24 de outubro de 2024 Doar
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Continuação da encíclica Dilexit nos, sobre o Coração de Jesus, publicada hoje pelo papa Francisco

Carta Encíclica Dilexit nos. | Crédito: ACI Digital.

O papa Francisco publicou hoje (24) uma nova encíclica, sobre o Coração de Jesus. Leia abaixo a partir do V capítulo da encíclica na tradução oficial feita pela Santa Sé do original em espanhol escrito pelo papa. Os capítulos anteriores estão aqui.

CAPÍTULO V

AMOR POR AMOR

164. Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação,não  implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.

UM LAMENTO E UM PEDIDO

165. A partir da segunda grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto – disse-me Ele – custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão»[162].

166. Jesus fala da sua sede de ser amado, mostrando-nos que o seu Coração não é indiferente à nossa reação diante do seu desejo: «Tenho sede, mas uma sede tão ardente de ser amado pelos homens no Santíssimo Sacramento, que esta sede me consome; e não encontro ninguém que se esforce, segundo o meu desejo, por saciar a minha sede, retribuindo um pouco do meu amor»[163]. O pedido de Jesus é o amor. Quando o coração fiel o descobre, a resposta que brota espontaneamente não é uma custosa busca de sacrifícios ou o mero cumprimento de um pesado dever, é uma questão de amor: «Recebi de Deus graças muito grandes do seu amor, e senti-me impelida do desejo de lhe corresponder de algum modo e de lhe pagar amor por amor»[164]. O mesmo ensina Leão XIII, escrevendo que, mediante a imagem do Sagrado Coração, a caridade de Cristo «nos move ao amor recíproco»[165].

PROLONGAR O SEU AMOR NOS IRMÃOS

167. É preciso voltar à Palavra de Deus para reconhecer que a melhor resposta ao amor do seu Coração é o amor aos irmãos; não há maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor. A Palavra de Deus di-lo com toda a clareza:

«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).

«Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14).

«Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14).

«Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).

168. O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração egoísta. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: “Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso”. Por isso mesmo, o convite de São Paulo não era: “Esforçai-vos por fazer boas obras”. O seu convite era mais precisamente: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5).

169. É bom lembrar que no Império Romano muitos pobres, forasteiros e tantos outros descartados encontravam respeito, carinho e cuidado nos cristãos. Isto explica o raciocínio do imperador apóstata Juliano, que se perguntava porque é que os cristãos eram tão respeitados e seguidos, considerando que uma das razões era o seu empenho na assistência aos pobres e forasteiros, já que o Império os ignorava e desprezava. Para este imperador, era intolerável que os pobres não recebessem ajuda de sua parte, enquanto os odiados cristãos «alimentam os seus, e também os nossos»[166]. Numa carta, insiste, em particular, na ordem de criar instituições de caridade para competir com os cristãos e atrair o respeito da sociedade: «Estabelece em todas as cidades alojamentos numerosos para que os estrangeiros possam gozar da nossa humanidade. [...] Habitua os helenos às obras de beneficência»[167]. Mas não atingiu o seu objetivo, porque por detrás destas obras não havia seguramente o amor cristão, que permitia reconhecer a cada pessoa uma dignidade única.

170. Identificando-se com os últimos da sociedade (cf. Mt 25, 31-46), «Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, como também e sobretudo daquelas qualificadas como “indignas”. Este princípio novo na história, pelo qual o ser humano é tanto mais “digno” de respeito e de amor quanto mais é fraco, mísero e sofredor, a ponto de perder a própria “figura” humana, mudou o rosto do mundo, dando vida a instituições que se dedicam a cuidar daqueles que se encontram em condições desumanas: os recém-nascidos abandonados, os órfãos, os idosos deixados sozinhos, os doentes mentais, os portadores de doenças incuráveis ou com graves malformações, os sem-teto»[168].

