Teilhard de Chardin não foi adotada pelos cientistas, o que era sua grande esperança, e acabou por não ter tanta influência no modo como o Concílio Vaticano II tentou alcançar o homem moderno.

Mas a ideia Deus como ponto de chegada transcendente do caminho imanente da humanidade ganhou nova roupagem com o jesuíta Karl Rahner, um dos mais influentes teólogos católicos do século XX. Rahner propôs uma teologia antropocêntrica, baseado na ideia de que a visão do homem moderno é radicalmente antropocêntrica. Assim, mesmo o conhecimento de Deus é um conhecimento a partir da capacidade e dos limites do conhecimento humano. Rahner não via mais a possibilidade de uma teologia como a de santo Tomás de Aquino, devedora de uma visão excessivamente otimista da razão humana herdada da filosofia grega.

Rahner teve papel importante no Concílio Vaticano II, especialmente na elaboração da constituição De Ecclesia, sobre a Igreja. A contribuição de Rahner foi decisiva, segundo o teólogo Battista Mondin, “sobretudo para a formulação da doutrina sobre a colegialidade”, que marcou a eclesiologia do Concílio Vaticano II e levou à fundação do Sínodo dos Bispos por são Paulo VI, cuja XVI Assembleia Geral é o Sínodo da Sinodalidade de outubro.

Ao fim do concílio, Rahner fundou com outros teólogos a revista Concilium, que deveria iluminar teologicamente a aplicação das decisões do concílio. Em torno de Rahner e da Concilium se alinhavam aqueles que viam o Vaticano II como “a passagem da consciência de uma Igreja ocidental, romana, etnocêntrica, identificada com a universalidade, para uma real Igreja universal, pluricultural, pluriétnica nas expressões de fé, na teologia, na liturgia, na disciplina, nas estruturas organizativas” nas palavras do jesuíta brasileiro João Batista Libânio, SJ, no texto “Contextualização do Concílio Vaticano II e seu Desenvolvimento”.

Hans Urs von Balthasar, também jesuíta e também um dos mais influentes teólogos do século XX, fundou a revista Communio, para defender uma recepção do Vaticano II que o alinhasse à tradição bimilenar da Igreja. Ao lado de Balthasar na Communio estava Joseph Ratzinger, o futuro papa Bento XVI, que iniciara sua carreira de teólogo escrevendo em parceria com Rahner.

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As duas revistas ilustram o embate que se estabeleceu na Igreja depois do Vaticano II entre “progressistas” e “conservadores” nos termos consagrados pela mídia. Foi em torno desse embate que Ratzinger formulou o conceito de “hermenêutica da continuidade”, segundo o qual todas as afirmações dos documentos do Vaticano II têm que ser interpretadas de modo a não contradizer doutrinas ou formulações anteriores.

“A globalização da modernidade, iniciada com as grandes viagens dos séculos XV e XVI e manifestada no Concílio mais mundial da História da Igreja com 2.540 padres conciliares de todas as raças, de todas as cores, atingiu a consciência europeia ocidental de modo contundente, permitindo essa nova consciência universal”, escreveu Libânio.

As grandes viagens dos séculos XV e XVI foram o grande palco dos jesuítas na evangelização dos novos mundos das grandes descobertas. Foi aí que se desenvolveu a prática da inculturação, tão cara ao papa Francisco. O primeiro grande exemplo foi o de Matteo Ricci que, em nome de se aproximar da cultura da China do século XVI onde pregava, autorizou católicos chineses a continuar com o culto aos antepassados.

Sua abordagem foi proibida pelo Santo Ofício, mas o estilo permaneceu importante na ordem. O termo “inculturação” foi usado pela primeira vez pelo padre Arrupe na 32ª Congregação Geral dos jesuítas em 1974. Em 1977 ele introduziu o termo para a Igreja em geral no Sínodo dos Bispos. A ideia de que a Igreja pode, e deve, abrigar muitas culturas, e se adaptar a elas, é fortemente defendida pelo papa Francisco. “É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural”, diz ele na encíclica Evangelii gaudium.

A filósofa argentina Amelia Podatti diz, em um comentário à obra de Hegel, que a descoberta da América permitiu, pela primeira vez na história, ver a cultura ocidental de fora, a partir da periferia. Francisco diz ter aprendido com ela o conceito de periferia que levou para Roma ao ser eleito papa. O Sínodo da Sinodalidade, que tem sua primeira sessão em outubro no Vaticano, começou oficialmente com a fase de escuta aberta a todos nas dioceses do mundo em 2021. Os temas e o programa que lhe dão forma, no entanto, têm uma história muito mais longa.

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