15 de dezembro de 2024 Doar
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O “julgamento do século” termina no Vaticano

Basílica de São Pedro. | Eduardo Berdejo (ACI).

Este fim de semana deve terminar no Vaticano um processo que já dura mais de dois anos e que tem como protagonista o cardeal Angelo Becciu, acusado de ter desviado fundos financeiros da Santa Sé.

O presidente do Tribunal do Vaticano, Giuseppe Pignatone, anunciou que no sábado, 16 de dezembro, a sentença será proferida depois de 85 audiências, a primeira das quais ocorreu em 27 de julho de 2021.

O que se deve saber sobre o julgamento do século:

Desde a criação do Estado do Vaticano em 1929, um tribunal do Vaticano nunca antes havia processado um funcionário de alto escalão.

Até 30 de abril de 2021, os cardeais só podiam ser julgados pelo Tribunal de Cassação do Vaticano, composto por três cardeais. O papa Francisco estabeleceu que os tribunais ordinários também podem julgar cardeais, com autorização prévia do papa. Em 19 de junho de 2021, o papa autorizou o tribunal a processar o cardeal Becciu.

O processo inclui outras nove pessoas, entre investidores e ex-funcionários da Secretaria de Estado.

O promotor de justiça do Vaticano, Alessandro Diddi, pediu sete anos e três meses de prisão para o cardeal, uma multa de 10.329 euros e a inabilitação perpétua para exercer cargos públicos.

Quem é o cardeal Becciu

O cardeal Angelo Becciu tem 75 anos. Entre outubro de 2001 e julho de 2009 fez parte do corpo diplomático da Santa Sé, servindo como núncio apostólico em Angola, São Tomé e Príncipe e Cuba.

De maio de 2011 a junho de 2018 atuou como substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé. Foi criado cardeal pelo papa Francisco em junho de 2018. Foi prefeito da Congregação para as Causas dos Santos desde 1º de setembro de 2018.

Devido às implicações do processo, em setembro de 2020 renunciou aos seus direitos ligados ao cardinalato e ao cargo de prefeito após um encontro com o papa Francisco.

Em 30 de março de 2022, foi noticiado que, para efeitos do julgamento, o papa Francisco havia dispensado o cardeal da obrigação do segredo pontifício, a regra de confidencialidade relativa a informações sensíveis do governo da Igreja universal.

A causa que provocou o processo

Em outubro de 2019, o jornal britânico Financial Times revelou que a Santa Sé estava fazendo uma investigação sobre possíveis irregularidades num investimento iniciado em 2014 em Londres, que teria sido autorizado por Becciu, então substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, o segundo cargo mais alto da secretaria.

O jornal mencionou a busca e apreensão que a procuradoria fez no dia 1º de outubro daquele ano nos escritórios da Secretaria de Estado. No dia seguinte soube-se que cinco funcionários tinham sido suspensos, incluindo monsenhor Mauro Carlino, que supervisionava a documentação do departamento, e Tomasso Di Ruzza, então diretor da Autoridade de Inteligência Financeira do Vaticano.

O investimento que desencadeou a investigação foi a compra de um edifício numa zona de luxo em Londres por US$ 364 milhões, com fundos da Santa Sé. A compra, feita a prestações, foi concluída em 2018. Porém, em 1º de julho de 2022, a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA) informou que o imóvel foi vendido à empresa Bain Capital por cerca de US$ 223,6 milhões.

A APSA disse que “as perdas sofridas com relação ao valor gasto na compra do imóvel foram transferidas para a reserva da Secretaria de Estado, sem afetar de forma alguma o Óbolo de São Pedro, e com ele as doações dos fiéis”.

Os outros envolvidos

René Brülhart, advogado e ex-presidente da Autoridade de Supervisão Financeira e Informação (AIF) do Vaticano; Fabrizio Tirabassi, ex-funcionário do escritório administrativo da Secretaria de Estado; e Enrico Crasso, corretor financeiro que administrou investimentos para este departamento da Santa Sé também estão no processo.

Também estão no julgamento: Raffaele Mincione, corretor financeiro que teria incentivado a Secretaria de Estado a investir no imóvel londrino; Nicola Squillace, advogado envolvido nas negociações; e Gianluigi Torzi, corretor de imóveis a quem a Santa Sé solicitou poder sair do fundo imobiliário de Mincione e que manteve para uso próprio parte das ações da empresa com a qual foi consumada a compra do imóvel.

