Pontifício
Conselho para a Família
Reflexões do Cardeal Alfonso López Trujillo
O Pontifício Conselho para a Família considera oportuno qualquer esforço de esclarecimento face ao desafio que a clonagem representa, consciente da importância do problema, e com vista à próxima retomada dos trabalhos para elaborar uma Convenção internacional contra a clonagem humana por parte das Nações Unidas. Trata-se de contribuir para uma adequada orientação desta problemática, assinalando aspectos éticos negativos da clonagem humana e o seu significado contrário à dignidade da pessoa e da família (1). É esta a intenção do presente artigo, no qual se tenta expor algumas considerações a este propósito, com um nível acessível também aos que não são peritos na matéria.
Há já alguns decénios que se vai desenvolvendo toda uma série de técnicas biológicas, cuja aplicação à procriação humana mostra numerosas problemáticas éticas e manifesta, cada vez mais, a necessidade de uma antropologia integral do ser humano e de uma renovada ponderação do papel da família para a humanidade. Em particular, as recentes tentativas de obter a clonagem humana trazem ao de cima importantes questões sobre a família, sobre o significado de ser pais e filhos, sobre a dignidade do embrião humano, sobre a verdade e o significado da sexualidade humana. A lenta e insidiosa separação contemporânea entre o conceito de vida humana e o de família, que é, ao contrário, o lugar natural onde ela tem a sua origem e desenvolvimento, é uma das mais nefastas consequências da cultura da morte.
De facto, como afirma a Instrução Donum vitae, da Congregação para a Doutrina da Fé, "a pessoa humana deve ser acolhida no gesto de união e de amor dos seus pais; a geração de um filho deverá, por conseguinte, ser o fruto da doação recíproca que se realiza no acto conjugal, com o qual os esposos cooperam como servos e não como donos, na obra do Amor Criador. A origem de uma pessoa humana é, na realidade, o resultado de uma doação. O concebido deverá ser o fruto do amor dos seus pais. Não pode nem deve ser concebido como o produto de uma intervenção de técnicas médicas e biológicas: isto equivaleria a reduzi-lo a tornar-se o objecto de uma tecnologia científica (2)".
A preocupante possibilidade de clonagem de seres humanos com a finalidade "reprodutiva", mediante a substituição técnica da genitorialidade responsável, está em contraste com a dignidade da filiação. Ainda mais preocupantes são os pedidos prementes, feitos por grupos de investigação, de legalizar a clonagem com a finalidade de submeter embriões humanos "produzidos" com manipulações e experimentações, para os destruir. Esta situação evidencia uma grave deterioração, quer do reconhecimento da dignidade da vida e da procriação humana, quer da consciência de como é insubstituível e fundamental o papel da família para o homem, e de como é fundamental o seu valor para toda a humanidade.
1. Clonagem, possibilidade da biologia moderna
Com a palavra clonagem referimo-nos à técnica frequentemente utilizada em biologia para reproduzir células e microorganismos, quer vegetais quer animais, e mais recentemente para reproduzir sequências de informação genética contida nos materiais biológicos, como fragmentos de DNA (ácido desoxirribonucléico), no qual está codificada a informação genética nuclear de muitas espécies. É necessário completar esta descrição com uma definição mais exacta da técnica de clonagem, de maneira que se torne possível conhecer de modo mais adequado a natureza da mesma.
Considerando a finalidade, a clonagem é um procedimento técnico de reprodução, mediante a qual é manipulado o material genético de uma célula ou de um organismo (vegetal ou animal) com a finalidade de obter um indivíduo ou um conjunto de indivíduos geneticamente idênticos ao primeiro. O que distingue a clonagem de outras técnicas semelhantes é o facto de que na clonagem a reprodução se realiza sem união sexual (assexual), e sem fecundação ou união dos gametas (agâmica), sendo o resultado de um conjunto de indivíduos biologicamente idênticos ao primeiro indivíduo, que forneceu o conjunto genético nuclear.
O conjunto de indivíduos obtidos pela clonagem denomina-se clone, expressão mediante a qual se indica que todos e cada um destes indivíduos têm a mesma informação genética; por conseguinte, não são unicamente descendentes do progenitor (não se verificou, portanto, a combinação genética sexual dos progenitores) (3). Trata-se, então, de um tipo de reprodução que pode substituir artificialmente, nas espécies animais (de reprodução sexual), a fecundação natural ou a união de gametas (as células mediante as quais se reproduzem por natureza), com as consequentes vantagens, defeitos e perigos.
Tendo em consideração a realização técnica, por clonagem, compreende-se, em sentido mais estrito, com base na perspectiva do procedimento usado, a reprodução obtida mediante a chamada "transferência nuclear" (4). Quando os cientistas fazem alusão à clonagem em sentido estrito, costumam identificá-la, sem dúvida, com a transferência nuclear: "A fecundação propriamente dita é substituída pela "fusão" de um núcleo tirado de uma célula somática do indivíduo que se deseja clonar, ou da mesma célula somática, com um oócito desnucleado, ou seja, privado do genoma de origem materna. Visto que o núcleo da célula somática possui todo o património genético, o indivíduo obtido possui excepto possíveis alterações a identidade genética de quem doa o núcleo. É esta correspondência genética fundamental com o doador que leva, no novo indivíduo, à repetição somática ou à cópia do próprio doador" (5).
São também chamadas "clonagens" (ou "semiclonagens" ou outras palavras semelhantes), mesmo se em sentido lato e menos adequado, outras técnicas de reprodução assexual e agâmica que se assemelham, em certos aspectos, à transferência nuclear, sobretudo pelos resultados obtidos, ou seja, uma descendência geneticamente idêntica. Trata-se de técnicas como a partenogénese artificial (6) ou a fixão embrionária (7), entre outras.