171. Mesmo do ponto de vista da ferida do seu Coração, olhar para o Senhor, que «tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores» (Mt 8, 17), ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor[169]. Se contemplarmos a entrega de Cristo por todos, torna-se inevitável perguntarmo-nos por que razão não somos capazes de dar a nossa vida pelos outros: «Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1 Jo 3, 16).

ALGUMAS RESSONÂNCIAS NA HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE

172. Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.

Ser uma fonte para os outros

173. A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de João 7, 38 – «hão de correr do seu coração rios de água viva» – como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele próprio ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros. Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós correntes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios»[170].

174. Santo Ambrósio recomendava beber de Cristo «para que abunde em ti a fonte de água que jorra para a vida eterna»[171]. E Mário Vitorino sustentava que o Espírito Santo é dado em tal abundância que «quem o recebe torna-se um ventre que emana rios de água viva»[172]. Santo Agostinho dizia que este rio que brota do fiel é a benevolência[173]. São Tomás de Aquino reafirmou esta ideia, afirmando que quando alguém «se apressa a comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, brota do seu ventre água viva»[174].

175. Com efeito, embora «o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano»[175], a Igreja, que nasce do Coração de Cristo, prolonga e comunica em todos os tempos e lugares os efeitos dessa única paixão redentora, que conduz os homens à união direta com o Senhor.

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176. Na Igreja, a mediação de Maria, intercessora e mãe, só pode ser entendida «como participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo»[176], único Redentor, e «esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la»[177]. A devoção ao coração de Maria não quer enfraquecer a adoração única devida ao Coração de Cristo, mas estimulá-la: «A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia»[178]. Graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez.

Fraternidade e mística

177. São Bernardo, ao mesmo tempo que convidava à união com o Coração de Cristo, aproveitava a riqueza desta devoção para propor uma mudança de vida fundada no amor. Ele acreditava que era possível uma transformação da afetividade, escravizada pelos prazeres, que não se liberta pela obediência cega a uma ordem, mas numa resposta à doçura do amor de Cristo. Supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor: «Ama, pois, o Senhor, teu Deus, com o afeto de um coração pleno e íntegro, ama-o com toda a vigilância e circunspeção da razão, ama-o também com todas as forças, de modo que nem sequer tenhas medo de morrer por seu amor […]. Que o Senhor Jesus seja doce e suave ao teu coração, contra os prazeres carnais malignamente doces, e que a doçura vença a doçura, como um prego expulsa outro prego»[179].

178. São Francisco de Sales foi especialmente iluminado pelo pedido de Jesus: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29). Assim, dizia ele, nas coisas mais simples e ordinárias roubamos o coração do Senhor: «É necessário ter o cuidado de o servir bem seja nas coisas grandes e elevadas que nas coisas pequenas e desprezíveis, pois podemos igualmente, por estas ou por aquelas, roubar-lhe o coração por amor [...]. Estes pequenos gestos quotidianos de caridade, esta dor de cabeça, esta dor de dentes, esta indisposição, esta contrariedade do marido ou da mulher, este partir de um copo, este desprezo ou este enfado, a perda das luvas, de um anel, de um lenço, este pequeno incómodo assumido para deitar-se à boa hora e se levantar cedo para rezar, para receber a comunhão, esta pequena vergonha que se experimenta ao fazer um ato de devoção em público; em suma, todos estes pequenos sofrimentos recebidos e abraçados com amor satisfazem grandemente à Bondade divina»[180]. Mas, em última análise, a chave da nossa resposta ao amor do Coração de Cristo é o amor ao próximo: «É um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades [...]. Nosso Senhor ama-nos sem interrupção, suporta as nossas faltas como as nossas imperfeições; […] devemos, portanto, fazer o mesmo em relação aos nossos irmãos, jamais deixando de apoiá-los»[181].