Também participa Cecilia Marogna, especialista em geopolítica que teria recebido fundos do Vaticano para conseguir a libertação da freira colombiana Cecilia Narváez, sequestrada no Mali.

No início do processo, estava envolvido monsenhor Alberto Perlasca, que durante quase uma década foi chefe do escritório administrativo da Secretaria de Estado, mas depois tornou-se testemunha. Seu depoimento foi usado para sustentar a acusação.

Doação suspeita à Cáritas e compra de artigos de luxo

O julgamento abrange outros dois casos.

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Um deles é a contribuição financeira de 125 mil euros da Secretaria de Estado à Cáritas de Ozieri, diocese natal de Becciu, para desenvolver um projeto da cooperativa SPES, presidida pelo seu irmão. A acusação contra o cardeal é de desvio de fundos.

A outra são os 500 mil euros que a Secretaria de Estado deu a Marogna para pagar supostas operações de resgate de reféns, como o caso da irmã Narváez. O cardeal disse que o papa Francisco tinha conhecimento da operação para libertar a freira colombiana e autorizou o uso do dinheiro.

Porém, segundo as faturas de Marogna, o dinheiro foi usado para comprar artigos de luxo. A mulher disse que estes objetos serviram para ganhar o apoio das esposas de figuras africanas influentes.

Becciu se declara inocente

Becciu defendeu a sua inocência desde o início do processo e os seus advogados qualificaram a acusação como “um teorema” para o implicar como responsável pela gestão dos fundos da Secretaria de Estado, que segundo eles cabiam ao escritório administrativo da Secretaria de Estado.

O advogado Fabio Viglione diz que existem “contradições óbvias na acusação e no julgamento contra Becciu, medidos em fatos indocumentados”, relativamente às quais “o seu envolvimento é totalmente injustificado”.

Viglione baseia os seus argumentos nas dúvidas que surgiram sobre o testemunho de monsenhor Perlasca, pelas contradições em que caiu e porque, aparentemente, teria aceitado sugestões externas de Francesca Immacolata Chaouqui, ex-membro da Comissão de Referência para o Estudo da Estrutura Econômica e Administrativa da Santa Sé (COSEA) e que em 2016 foi condenada a dez meses por colaborar no vazamento de documentos confidenciais da Santa Sé.

No entanto, segundo o Vatican News, o promotor de justiça disse durante a 84ª sessão que o depoimento de monsenhor Perlasca não é “a pedra angular da investigação” e que o ex-funcionário não deu “nenhuma pista” sobre o dinheiro dado a Marogna.

O promotor acrescentou que “se fosse verdade que Becciu foi enganado” por Marogna, “por que não denunciou? Por que continuou reunindo-se com ela em 2021? Por que a recebe em sua casa?

Também disse que “o papa não autorizou o dinheiro a Marogna, porque nada sabia sobre ela, mas sim à empresa britânica Inkerman”, encarregada de mediar a libertação da freira colombiana.

Quanto ao caso da Cáritas Ozieri, Viglione disse que os fundos não se destinaram à cooperativa gerida pelo irmão do cardeal, mas sim para apoiar a reativação de uma padaria local e para um projeto denominado Cidadela da Caridade.

A Procuradoria do Vaticano criticou que neste tema a defesa não tenha confrontado “os resultados da investigação da GdF (Guarda Financeira) de Oristano” sobre a diocese de Ozieri e a Cooperativa Spes.

A Secretaria de Estado da Santa Sé pede punição de todos os crimes

Poucos dias antes da sentença, foi lida uma carta que o secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin, dirigiu ao Gabinete do Promotor de Justiça. A carta tem data de 6 de novembro, mas foi comunicada ao referido escritório em 11 de dezembro.

Segundo o Vatican News, a carta foi lida durante a 84ª audiência “em resposta a um pedido do mesmo escritório sobre a falta de denúncia por parte da Secretaria de Estado e de confirmação sobre se havia vontade de prosseguir”.

Na carta, o cardeal Parolin escreveu que “dando continuidade à posição já assumida pela Secretaria de Estado, confirmo a instância de perseguir e punir todos os crimes nos quais a Secretaria de Estado é considerada parte ofendida”.

Enquanto a também advogada do cardeal Becciu, Maria Concetta Marzo, garante que a total inocência do cardeal de qualquer alegado crime foi “provada”, o Gabinete do Promotor de Justiça reiterou o seu pedido para que o cardeal seja condenado e proibido de exercer qualquer cargo público de forma perene.

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