Não existem especiais objecções éticas à clonagem de indivíduos (para obter descendência deles) e de materiais biológicos não humanos (para os empregar em vários usos), quando é feita de modo responsável, assim como não existem objecções éticas ao tradicional e antiquíssimo uso de técnicas deste género no âmbito vegetal, que tem vantagens consideráveis. Não há dúvida de que a utilização da clonagem em zoologia pode originar grandes benefícios. As melhorias na reprodução de animais de criação, a redução dos custos de produção de certas carnes, a eventual aplicação da clonagem para salvar espécies em vias de extinção, os progressos na condição de experimentação e investigação em farmacologia, por exemplo, fazem com que seja aconselhável continuar a investigação de aplicações das técnicas de clonagem nas espécies animais.
Apesar disso, é necessário realçar que a utilização destas técnicas mostra ainda incertezas que devem ser atentamente examinadas. Podem vir a ter, no futuro, consequências imprevistas? Podem, por exemplo, causar deformações genéticas perigosas, que hoje ainda são desconhecidas, ou não suficientemente conhecidas? Em que medida isto pode envolver alterações, a médio e a longo prazo, no meio ambiente, na ecologia? Uma prática incontrolada da clonagem poderia acabar por desencadear novas doenças e deformações?
2. Clonagem humana "reprodutiva" ou "terapêutica"
É já do conhecimento de todos que estão em acto tentativas de aplicar a clonagem para "produzir" seres humanos e os usar na investigação e, eventualmente, na terapia médica. Os mass media, a science fiction e uma certa literatura de divulgação contribuíram para gerar expectativas falsas a este propósito, em relação às reais possibilidades técnicas da clonagem. Contudo, apesar disto, não há dúvida de que foram formuladas (com maior ou menor rigor científico) hipóteses e investigações que tendem para experimentar eventuais aplicações da clonagem ao ser humano. Este facto é, actualmente, objecto da atenção das autoridades públicas de todo o mundo, assim como de todos os que desempenham uma especial responsabilidade para o bem comum.
A problemática da clonagem de embriões humanos, como se apresenta hoje, configura-se essencialmente em duas versões possíveis: clonagem "reprodutiva" e clonagem "terapêutica" (ou para investigação científica). A diferença entre as duas reside sobretudo na finalidade que se pretende alcançar: a primeira tende para o desenvolvimento completo do sujeito mediante a implantação no útero (clonagem "reprodutiva"); na segunda pretende-se utilizar o embrião em estado de pré-implantação com a finalidade de investigação para fins sobretudo terapêuticos (clonagem "terapêutica", ou para a investigação científica). A finalidade para realizar a clonagem seria, por conseguinte:
1. Obter uma descendência humana e estabelecer uma técnica de procriação assistida mais eficaz, com uma maior e melhor aplicabilidade em certos casais (clonagem "reprodutiva").
2. Obter, mediante esta técnica, embriões "sintéticos" (assim são chamados) ou "acúmulos de células" (nas etapas embrionárias humanas primitivas, cada uma das células do embrião é totipotente (8) ou multipotente (9), do qual extrair células estaminais (10), sem deixar que se verifique a implantação no útero materno. As células estaminais extraídas, devidamente controladas, poderiam desenvolver-se em células específicas, nervosas, cardíacas, musculares, epáticas, etc. (clonagem "terapêutica", ou com finalidades de investigação científica).
3. Rumo à proibição global e simultânea de qualquer clonagem humana?
É evidente que a aplicação da ciência da procriação humana se refere a toda a sociedade, e não só à comunidade científica. Por isso, muito depressa, foram começados os esforços para obter uma legislação na qual, sem coarctar o legítimo desenvolvimento da ciência, se delineassem de modo definitivo os limites éticos e legais da sua aplicação e se proibisse uma eventual clonagem do ser humano. Nos últimos anos foram aprovadas, nalguns Países, leis nas quais a clonagem humana reprodutiva é severamente proibida, apesar de terem sido permitidas até agora investigações sobre a clonagem humana feitas unicamente para fins de investigação e terapêuticos (como no Reino Unido). Noutros Países, ao contrário, foi proibido qualquer tipo de clonagem (Alemanha), ou então foram iniciados os procedimentos parlamentares para uma proibição de qualquer tipo de clonagem (Estados Unidos) (11). Não há dúvida de que a preocupação por esta temática aumenta, e as tentativas para obter uma proibição da clonagem humana, não só a nível nacional, mas também mediante os instrumentos do direito internacional, se intensificaram. O ponto de partida deste debate foi a vontade decidida de proibir a clonagem humana reprodutiva. Desde 1993, a Comissão Internacional de Bioética (12) ocupou-se deste problema. A Conferência Geral da UNESCO aprovou uma "Declaração universal sobre o genoma humano e sobre os direitos humanos", adoptada depois pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1998, na qual se afirma que a clonagem com finalidade reprodutiva está em contradição com a dignidade humana (13).
Durante a 56ª Assembleia Geral das Nações Unidas (12/12/2001), foi decidida a constituição de uma Comissão, que ainda hoje prossegue os seus trabalhos, para conseguir a eliminação da clonagem mediante um instrumento jurídico internacional, em particular, uma Convenção internacional (14). No começo tinha-se pensado apenas numa proibição da clonagem reprodutiva. Em Agosto de 2001, a Alemanha e a França pediram ao Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, um projecto para a proibir em todo o mundo. No fim de 2001, a clonagem reprodutiva tinha sido proibida em 24 Países, entre os quais a Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Espanha, Índia, Japão, Brasil e África do Sul.