179. São Charles de Foucauld queria imitar Jesus Cristo, viver como Ele viveu, agir como Ele agiu, fazer sempre o que Jesus teria feito no seu lugar. Para realizar plenamente este objetivo, necessitava conformar-se aos sentimentos do Coração de Cristo. Assim, a expressão “amor por amor” aparece mais uma vez, quando ele diz: «Desejo de sofrimentos, para retribuir-lhe amor por amor, para imitá-lo [...] para entrar na sua obra e oferecer-me com ele, o nada que sou, em sacrifício, como vítima, para a santificação dos homens»[182]. O desejo de levar o amor de Jesus, o seu trabalho missionário entre os mais pobres e esquecidos da terra, levou-o a adotar como lema Iesus Caritas, com o símbolo do Coração de Cristo encimado por uma cruz[183]. Não foi uma decisão superficial: «Com todas as minhas forças, procuro mostrar e provar a estes pobres irmãos perdidos que a nossa religião é toda caridade, toda fraternidade, que o seu emblema é um coração»[184]. E quis estabelecer-se com outros irmãos «em Marrocos, em nome do coração de Jesus»[185]. Deste modo, a ação evangelizadora deles seria uma irradiação: «A caridade deve irradiar das fraternidades como irradia do coração de Jesus»[186]. Este desejo fez dele, pouco a pouco, um irmão universal, porque, deixando-se plasmar pelo Coração de Cristo, quis abraçar no seu coração fraterno toda a humanidade sofredora: «O nosso coração, como o da Igreja, como o de Jesus, deve abraçar todos os homens»[187]. «O amor do coração de Jesus pelos homens, o amor que ele manifestou na sua paixão, é o amor que nós devemos ter por todos os seres humanos»[188].

180. O padre Henri Huvelin, diretor espiritual de São Charles de Foucauld, dizia que «quando Nosso Senhor vive num coração, ele lhe dá esses sentimentos, e esse coração se abaixa para os pequenos. Tal foi a disposição do coração de um Vicente de Paulo […]. Quando Nosso Senhor vive na alma de um sacerdote, inclina-o para os pobres»[189]. É importante notar como esta dedicação de São Vicente, que o padre Huvelin descreve, era também alimentada pela devoção ao Coração de Cristo. São Vicente exortava a «tomar do coração de Nosso Senhor algumas palavras de consolação»[190] para o pobre doente. Para que isso seja real, pressupõe-se que o próprio coração tenha sido transformado pelo amor e pela mansidão do Coração de Cristo, e São Vicente repetiu muito essa convicção nos seus sermões e conselhos, tanto que se tornou uma caraterística proeminente das Constituições de sua Congregação: «Todos também porão grande diligência em aprender esta lição ensinada por Cristo: “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração”, considerando que – como Ele mesmo afirma – com a mansidão se possui a terra, porque com o exercício desta virtude se ganham os corações dos homens para se converterem a Deus, o que não conseguem aqueles que tratam com o próximo dura e asperamente»[191].

A REPARAÇÃO: CONSTRUIR SOBRE AS RUÍNAS

181. Tudo isto nos permite compreender, à luz da Palavra de Deus, que sentido devemos dar à “reparação” oferecida ao Coração de Cristo, o que é que o Senhor realmente espera que reparemos com a ajuda da sua graça. Muito se discutiu a este respeito, mas São João Paulo II ofereceu uma resposta clara aos cristãos de hoje, a fim de nos guiar para um espírito de reparação mais em sintonia com o Evangelho.

Sentido social da reparação ao Coração de Cristo

182. São João Paulo II explicou que, entregando-nos em conjunto ao Coração de Cristo, «sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo»; isto implica certamente que sejamos capazes de «unir o amor filial para com Deus ao amor do próximo»; pois bem, «é esta a verdadeira reparação pedida pelo Coração do Salvador»[192]. Junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixámos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor. Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza.

