17 de dezembro de 2024 Doar
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A Companhia de Jesus está em profunda decadência, diz reitor de universidade jesuíta

Símbolo da Companhia de Jesus (Jesuítas). | David Ramos/ACI Prensa

Para o padre jesuíta Julio Fernández Techera, reitor da Universidade Católica do Uruguai (UCU), a Companhia de Jesus está em “profunda decadência”.

Techera escreveu em espanhol um ensaio crítico sobre o estado da ordem fundada por santo Inácio de Loyola em 1534 da qual faz parte o papa Francisco.

O ensaio Ad usum Nostrotum III (Para nosso uso III) escrito pelo padre Techera, dirigido aos seus irmãos jesuítas, circulou originalmente dentro da Companhia de Jesus. Agora, foi publicado pelo jornalista espanhol Francisco José Fernández de la Cigoña em seu blog no site InfoVaticana.

Com o subtítulo “Algumas considerações sobre o De Statu Societatis 2023”, o ensaio se refere ao relatório geral publicado pelo superior-geral da Companhia de Jesus, o padre venezuelano Arturo Sosa, em colaboração com os procuradores, com os quais se reuniu em maio do ano passado em Loyola, Espanha.

Os jesuítas tornaram-se uma “ONG progressista”

Na opinião do padre Fernández Techera, a “visão excessivamente tendenciosa” do relatório geral sobre a Companhia de Jesus “poderia perfeitamente ser a visão sobre o mundo de um think tank secular, ligado a um partido político de esquerda ou a uma ONG progressista”.

“Não se encontra naquela contemplação” que o relatório divulga “o olhar sobrenatural ou transcendente que se esperaria de uma ordem religiosa, apostólica e sacerdotal”, lamenta Techera.

“Há muitos sinais na vida atual das obras jesuítas, nos documentos que são publicados e nas orientações que são dadas, que dão a impressão de que estamos numa ONG e não numa ordem religiosa”, afirma o jesuíta. “O fundo de muitas dessas manifestações da ação dos jesuítas hoje está secularizado e perdeu sentido transcendental ou sobrenatural”.

Insatisfação, não crise vocacional

O documento é o terceiro de uma série que o padre Fernández Techera iniciou em 22 de abril de 2022. No primeiro ensaio, Ad usum Nostrorum, o padre diz que há muito tempo se sente insatisfeito com a situação da Companhia de Jesus, ainda que não esteja passando por uma crise vocacional nem pensando em deixar os jesuítas.

O segundo ensaio foi publicado em 27 de abril de 2023. No texto, o padre agradece as muitas respostas que recebeu, também de jovens jesuítas, e até de alguns que não concordaram com ele, mas agradeceram a oportunidade de discordar, debater e propor uma revisão.

O terceiro ensaio do padre Fernández Techera data de 22 de abril último, “Festa de Santa Maria, Mãe da Companhia de Jesus”.

Abusos sexuais na comunidade jesuíta: casos emblemáticos

“A Companhia vive situações muito preocupantes que parecem não ter sido abordadas na Congregação dos Procuradores e que não aparecem de forma clara e assumida no relatório De Statu. Para dar alguns exemplos. Em dezembro de 2022, soubemos do que um jesuíta italiano chamou de Tsunami Rupnik ”, indica o padre Fernández Techera em seu escrito.

Marko Rupnik padre expulso da Companhia de Jesus em 2023, foi acusado em 2018 de abusos sexuais, espirituais e psicológicos contra pelo menos 20 mulheres na Comunidade Loyola, que ele co-fundou na Eslovênia. Rupnik que continua a aparecer como consultor jesuíta e da Santa Sé no Anuário Pontifício de 2024.

O padre Fernández Techera refere-se depois ao “escândalo” de “abusos contra menores cometidos por alguns jesuítas na Bolívia e ao suposto encobrimento de vários provinciais que foram acusados ​​no Ministério Público daquele país”.

“Tivemos que saber de tudo pela imprensa e não recebemos um único comunicado ou carta da Cúria Geral explicando o ocorrido ou pedindo orações pela província da Bolívia”, escreve Techera.

O principal acusado neste caso é o padre Alfonso Pedrajas que manteve um diário sobre os abusos que cometeu contra mais de 80 menores na Bolívia, Peru e Equador.

A banalização do discernimento

O De Statu fala de “uma espécie de ceticismo em alguns companheiros” em relação ao discernimento em comum, escreveu Techera. “Sou completamente cético com respeito ao discernimento em comum e creio que não somos alguns, mas muitíssimos os jesuítas que compartilhamos dessa convicção”, escreveu agora Techera.

Já no seu primeiro ensaio, o padre havia criticado o que vê como a “banalização do discernimento”: “Parece que tudo é discernimento, inclusive o que pessoas normais chamam de decisão, deliberação, discussão, troca, estudo, consideração etc.”

“Estou convencido de que o discernimento dos espíritos e a sabedoria de santo Inácio em praticá-lo são uma parte essencial da espiritualidade inaciana e jesuíta, e para todo membro da ordem que o conhece e pratica, é uma arma fabulosa para buscar e encontrar Deus em sua vida”, disse Techera em Ad Usum Nostrorum. “Mas não é um instrumento para o governo das pessoas, nem de comunidades, nem de trabalhos apostólicos”.

Para o padre, usar a palavra “discernimento” como palavra da moda “repetida uma e outra vez, banaliza-a e a distorce”.