A recente evolução da situação internacional e a iniciativa de alguns Países, favoráveis não só a uma proibição da clonagem reprodutiva (proposta de proibição parcial), mas a uma proibição global e simultânea da clonagem, quer com finalidade reprodutiva quer de investigação e terapia (proposta de proibição total), representam uma mudança significativa nos trabalhos para uma Convenção internacional contra a clonagem.
Em particular, foram importantes, a respeito disto, a lei dos Estados Unidos, de 27/2/2003, para banir totalmente a clonagem (actualmente em fase de estudo no Senado), a resolução do "Bundestag" alemão, de 7/2/2003, para promover iniciativas internacionais de proibição total (e não só parcial como até agora), o projecto francês, de 30/1/2003, de reforma da lei sobre a biomedicina, com a proibição total (ainda em debate), e o pedido de proibição total do Parlamento Europeu, de 10/4/2003 (actualmente a ser estudado pela Comissão Europeia). Todas elas são iniciativas recentes que tendem a excluir qualquer forma de clonagem e não só a reprodutiva. Esta diferente atmosfera internacional, confrontada com a de há poucos anos, afirmou-se actualmente, com uma iniciativa promovida pelos Estados Unidos e pela Espanha, apresentada às Nações Unidas, com a finalidade de alcançar uma Convenção internacional de proibição total da clonagem. (15)
Existem precedentes de instrumentos internacionais que tendem para obter esta proibição. No âmbito do Conselho da Europa, depois do acordo de Paris (12/1/1997), começaram os trabalhos para uma Convenção contra a clonagem. O Parlamento Europeu acolheu e fez sua esta iniciativa do Conselho da Europa para uma "proibição explícita de qualquer clonagem humana" e, entretanto, apresentou um pedido "aos investigadores e aos médicos que participam na investigação sobre o genoma humano para que não intervenham em caso algum na clonagem de seres humanos até à entrada em vigor de uma proibição juridicamente vinculante" (16). A Convenção europeia sobre os direitos humanos e a biotecnologia ou "Convenção de Oviedo", bem como o Protocolo adjunto sobre a proibição de clonagem de seres humanos, foi o fruto destes trabalhos e proibiu especificamente "a constituição de embriões humanos para fins de investigação" (art. 18). Por conseguinte, a ratificação da Convenção de Oviedo da parte de alguns Estados europeus já tinha começado em 1999.
O Parlamento europeu pronunciou-se de novo a 22 de Novembro de 2001 a favor da proibição de qualquer tipo de clonagem humana, desta vez em todo o mundo. Tratou-se de uma emenda a uma relação sobre a biotecnologia na qual o Parlamento, "repete insistentemente que deveria haver uma proibição universal e específica a nível das Nações Unidas da clonagem de seres humanos em qualquer fase de formção e desenvolvimento". O Parlamento convidava então a Comissão Europeia e os Estados membros do Parlamento Europeu a proceder neste sentido. Tanto em Abril de 2002, como em Fevereiro de 2003, os parlamentares, nas votações, mostraram-se favoráveis a uma proibição da clonagem com a finalidade de extrair do embrião as células estaminais. O "Bundestag" (Fevereiro de 2003) pediu ao Governo alemão que mudasse a posição da Alemanha nas Nações Unidas, proclamando-se a favor da proibição total da clonagem, porque ela representa um atentado contra a dignidade humana, considerando que não existe distinção moral substancial entre clonagem reprodutiva e terapêutica, porque nos dois casos se realiza a criação de embriões humanos vivos.
4. Por que não é eticamente aceitável a clonagem humana reprodutiva e terapêutica?
Na presença da clonagem humana, a preocupação é bem justificada e corresponde a motivos muito sérios. As várias tentativas de conseguir uma proibição global e simultânea da clonagem em todo o mundo correspondem a esta preocupação. Apesar do grande interesse manifestado na realização destes projectos e das expectativas suscitadas em importantes colectividades (cientistas, grupos de doentes que aguardam novos recursos terapêuticos, associações profissionais, etc.) que, é necessário dizê-lo, têm um maior ou menor fundamento na realidade, seria irresponsável não aprovar atentamente as objecções à clonagem, que encontram apoio em considerações de ordem técnica e ética, assim como em razões antropológicas profundas.
1. A clonagem reprodutiva
No que se refere às tentativas de clonagem humana para fins reprodutivos, os obstáculos científicos previsíveis são muito sérios, a ponto de que numerosos peritos expressaram fortes dúvidas sobre a praticabilidade actual de um projecto verdadeiramente científico a respeito disto. Apesar dos recentes anúncios clamorosos (mais ou menos sensacionais) dos mass media, não existem actualmente provas de verdadeiro valor científico que mostrem, longe de qualquer dúvida, que estas tentativas tenham tido bom êxito. Por outro lado, mesmo se se admite a possibilidade de que estas tentativas no futuro singrem, é necessário considerar o risco gravíssimo de doenças, defeitos genéticos e monstruosidades, do que seriam responsáveis aqueles que as realizam.
Por exemplo, a técnica da transferência de núcleo não permitiu, até agora, obter outros resultados, a não ser uma grande maioria de embriões que não conseguem desenvolver-se de maneira justa (17). Nas escassas ocasiões em que se obtém o nascimento, os animais sofrem muitas vezes de doenças e algumas vezes de várias monstruosidades, de tal forma que, com frequência, morrem prematuramente (18). Isto parece ser causado por defeitos no processo de "reprogramação" genética do núcleo transferido. Não há dúvida de que em tais condições, uma clonagem para fins "reprodutivos" não deveria ser aplicada à espécie humana, devido ao grave risco que representaria e à elevadíssima mortalidade inerente (19).