183. É verdade que todo o pecado prejudica a Igreja e a sociedade, de modo que «a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o carácter de pecado social», embora isto seja especialmente verdade para alguns pecados que «constituem, pelo seu próprio objeto, uma agressão direta ao próximo»[193]. São João Paulo II explicou que a repetição destes pecados contra os outros acaba muitas vezes por consolidar uma “estrutura de pecado” que afeta o desenvolvimento dos povos[194]. Frequentemente isto está inserido numa mentalidade dominante que considera normal ou racional o que não passa de egoísmo e indiferença. Este fenómeno pode definir-se como alienação social: «Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana»[195]. Não é apenas uma norma moral que nos leva a resistir a estas estruturas sociais alienadas, a desnudá-las e a criar um dinamismo social que restaure e construa o bem, mas é a própria «conversão do coração» que «impõe a obrigação»[196] de reparar tais estruturas. É a nossa resposta ao Coração amante de Jesus Cristo que nos ensina a amar.

184. Precisamente porque a reparação evangélica tem este forte significado social, os nossos atos de amor, de serviço e de reconciliação, para serem reparações eficazes, requerem que Cristo os impulsione, os motive e os torne possíveis. São João Paulo II dizia também que «para construir a civilização do amor»[197], a humanidade de hoje precisa do Coração de Cristo. A reparação cristã não pode ser entendida apenas como um conjunto de obras exteriores, que são indispensáveis e por vezes admiráveis. Exige uma espiritualidade, uma alma, um sentido que lhe dê força, impulso e criatividade incansável. Precisa da vida, do fogo e da luz que vêm do Coração de Cristo.

Reparar os corações feridos

185. Por outro lado, uma reparação meramente exterior não é suficiente; nem para o mundo, nem para o Coração de Cristo. Se cada um pensar nos seus próprios pecados e nas consequências para os outros, descobrirá que reparar os danos causados a este mundo implica também o desejo de reparar os corações feridos, onde se produziu o dano mais profundo, a ferida mais dolorosa.

186. O espírito de reparação «convida-nos a esperar que cada ferida possa ser curada, por mais profundas que seja. A reparação completa parece por vezes impossível, quando se perdem definitivamente bens ou pessoas queridas, ou quando certas situações se tornam irreversíveis. Mas a intenção de reparar e de o fazer concretamente é essencial para o processo de reconciliação e para o regresso da paz ao coração»[198].

A beleza de pedir perdão

187. Não bastam as boas intenções; é indispensável um dinamismo interior de desejo, que terá consequências externas. Em suma, «a reparação, para ser cristã, para tocar o coração da pessoa ofendida e não ser um simples ato de justiça comutativa, pressupõe duas atitudes exigentes: reconhecer a culpa e pedir perdão [...] É deste reconhecimento honesto do mal causado ao irmão, e do sentimento profundo e sincero de que o amor foi ferido, que nasce o desejo de reparar»[199].

188. Não se deve pensar que reconhecer o próprio pecado perante os outros seja algo degradante ou prejudicial para a nossa dignidade humana. Pelo contrário, é deixar de mentir a si mesmo, é reconhecer a própria história tal como ela é, marcada pelo pecado, sobretudo quando fizemos mal aos nossos irmãos: «Acusar-se a si mesmo faz parte da sabedoria cristã. […] Isto agrada ao Senhor, porque o Senhor recebe o coração contrito»[200].

189. Faz parte deste espírito de reparação o bom hábito de pedir perdão aos irmãos, que revela uma enorme nobreza no meio da nossa fragilidade. Pedir perdão é uma forma de curar as relações pois «reabre o diálogo e manifesta o desejo de restabelecer o vínculo da caridade fraterna […], toca o coração do irmão, consola-o e inspira-o a aceitar o perdão pedido. Assim, se o irreparável não pode ser completamente reparado, o amor pode sempre renascer, tornando a ferida suportável»[201].