“Nós a usamos e nosso ambiente a usa para ungir com autoridade ou respeitabilidade qualquer decisão tomada, e isso não ajuda o discernimento dos espíritos”, lamenta o jesuíta.

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A queda no número de vocações jesuítas

O padre Fernández Techera destaca em seu escrito que “outras questões urgentes que não foram tratadas com clareza e contundência são: a queda no número de admissões na Companhia, que no Ocidente piora ano após ano, assim como o alto número de abandono de membros da ordem”.

“Recentemente um companheiro me contou que 72 noviços entraram em sua província nos últimos dez anos. No mesmo período, os jesuítas que saíram da Companhia na sua província eram 71”, acrescenta o padre, que também diz que “em 2023, 314 noviços entraram em toda a Companhia, e 319 morreram”.

O padre diz ainda que existem atualmente 13.995 jesuítas, e lamenta que “dentro de alguns anos a Companhia terá desaparecido de vários países europeus e se tornará insignificante em outros lugares da Europa, América e Oceania”, e destaca os jesuítas só estão crescendo na África.

Em 2013, existiam mais de 17.200 jesuítas, o que significa que em pouco mais de dez anos, a Companhia de Jesus diminuiu em mais de três mil membros.

Para o sacerdote uruguaio, “o problema não é só que muitos morrem e poucos entram, mas também que não sabemos reter muitos dos que entram”.

“A razão pela qual não temos vocações não é por causa da sociedade secularizada, da mudança dos tempos e de mil outras desculpas. A razão é que estas condições do nosso tempo nos intimidam, nos oprimem e não sabemos como responder aos desafios de hoje com o dinamismo e a criatividade de ontem”, alerta o padre.

O problema da identidade jesuíta: “Continuamos a perguntar-nos quem somos”

“Este ano fazem cinquenta anos que cada vez que nós, jesuítas, nos encontramos começamos a ver quem somos, para que servimos”.

“Se o que indica o documento [De Societas Statu] é assim, o problema da Companhia é mais grave do que imaginamos. Se os jesuítas de todas as gerações e de todas as origens culturais tiverem dúvidas sobre a sua identidade, estamos acabados. É evidente que não é a minha experiência e penso que não é a de muitos jesuítas que conheço”, destaca o reitor da UCU.

“Hoje, os jesuítas em muitos lugares são padres vergonhosos, reservados, tímidos, sem zelo apostólico. E assim ninguém se emociona”, afirma o padre uruguaio.

Para o reitor da UCU, “o problema é que muitos na Companhia, incluindo os superiores maiores, têm dificuldade em assumir o que é próprio da nossa identidade religiosa, apostólica e sacerdotal, bem como dos ministérios da Companhia”.

A Companhia de Jesus “está em profunda decadência”

Na opinião do jesuíta uruguaio, a Companhia de Jesus “está em profunda decadência”. Ela não sabe, ou não quer saber, o que é a mesma coisa. Ela quer acreditar que essa é a situação de todas as outras realidades da Igreja ao redor dela e que, portanto, é o que deveria ser.

Na sua opinião, o governo da Companhia “teme que, se falar claramente a toda a ordem, os seus membros sofram e desanimem. Ela prefere manter a ficção de que as coisas vão bem a arriscar reconhecer a decadência religiosa e apostólica da Companhia”.

Sobre o relatório geral dos jesuítas para 2023, o padre Fernández Techera destaca que “em todo este longo documento, de mais de 24 mil palavras, a palavra sacerdote nunca aparece e apenas duas vezes sacerdócio, embora para fazer uma referência distinguindo entre o sacerdócio na sociedade e o sacerdócio diocesano”.

“Acho que a nossa atitude é suicida: queremos vocações para o sacerdócio na Companhia, mas não queremos falar em ser sacerdotes”.

Ao finalizar seu texto, o sacerdote uruguaio destaca que “temos um carisma maravilhoso e necessário para a Igreja, um carisma religioso, apostólico e sacerdotal. Temos que recuperá-lo e vivê-lo com paixão, coragem e generosidade”.

“Para conseguir isso é preciso falar com mais liberdade, expressar com clareza o que vivemos e pensamos, deixar de ser politicamente correto e usar clichês e slogans”.

Ao concluir, o padre Fernández Techera pede a Deus que “nos conceda neste tempo uma esperança viva para acreditar que, se nos colocarmos nas suas mãos e formos fiéis, ainda poderemos ressuscitar e mais uma vez prestar um grande serviço à sua Igreja”.

A ACI Prensa, agência em espanhol do grupo ACI, entrou em contato com a cúria geral dos jesuítas em Roma para solicitar suas impressões sobre os escritos do padre Fernández Techera. Até a publicação desta matéria, nenhuma resposta foi recebida.

Visita Apostólica aos Jesuítas

Num escrito publicado em março de 2022, o cardeal George Pell, que morreu em janeiro de 2023, sugeriu, sob o pseudónimo Demos, a realização de uma visita apostólica ou inquérito à Companhia de Jesus.

O cardeal explicou que considerava isso necessário porque “a Ordem é altamente centralizada, suscetível de ser reformada ou arruinada a partir de cima”.

Os jesuítas foram investigados pela última vez no início da década de 1980. Foi o papa são João Paulo II quem interveio pessoalmente no governo da companhia ao afastar o padre Pedro Arrupe do cargo de superior geral.

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