Se a imoralidade da clonagem reprodutiva já está determinada pelas actuais circunstâncias técnicas, os obstáculos éticos para uma clonagem humana reprodutiva mostram-se em si mesmos insuperáveis e manifestam um contraste com o sentido moral comum da humanidade (20).
O filósofo Hans Jonas (já nos anos 80) apresentou as problemáticas éticas que uma eventual clonagem da pessoa humana representaria. A clonagem significaria a perda daquilo a que Jonas chama o "direito à ignorância", isto é, o direito subjectivo de conhecer que um elemento não é uma reprodução de outro, e de ignorar o próprio desenvolvimento futuro (como, por exemplo, as doenças a que estaremos sujeitos, a evolução da própria morte natural, etc.). Esta "ignorância" é, num certo sentido, como afirma Jonas, uma "condição de possibilidade" da liberdade humana, e infringi-la constituiria um grande peso para a própria autonomia. O clone humano seria desumanamente condicionado quando se reconhecesse a cópia de outro, porque a incerteza é um factor primordial no esforço humano da livre escolha.
Sem a responsabilidade da incerteza segundo Jonas o clone deveria prever qualquer um dos seus actos, prever obrigatoriamente as suas doenças, corrigir as futuras atitudes psicológicas, num trabalho constante contra a corrente de afastamento do seu "original". Este último seria sempre a sua sombra, o modelo, o vestígio omnipresente a ser seguido e evitado. "Ser cópia" tornar-se-ia parte da sua identidade, do próprio ser e da sua consciência. Desta forma seria provocada uma ferida ao direito que o homem tem de viver a sua própria vida como uma descoberta original e irrepetível, uma descoberta, no fundo, de si mesmo (21). Desta forma, o seu percurso vital tornar-se-ia a pesada realização de um "programa de controlo" desumano e alienador. Por conseguinte, segundo Jonas, a clonagem é "no método a forma mais tirânica e simultaneamente mais escravizante de manipulação genética; o seu objectivo não é uma arbitrária modificação da substância hereditária, mas, precisamente, a sua arbitrária fissão, em contraste com a estratégia dominante na natureza" (22).
O risco de um uso eugénico da clonagem (quer reprodutiva, quer terapêutica) com a finalidade de "melhoramento" da raça, ou com a finalidade de seleccionar características pessoais consideradas "superiores" a outras, não é, (apesar das afirmações de quem a defende), uma possibilidade muito distante.
Na resolução de 12/3/1997 sobre a clonagem, o Parlamento Europeu declarava-se "firmemente convicto de que nenhuma sociedade pode justificar nem tolerar, em nenhuma circunstância, a clonagem de seres humanos: nem para fins experimentais, nem para o conjunto da terapia da infertilidade, nem para diagnóstico precedente à implantação ou transplante de tecidos, nem para qualquer outra finalidade, porque constitiu uma grave violação dos direitos humanos fundamentais, se opõe ao princípio de igualdade dos seres humanos permitindo uma seleçcão eugénica e racista da espécie humana, ofende a dignidade da pessoa e exige a experimentação com seres humanos (B). Numa segunda Resolução sobre a clonagem, de 15/1/1998, o Parlamento europeu, ao pedir a proibição da clonagem de seres humanos, em via experimental, para diagnósticos "ou para qualquer outra finalidade", qualifica a clonagem inclusive como "antiética" e "moralmente repugnante" (B).
2. A clonagem terapêutica
A clonagem humana terapêutica é mostrada com frequência pelos seus defensores como um progresso que consentiria obter os benefícios de uma terapia genética, como remédio para doenças que hoje não são acessíveis à medicina. Mas estas eventuais (e discutíveis) consequências positivas não mudam, no fundo, a natureza moral da clonagem em si mesma. Há uma estreita continuidade objectiva entre clonagem reprodutiva e terapêutica. Em ambos os casos se "reproduz" um embrião humano, mas na terapêutica, está prevista a ulterior destruição, ao extrair células estaminais embrionárias ou materiais biológicos com a finalidade de usá-los para fins terapêuticos.
Nos aspectos técnicos da clonagem terapêutica persistem abundantes incertezas. Por um lado afirma-se que a clonagem seria um recurso de células estaminais embrionárias (que, não sendo diferenciadas, resultariam interessantes do ponto de vista biológico, devido à sua maior "concretude"). Mas nem sempre se tem na devida consideração a condição precária do embrião clonado e a elevada probabilidade de gerar diferentes neoplasias (cancros e tumores) no eventual doente no qual as células seriam introduzidas. Por esta razão, muitos investigadores indicam a pesquisa sobre as células estaminais adultas como aquela da qual devemos esperar maiores êxitos, sem os limites éticos que o uso de células estaminais embrionárias implica (23).
Por outro lado, é preciso considerar também as notáveis dificuldades práticas que a rejeição imunitária destas células estaminais embrionárias representaria. Estas dificuldades tornam ainda mais precária a argumentação daqueles que pretendem justificar eticamente a clonagem humana para a usar nestas investigações. Ignorar a recusa imunitária das células estaminais embrionárias mediante a clonagem de um embrião supõe toda uma instrumentalização do embrião humano. Como realça Elisabeth Monfort, "necessariamente o uso de células estaminais embrionárias... é uma atitude irresponsável e também hipócrita, sem dúvida para tranquilizar aqueles que ainda duvidam" (24).