190. Um coração capaz de compaixão pode crescer em fraternidade e solidariedade, porque «quem não chora retrocede, envelhece interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e íntima, feita de adoração e comoção diante de Deus, amadurece. Prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em espírito. Deste modo sente-se mais próxima dos pobres, os prediletos de Deus»[202]. Por conseguinte, surge um autêntico espírito de reparação, pois «quem está compungido no coração, sente-se cada vez mais irmão de todos os pecadores do mundo, sente-se mais irmão, sem qualquer aparência de superioridade nem dureza de juízo, mas sempre com desejo de amar e reparar»[203]. Esta solidariedade gerada pela compunção torna, ao mesmo tempo, possível a reconciliação. A pessoa capaz de compunção, «em vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos irmãos, chora pelos pecados deles. Não se escandaliza. Cumpre-se uma espécie de reviravolta: a tendência natural de ser indulgente consigo mesmo e inflexível com os outros inverte-se e, pela graça de Deus, a pessoa torna-se exigente consigo mesma e misericordiosa com os outros»[204].

A REPARAÇÃO: UM PROLONGAMENTO DO CORAÇÃO DE CRISTO

191. Há um outro modo complementar de entender a reparação, que nos permite colocá-la numa relação ainda mais direta com o Coração de Cristo, sem excluir desta reparação o compromisso concreto com os irmãos, do qual falámos.

192. Num outro contexto, afirmei que Deus «de certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo» e que «muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador»[205]. A nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo. Algumas expressões bíblicas exprimem-no metaforicamente, como quando o Senhor grita: «Se te queres converter, Israel, volta para mim» (Jr 4, 1). Ou quando diz, perante a rejeição do seu povo: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (Os 11, 8).

193. Embora não seja possível falar de um novo sofrimento de Cristo glorioso, «o mistério pascal de Cristo […] e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente»[206]. Deste modo, podemos dizer que Ele mesmo aceitou limitar a glória expansiva da sua ressurreição, conter a difusão do seu imenso e ardente amor para dar lugar à nossa livre cooperação com o seu Coração. Isto é tão real que a nossa recusa o detém nesse impulso de doação, tal como a nossa confiança e a oferta de nós próprios abre um espaço, oferece um canal desimpedido para a efusão do seu amor. A nossa rejeição ou indiferença limitam os efeitos do seu poder e a fecundidade do seu amor em nós. Se Ele não encontra em mim confiança e abertura, o seu amor fica privado – porque Ele mesmo assim o quis – do seu prolongamento na minha vida, que é única e irrepetível, e no mundo onde me chama a torná-lo presente. Isso não vem da sua fragilidade, mas da sua liberdade infinita, do seu poder paradoxal e da perfeição do seu amor por cada um de nós. Quando a omnipotência de Deus se manifesta na fraqueza da nossa liberdade, «só a fé a pode descobrir»[207].

194. Com efeito, Santa Margarida conta que, numa das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu Coração apaixonado de amor por nós, que «não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las»[208]. Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega.

A oferta ao Amor

195. Para refletir melhor sobre este mistério, socorremo-nos novamente da luminosa espiritualidade de Santa Teresa do Menino Jesus. Ela sabia que algumas pessoas tinham desenvolvido uma forma extrema de reparação, com a boa vontade de se dar pelos outros, que consistia em oferecer-se como uma espécie de “para-raios” a fim de que a justiça divina se realizasse: «Pensei nas almas que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviarem e de atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados»[209]. Mas, por muito admirável que tal oferta possa parecer, ela não está muito convencida disso: «Estava longe de me sentir impelida a fazê-lo»[210]. Esta insistência na justiça divina acaba por levar a pensar que o sacrifício de Cristo fosse incompleto ou parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não fosse suficientemente intensa.

196. Com a sua intuição espiritual, Santa Teresa do Menino Jesus descobriu que existe uma outra maneira de se oferecer, em que não é necessário saciar a justiça divina, mas deixar o amor infinito do Senhor difundir-se sem entraves: «Ó meu Deus! O vosso Amor desprezado vai ficar no vosso Coração? Estou convencida de que se encontrásseis almas que se oferecessem como vítimas de holocausto ao vosso Amor, as consumiríeis rapidamente. Creio que ficaríeis contente por não reprimirdes as ondas de infinita ternura que há em Vós»[211].