A clonagem terapêutica para a obtenção de células estaminais implica não só a produção de um embrião, mas também a sua manipulação e a ulterior destruição. Não é aceitável considerar um ser humano, em qualquer etapa do seu desenvolvimento, como um "material" de armazém, ou fonte de tecidos e órgãos, de "peças de substituição". Podemos compreender melhor a complexidade moral da clonagem se considerarmos que aquilo que seria produzido, manipulado e destruído não são coisas, mas seres humanos como nós. Uma forma de enfrentarmos esta questão seria pormo-nos na situação, não dos cientistas que realizam a clonagem, mas na situação do embrião (como também nós fomos). Certamente não seria agradável nascer num laboratório, em vez de ser o fruto da união dos nossos pais. Nem seria agradável ser o sobrevivente entre dezenas ou centenas dos nossos irmãos gémeos eliminados porque "tinham defeitos". Muito menos agradável seria, depois, ser manipulado para produzir "peças" das quais outros precisam (os rins, por exemplo); nem morrer depois desta breve e atormentada vida "produzida" precisamente para esta finalidade.
Sem dúvida, a utilização de células estaminais em terapia de células pode abrir toda uma linha de investigações benéficas que mostram hoje perspectivas muito interessantes; mas, para esta finalidade, o uso de células estaminais embrionárias (e, consequentemente, da clonagem terapêutica para as obter) demonstrou-se um caminho cientificamente pouco certo e difícil, e eticamente inaceitável. Ao contrário, a investigação sobre células estaminais adultas, satisfatória tanto nos seus aspectos éticos como nos técnicos, realizada de maneira digna, responsável e submetida aos critérios éticos, representa um caminho de esperança e de futuro, que não origina objecções éticas especiais (25).
3. Objecções técnicas, éticas e antropológicas à clonagem humana
Certos argumentos, que permitem aprofundar os motivos racionais da imoralidade da clonagem, mostram a continuidade ética entre a clonagem reprodutiva e a terapêutica. São argumentos ligados por uma profunda complementaridade, porque desenvolvem diversos aspectos éticos racionais que derivam da dignidade ontológica do embrião humano, e estão entre si em profunda relação com o estatuto antropológico e ético do embrião, que deve ser o ponto de partida inicial em toda esta problemática (26).
a. Incancelável probabilidade do carácter humano dos embriões obtidos
A obtenção de embriões humanos por meio da clonagem, quer para fins de reprodução quer de terapia e pesquisa implicaria a destruição de uma boa parte deles. Por exemplo, para a ovelha "Dolly", foi preciso "desperdiçar" centenas de embriões. E não só; o elevado risco de transmissão de doenças ou de deformações que esta técnica implicaria acrescenta razões novas para a sua proibição ética. Isto é especialmente válido no que se refere à clonagem "terapêutica". Desta forma torna-se evidente que a obtenção de células estaminais embrionárias passa através da produção (e sucessiva destruição) de um embrião, que muitos dos mesmos investigadores já não insistem em definir como "acúmulo de células", conceito elaborado para evitar a questão antropológica e, por conseguinte, ética do embrião. De facto, reconhecem que estas técnicas passam pela produção daquilo que eles denominam "early embryo", ou seja, embrião no estado inicial. Mas, então, surge uma pergunta: o que seria este embrião? Qual seria o seu estatuto ético e jurídico? Uma pergunta que leva a fazer outra que é inerente: qual é o estatuto de cada embrião humano?
A afirmação que o ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa a partir do momento da concepção, é central para uma justa orientação do problema da identidade e do estatuto do embrião humano. "A formulação nestes termos do dever ético fundamental em relação ao nascituro tornou-se muito necessária com vista aos problemas causados pelo desenvolvimento biotecnológico" (27).
A expressão "pré-embrião" foi usada para evitar, precisamente, a pergunta antropológica e ética fundamental sobre o estatuto do embrião (28). "O problema é, diz-se, que o embrião na sua fase inicial não goza de individualidade nem identidade, sendo formado por células totipotentes, nele ainda não se podem identificar um ou mais indivíduos humanos. O embrião (referimo-nos ao chamado "pré-embrião") é um ser. Com esta expressão ser entendemos uma realidade existente e viva que é susceptível de um desenvolvimento biológico próprio, diferenciado e autónomo (tem em si mesmo a força evolutiva) relativamente ao meio adequado e necessário para a sua subsistência e para "alimentar" este desenvolvimento próprio e autónomo. Além disso e sobretudo desenvolve-se por si mesmo, sem desempenhar "papel" algum externo ao próprio ser. Uma célula não é um ser individual porque "serve" como parte de um conjunto, o seu desenvolvimento faz parte do desenvolvimento de conjunto no qual está inserido. Ao contrário, o embrião não faz parte de nenhum conjunto, não é fundamental para a vida (biológica) da mãe; se "produzirmos" embriões de laboratório, eles, como tais, estão privados de "utilidade" a não ser que os implantemos num útero feminino para prosseguir o ciclo biológico que leva ao nascimento, ou que, com a mesma finalidade, não se desenvolva toda a fase gestatória no laboratório é verdade que com o tempo, não sendo implantados, são "excluídos", "destruídos", ou simplesmente são "mortos", palavras que, neste caso, são sinónimos" (29).
Se a pergunta sobre o embrião é, de facto, antropológica e eticamente exacta, é necessário dizer, também, que do ponto de vista ético existe uma questão prévia, muito relevante para a ética: o que não é? Por outras palavras: podemos ter a certeza de que o embrião gerado desta forma não é humano? Do ponto de vista moral, a única admissão da probabilidade (não cancelável, de modo algum, por parte dos actuais estudiosos) de estarmos na presença de um ser humano, como produto das técnicas de clonagem, tem um peso decisório. Quem está na presença de uma sombra, e duvida se é um animal ou um homem, é evidente que se dispara um tiro, se torna culpável de homicídio. Antes de disparar, há o estreito dever moral de se certificar que não seja um homem. Este princípio ético mostra-se transgredido nestas práticas em que a obtenção de células estaminais embrionárias humanas passariam através da criação e da destruição de um embrião nas primeiras fases de vida.
b. A dignidade do embrião humano
O resultado de uma fecundação é um novo indivíduo biológico unicelular totipotente que é denominado zigoto. É preciso reconhecer que o resultado da clonagem efectuada é em tudo análogo ao que provém da fecundação. Não existe fundamento algum para afirmar que, apesar das anomalias genéticas, a clonagem não produza um zigoto. Por conseguinte, é preciso estabelecer uma estreita analogia entre fecundação e clonagem. Depois, é preciso dizer que não há algum motivo racional para negar aos embriões obtidos para a clonagem os mesmos direitos dos que são obtidos por fecundação artificial e por conseguinte, a fortiori, de todos os outros embriões gerados no processo natural de fecundação humana. Qual seria, por exemplo, a diferença essencial entre uns e outros, tendo em consideração a totipotencialidade das células que os compõem, que ninguém põe em questão?
O desenvolvimento do embrião é o estado inicial do indivíduo humano. Angelo Serra toma em consideração as três principais propriedades que caracterizam o processo epigenético humano, o qual, segundo C.H. Waddington, pode ser definido como "a contínua emergência de uma forma de estádios anteriores", isto é: 1) a coordenação. "O desenvolvimento embrionário, da fusão dos gametas ou "singamis", até ao aparecimento do disco embrionário, depois de 14 dias e até mais, é um processo que manifesta uma coordenada sequência e a interacção de uma actividade molecular e celular, sob o controlo do novo genoma". Esta propriedade exige uma rigorosa unidade do sujeito que se está a desenvolver. Não é um grupo de células, mas um indivíduo real (30). 2) A continuidade. A singamia começa um novo ciclo de vida. "Tudo indica que há uma ininterrupta e progressiva diferenciação de um indivíduo humano bem definido, segundo um plano único e rigorosamente definido que começa no estádio de zigoto". Esta propriedade da continuidade implica e estabelece a unicidade ou singularidade do novo sujeito humano. 3) A gradualidade. A forma final deve ser alcançada gradualmente. Trata-se de um desenvolvimento permanentemente orientado do estádio de zigoto para a forma final, devido a uma intrínseca epigenética. Cada embrião humano mantém a própria identidade, individualidade e unidade. O embrião vivo, começando da fusão dos gametas, não é um mero acúmulo de células disponíveis, mas um indivíduo humano real em desenvolvimento. Sim, é filho daquele momento! O embrião é um indivíduo humano. A introdução abusiva da palavra pré-embrião foi uma estratégia para tranquilizar a consciência e permitir a experimentação até ao fim do estádio de implantação, isto é, até cerca de 14 dias depois da fecundação na espécie humana. Concluiu-se assim comodamente que o embrião não existiria durante as primeiras duas semanas a seguir à fertilização (31).
c. O embrião, também no estádio unicelular, tem dignidade humana
A recusa de reconhecer a condição humana ao embrião obtido mediante clonagem (quer para fins reprodutivos, quer para obter dele células estaminais embrionárias) nos primeiros dias do seu desenvolvimento insere-se, por conseguinte, no debate acerca do estatuto antropológico e ético do embrião humano. Recusa-se a estes embriões o carácter de indivíduo e diz-se que eles não têm "vida humana". É uma contradição. Se se trata de embriões, e não só de "oócitos que se dividirão" (e em vias de extinção), trata-se de indivíduos humanos, dotados de vida humana e não de "grupos" de células. O pesquisador I. Wilmut (famoso pela obtenção da primeira ovelha clonada, "Dolly", hoje opositor decidido da clonagem humana reprodutiva, mas claramente favorável à terapêutica) reconhece que "quando um embrião é criado, se põe em auto-pilot no seu desenvolvimento inicial". Se o embrião fosse aquele "acúmulo de células" que dizem, não seria "pílula de si mesmo", não teria autonomia, nem teleologia própria e unitária, como ao contrário mostra ter.
O embrião, desde o momento da concepção, com a fecundação, apresenta-se como uma entidade dotada de autonomia, que procede imediatamente no seu próprio desenvolvimento de maneira gradual, contínua, harmoniosa, e nele há a integração e a cooperação constante teleológica de todas as suas células. Trata-se de um organismo que procede sem interrupção segundo o programa traçado no seu genoma. Torna-se assim, sem intervenção directa do exterior, sucessivamente zigoto, mórula, blastócito, embrião implantado, feto, menino, adolescente, adulto (32). Se isto se verifica na fecundação natural, por que não deveria acontecer o mesmo na clonagem?