197. Não há nada a acrescentar ao único sacrifício redentor de Cristo, mas é verdade que a recusa da nossa liberdade não permite que o Coração de Cristo espalhe as suas “ondas de infinita ternura” neste mundo. E isto porque o próprio Senhor quer respeitar esta possibilidade. Foi isto, mais do que a justiça divina, que inquietou o coração de Santa Teresa do Menino Jesus, pois para ela a justiça só pode ser compreendida à luz do amor. Vimos que ela adorava todas as perfeições divinas através da misericórdia, e assim as via transfiguradas, radiantes de amor, dizendo: «A própria Justiça (e talvez mais ainda que qualquer outra) me parece revestida de amor»[212].

198. Deste modo, nasce o seu ato de oferecimento, não à justiça divina, mas ao Amor misericordioso: «Ofereço-me como vítima de holocausto ao vosso amor misericordioso, suplicando-vos que me consumais sem cessar, deixando transbordar para a minha alma as ondas de ternura infinita que estão encerradas em Vós, e que assim eu me torne mártir do vosso Amor, ó meu Deus!»[213]. É importante notar que não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo: «No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor [...], assim o meu sonho será realizado»[214]. Os dois aspectos estão inseparavelmente ligados.

199. O Senhor aceitou a sua oferta. Com efeito, algum tempo depois, ela própria exprimiu um amor intenso pelos outros, afirmando que este provinha do Coração de Cristo que se prolongava através dela. Assim, escrevia a sua irmã Leónia: «Amo-te mil vezes mais ternamente do que habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso Celeste Esposo»[215]. E mais tarde, escreveu a Maurice Bellière: «Como eu queria fazer-vos compreender a ternura do Coração de Jesus, o que Ele espera de vós!»[216].

Integridade e harmonia

200. Irmãs e irmãos, proponho que desenvolvamos esta forma de reparação, que é, em última análise, oferecer ao Coração de Cristo uma nova possibilidade de difundir neste mundo as chamas da sua ternura ardente. Se é verdade que a reparação implica o desejo de «desagravar o Amor incriado da injustiça que lhe infligem tantas negligências, e esquecimentos e injúrias»[217], o modo mais adequado é que o nosso amor, em troca daqueles momentos em que foi rejeitado ou negado, dê ao Senhor a possibilidade de se dilatar. Isto acontece se o nosso amor ultrapassa a mera “consolação” a Cristo, de que falámos no capítulo anterior, e se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo. Deste modo, oferecemos novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo.

201. As renúncias e os sofrimentos exigidos por estes atos de amor ao próximo unem-nos à paixão de Cristo, e sofrendo com Cristo «nesta mística crucifixão de que fala o Apóstolo, com ainda maior abundância receberemos, para nós e para os outros, frutos de propiciação e de indulgência»[218]. Só Cristo salva pela sua entrega na cruz por nós, só Ele redime, «pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» (1 Tm 2, 5-6). A reparação que oferecemos é uma participação, que aceitamos livremente, no seu amor redentor e no seu único sacrifício. Assim, completamos na nossa carne «o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Cl 1, 24) e é o próprio Cristo que prolonga através de nós os efeitos da sua doação total no amor.

202. Os sofrimentos têm muitas vezes a ver com o nosso ego ferido, mas é precisamente a humildade do Coração de Cristo que nos indica o caminho do abaixamento. Deus quis vir até nós humilhando-Se, fazendo-Se pequeno. Já o Antigo Testamento nos ensina isso, através das várias metáforas que mostram um Deus que entra na pequenez da história e se deixa rejeitar pelo seu povo. O seu amor mistura-se com a vida quotidiana do povo amado e torna-se mendigo de uma resposta, como se pedisse licença para mostrar a sua glória. Por outro lado, «talvez uma só vez, com palavras suas, tenha o Senhor Jesus apelado para o seu coração. E salientou este único traço: «mansidão e humildade». Como se dissesse que só por este caminho quer conquistar o homem»[219]. Quando Cristo disse:

«Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29), indicou que «para se exprimir necessita da nossa pequenez, do nosso abaixamento»[220].

203. No que dissemos, é importante notar vários aspectos inseparáveis, porque estas ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo. Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele próprio ama e serve através de nós. Se, por um lado, parece apequenar-se, aniquilar-se, porque quis manifestar o seu amor mediante os nossos gestos, por outro lado, nas mais simples obras de misericórdia, o seu Coração é glorificado e manifesta toda a sua grandeza. Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através duma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos. Assim Cristo sacia a sua sede e espalha gloriosamente, em nós e através de nós, as chamas da sua ternura ardente. Reparemos na bela harmonia que existe em tudo isto.

204. Finalmente, para compreender esta devoção em toda a sua riqueza, retomando o que dissemos sobre a sua dimensão trinitária, é necessário acrescentar que a reparação de Cristo enquanto ser humano é oferecida ao Pai por obra do Espírito Santo em nós. Portanto, a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele.

FAZER O MUNDO ENAMORAR-SE

205. A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos. Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos numa experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais? Sejamos honestos e leiamos a Palavra de Deus na sua inteireza. Por isso mesmo dizemos que não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar. É por isso que temos de concluir este capítulo recordando a dimensão missionária do nosso amor ao Coração de Cristo.

206. São João Paulo II, para além de falar da dimensão social da devoção ao Coração de Cristo, referiu-se à «reparação, que é a cooperação apostólica para a salvação do mundo»[221]. Do mesmo modo, a consagração ao Coração de Cristo «deve ser aproximada à ação missionária da própria Igreja, porque responde ao desejo do Coração de Jesus de propagar no mundo, através dos membros do seu Corpo, a sua dedicação total ao Reino»[222]. Por conseguinte, através dos cristãos, «o amor difundir-se-á no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade»[223].

207. O prolongamento das chamas de amor do Coração de Cristo ocorre também na obra missionária da Igreja, que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo. São Vicente de Paulo ensinou-o muito bem quando convidou os seus discípulos a pedir ao Senhor «esse coração, esse coração que nos faz ir a toda a parte, esse coração do Filho de Deus, o coração de Nosso Senhor, que nos dispõe a ir como Ele iria […] e nos envia como enviou-lhes [os apóstolos], para levar o seu fogo a toda a parte»[224].

208. São Paulo VI, dirigindo-se às congregações que propagavam a devoção ao Sagrado Coração, recordava que «o empenho pastoral e o ardor missionário serão intensamente inflamados quando os sacerdotes e os fiéis, para difundir a glória de Deus, e seguindo o exemplo da caridade eterna que Cristo nos mostrou, orientarem os seus esforços para comunicar a todos os homens as riquezas insondáveis de Cristo»[225]. À luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que de digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva.

209. A missão, entendida a partir da irradiação do amor do Coração de Cristo, requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas. Por isso, custa-lhes perder tempo a discutir questões secundárias ou a impor verdades e regras, porque a sua principal preocupação é comunicar o que vivem e, sobretudo, que os outros percebam a bondade e a beleza do Amado através dos seus pobres esforços. Não é isto que acontece com qualquer enamorado? Vale a pena tomar como exemplo as palavras com que Dante Alighieri, enamorado, tentou exprimir esta lógica:

«Pensando em todo o seu valor

tão doce se me faz sentir o Amor,

que se agora eu não perder veemência,

falando tornarei enamorada a gente»[226].

210. Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para o amar, é o maior desejo de um missionário da alma. Não há proselitismo nesta dinâmica de amor, as palavras do enamorado não perturbam, não impõem, não forçam, apenas levam os outros a se perguntarem como é possível um tal amor. Com o maior respeito pela liberdade e pela dignidade do outro, o enamorado limita-se a esperar que lhe seja permitido narrar esta amizade que preenche a sua vida.