Encontramos neste ponto uma contradição ao negar ao resultado de uma eventual clonagem aquilo que se reconhece no resultado da fecundação. Esta é uma distinção (embrião-clonado); embrião-fecundado) que remete para a falsa distinção entre o chamado "pré-embrião" e o embrião, distinção errada, como foi assinalado acima, que se tornou, na prática, o maior obstáculo ao reconhecimento de um estatuto do embrião humano (33). Se o embrião humano clonado não fosse humano, então "o que" seria? A que espécie animal pertenceria? Teria um genoma humano, mas não seria humano? Não é necessário insistir aqui sobre as contradições implicadas em tais negações. Um embrião humano, assim reconhecido pela razão como indivíduo humano, dotado de um organismo próprio, tem uma dignidade própria e por isso exige respeito. Não é uma "dignidade" devida a qualquer acréscimo externo, mas fundada no seu ser, em si e por si mesmo.
Se se recusa a dignidade humana ao embrião, com o pretexto de que o embrião não tem consciência actual, deveríamos negar também a dignidade à pessoa que dorme ou que se encontra em coma. Se alguém recusa a dignidade ao embrião, então deveria negar também a dignidade à criança (34).
O ser humano, qualquer que seja a sua condição económica, física, intelectual, não pode ser usado como um meio, um objecto. A maldade da ofensa a este princípio fundamental agrava-se quando este ser humano não tem meios para se defender contra o agressor injusto. Se alguém aceita tratar um ser humano como meio e não como fim, então deve aceitar, ele próprio, poder ser tratado do mesmo modo. E não deverá protestar. Mesmo se a aplicação terapêutica das células estaminais obtidas através da criação-destruição de embriões humanos tivesse sido claramente mostrada (o que não se verificou), a moral, a sensatez e o bom juízo opor-se-iam: não se pode fazer o mal por uma boa causa. O fim não justifica os meios. A história da humanidade é rica de ensinamentos a este propósito. Como dizia o filósofo J. Santayana, "Quem não conhece a história está condenado a repeti-la".
d. Personalidade do embrião
Por conseguinte, a avaliação moral da clonagem humana depende fundamentalmente do seu objecto, da sua finalidade objectiva, e não deriva, primariamente, da intenção subjectiva devido à qual estas técnicas são usadas. A única incerteza sobre a natureza humana do produto da aplicação destas técnicas ao homem impõe o dever de não a realizar. Mas, além deste estreito dever moral de não o criar, existem muitos e graves motivos para considerar não só que os embriões gerados desta forma deveriam ser respeitados de acordo com a dignidade humana, e que também são pessoas humanas primeiro manipuladas e, depois, destruídas.
e. Desumanidade da produção e consequente destruição do embrião na clonagem "terapêutica"
Os defensores da chamada "clonagem terapêutica" insistem sempre acerca do facto de que a sua intenção não é proceder rumo a uma clonagem reprodutiva, mas destruir o embrião humano criado desta forma nos primeiros dias de desenvolvimento. Segundo os seus raciocínios (amplamente retomados pela imprensa, pelos mass media e pelos debates políticos), este modo de agir seria "ético", enquanto que a clonagem reprodutiva não o seria.
A clonagem humana que poderia levar ao nascimento de um ser humano deve ser julgada como um método imoral de procriação artificial (35). Na "clonagem terapêutica", este processo é intencionalmente interrompido: cria-se, de modo voluntário, um embrião humano para depois o destruir, com o fim de extrair células estaminais embrionárias. Eticamente este procedimento é pior ainda. Aceitá-lo, seria como aceitar uma igualdade radical entre a espécie humana e as outras (P. Singer). Rejeitar a possibilidade de matar uma vida humana para curar outras vidas humanas, não provém de uma posição especificamente religiosa, mas da força de argumentos e de razões de bom senso e da força de uma antropologia coerente e de uma bioética personalista.
f. A clonagem humana opõe-se à dignidade da vida e da procriação
A aplicação das técnicas de clonagem ao homem, com a intenção de criar embriões, quer para os implantar depois num útero (reprodutiva), quer para extrair células estaminais e depois as destruir (terapêutica e de investigação), envolve não só a dignidade da vida humana e os seus direitos incanceláveis, mas opõe-se também ao valor moral da união intrínseca entre vida, sexualidade e procriação. A orientação da sexualidade humana para a procriação não é um acréscimo "biológico", mas corresponde à natureza humana e manifesta-se na inclinação natural do homem à procriação. Estas técnicas, ao contrário, separam os aspectos procriativos dos unitivos, próprios da dignidade e da procriação.
As técnicas de clonagem são, em si mesmas e sempre, "reprodutivas". As experiências recentes mostram também como a clonagem humana, apesar de grandes dificuldades, não é, em princípio, impossível. A pergunta ética refere-se, por conseguinte, não só à dignidade da vida humana e à instrumentalização e eventual destruição do embrião, mas também à do modo específico de procriação humana que é, precisamente sexual, e que tem o seu valor moral, que não é respeitado por estas técnicas.
g. A clonagem de embriões humanos opõe-se à dignidade da família
Existe também um importante factor ético que se deve considerar, e que muitas vezes é descuidado. O ser humano é um ser social. A dinâmica sexual e procriativa no homem desenvolve-se naturalmente num contexto em que sexualidade e procriação se inserem harmoniosamente na realidade do amor conjugal que dá pleno sentido à sexualidade humana aberta à vida. Amor e responsabilidade encontram-se no matrimónio na abertura à vida e continuam na tarefa educativa, mediante a qual os pais exercem de modo integral o cuidado dos seus filhos.
A clonagem humana interrompe toda esta dinâmica. Na clonagem, a vida mostra-se como um elemento completamente externo à família. O embrião "mostra-se", por assim dizer, à margem não só da sexualidade, mas também de uma genealogia. Cada ser humano tem o direito de nascer do amor integral físico e espiritual de um pai e de uma mãe, de receber os seus cuidados, de ser acolhido como um dom pelos pais, de ser educado. Quando surge no horizonte a possibilidade inquietante de fazer com que a vida do ser humano concebido possa ser manipulada, submetida a experimentações, para depois ser destruída, quando são obtidas do embrião as células ou os conhecimentos biológicos procurados, então é o próprio conceito de filiação e de paternidade-maternidade a ser posto em crise, e a própria ideia de famíla é destruída.