211. Sem descurar a prudência e o respeito, Cristo pede-te que não tenhas vergonha de reconhecer a tua amizade com Ele. Pede-te que tenhas a coragem de dizer aos outros que foi bom para ti tê-lo encontrado: «Todo aquele que se declarar por mim, diante dos homens, também me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu » (Mt 10, 32). Mas para o coração enamorado não é uma obrigação, é uma necessidade difícil de conter: «Ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16). «No meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (Jr 20, 9).

Em comunhão de serviço

212. Não se deve pensar nesta missão de comunicar Cristo como se fosse algo apenas entre mim e Ele. Ela é vivida em comunhão com a própria comunidade e com a Igreja. Se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus. Se a esquecermos e não nos preocuparmos com ela, a nossa amizade com Jesus arrefecerá. Nunca se deve esquecer este segredo: o amor pelos irmãos e irmãs da própria comunidade – religiosa, paroquial, diocesana, etc. – é como o combustível que alimenta a nossa amizade com Jesus. Os atos de amor para com os irmãos e irmãs da comunidade podem ser a melhor ou, por vezes, a única forma possível de exprimir aos outros o amor de Jesus Cristo. O próprio Senhor o disse: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35).

213. É um amor que se torna serviço comunitário. Não me canso de recordar que Jesus o disse com grande clareza: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Ele propõe-te que o encontres também aí, em cada irmão e em cada irmã, especialmente nos mais pobres, desprezados e abandonados da sociedade. Que lindo encontro!

214. Portanto, se nos dedicarmos a ajudar alguém, isso não significa que nos esquecemos de Jesus. Pelo contrário, encontramo-lo de outra forma. E quando tentamos levantar e curar alguém, Jesus está lá, ao nosso lado. Com efeito, é bom recordar que, quando enviou os seus discípulos em missão, «o Senhor cooperava com eles» (Mc 16, 20). Ele está lá, trabalhando, lutando e fazendo o bem conosco. De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras.

215. Ele te envia a fazer o bem e te impele a partir do teu interior. Para isso, chama-te com uma vocação de serviço: farás o bem como médico, como mãe, como professor, como sacerdote. Onde quer que estejas, poderás sentir que ele te chama e te envia para viveres esta missão na terra. Ele próprio nos diz: «Envio-vos» (Lc 10, 3). Isto faz parte da amizade com Ele. Portanto, para que essa amizade amadureça, é preciso que te deixes enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, com generosidade, com liberdade, sem medo. Se te fechares no teu conforto, isso não te dará segurança; os medos, as tristezas e as angústias aparecerão sempre. Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz, fica frustrado. Por isso, deixa-te enviar, deixa-te conduzir por Ele para onde Ele quiser. Não te esqueças que Ele vai contigo. Não te atira para o abismo nem te deixa entregue a ti mesmo. Ele conduz-te e acompanha-te. Ele prometeu e cumpre: «Eu estarei sempre convosco» (Mt 28, 20).

216. De algum modo tens de ser missionário, como o foram os apóstolos de Jesus e os primeiros discípulos, que foram anunciar o amor de Deus, que saíram para dizer que Cristo está vivo e merece ser conhecido. Santa Teresa do Menino Jesus viveu-o como parte inseparável da sua oferta ao Amor misericordioso: «Queria dar de beber ao meu Bem-Amado e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas»[227]. Esta é também a tua missão. Cada um cumpre-a à sua maneira, e verás como podes ser missionário. Jesus merece-o. Se tiveres coragem, Ele te iluminará, acompanhará e fortalecerá, e viverás uma experiência preciosa que te fará muito bem. Não importa se conseguirá ver algum resultado; deixa isso para o Senhor que trabalha no segredo dos corações, mas não deixes de viver a alegria de tentar comunicar o amor de Cristo aos outros.

CONCLUSÃO

217. O que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum.

218. Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre.

219. A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade.

220. Peço ao Senhor Jesus Cristo que, para todos nós, do seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno. Isto até que, com alegria, celebremos unidos o banquete do Reino celeste. Aí estará Cristo ressuscitado, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto. Bendito seja!

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 24 de outubro do ano 2024, décimo segundo do meu Pontificado.

FRANCISCO

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