5. Conclusão
Os recentes progressos das ciências mostram que a clonagem humana, apesar das grandes dificuldades técnicas e das profundas objecções éticas e antropológicas, é mais do que uma hipótese e está a tornar-se uma possibilidade. As diversas tentativas de impedir, mediante a lei e os acordos internacionais, que esta possibilidade se realize, e de obter um reconhecimento da sua condição de crime contra a pessoa humana, não se baseiam num receio não determinado do progresso e da técnica, mas em importantes e sensatas motivações éticas e numa concepção antropológica da pessoa humana, da sexualidade e da família bem determinada. Compete às autoridades públicas, aos Parlamentos e às organizações internacionais assumir uma posição coerente. Trata-se verdadeiramente de um problema-chave para o futuro da humanidade e para a salvaguarda da dignidade da investigação científica e dos esforços em favor da vida, da saúde e do bem-estar dos seres humanos, que justifica a adopção de medidas oportunas por parte da comunidade dos povos que constituem a grande família humana.
Notas
1) Compete ao Pontifício Conselho para a Família a promoção do cuidado pastoral das famílias e do apostolado específico no âmbito familiar, em aplicação dos ensinamentos e das orientações expressas pelos organismos competentes do Magistério eclesiástico, de maneira que as famílias cristãs possam realizar a missão educativa, evangelizadora e apostólica, à qual são chamadas. Em particular: ... b) o cuidado e difusão da doutrina da Igreja sobre os problemas familiares de forma que ela possa ser integralmente conhecida e correctamente proposta ao povo cristão quer na catequese quer no conhecimento científico; ... c) promove e coordena os esforços pastorais em ordem ao problema da procriação responsável segundo os ensinamentos da Igreja; ... e) encoraja, apoia e coordena os esforços em defesa da vida humana em todo o espaço da sua existência desde a concepção; f) promove, também através da obra de instituições científicas especializadas (teológicas e pastorais), os estudos finalizados a integrar, sobre os temas da família, as ciências teológicas e as ciências humanas para que toda a doutrina da Igreja seja cada vez melhor compreendida pelos homens de boa vontade". João Paulo II, Motu proprio Familia a Deo instituta, 9/5/1981, 3V.
2) CDF, Inst. Donum vitae, 22/2/1987, II B 4 c.
3) A palavra "clone", usada pelo genético e fisiólogo britânico J.B.S. Haldane (Biological Possibilities for the Humain Species of the Next Ten-Thousand Years, 1963), procedia orignariamente da botânica: "uma colónia de organismos que de maneira assexuada ou seja, sem intervenção sexual procede de um só genitor" (Herbert John Webber, 1903). Tem a sua origem tanto no latim "Colonia, coloniae" (e do verbo "colo", is, colui, cultum), como no grego klon klwu° e faz alusão à reprodução assexual natural de certos vegetais, como o roseiral, que se podem reproduzir através da plantação de um rebento. Cf. H. J. Webber, New horticultural and agricultural terms, Science 28 (1903), págs. 501-503; A.A. Diamandopoulus, P. C. Goudas, Cloning's not a new idea: the Greeks had a word for it centuries ago, Nature 6815/408, 21/12/2000, pág. 905.
4) J. Loeb, em 1894, tinha estimulado artificialmente a partenogénese de ouriços marinhos, mas foi o Prémio Nobel alemão H. Apemann quem, em 1994, conseguiu transferir núcleos em células de salamandra. Ele foi o primeiro, em 1938, a propor a transferência de núcleos de células de mamífero. Em 1981, esta técnica, consideravelmente aperfeiçoada, foi aplicada com bom êxito ao rato, e em 1986, às ovelhas e às vacas. I. Wilmut, do Roslin Institute (Reino Unido), conseguiu obter, em 1997, o nascimento da primeira ovelha clonada do mundo, a famosa "Dolly".
5) Ponfifícia Academia para a Vida, Reflexões sobre a clonagem, 11/7/1997. Cf. D. Tettamanzi (edições M. Doldi), termo "Clonagem", Dicionário de bioética, Pimme Casale Monferrato 2002; L. Ciccone, Bioética, História, princípios, questões, Ares, Milão 2003, págs. 143-176; I. Wilmut et col., Viable offspring derived from fetal and adult mammalian cells, em Nature n. 385/1997, págs. 810-813.
6) A partenogénese natural consiste na formação de um novo indivíduo a partir de um gameta feminino (oócito) sem participação de um gameta masculino (espermatozóide). Este fenómeno natural verifica-se em fêmeas que produzem espontaneamente embriões sem a prévia fecundação (em certas espécies de invertebrados, não em mamíferos) ou em indivíduos biológicos originados do cruzamento entre diferentes espécies (hibridação). Dado que não se dá combinação, a progénie é geneticamente homogénea: são cópias idênticas do único progenitor, ou seja, clones naturais.
7) A fissão embrionária consiste na divisão do embrião de poucas células,
de tal forma que de cada uma das células separadas resultantes se desenvolve
um ser adulto completo com as mesmas características genéticas.
8) A totipotencialidade celular consiste na capacidade que uma célula tem de gerar todas as células e os tecidos de um organismo completo, incluido (se existem as circunstâncias adequadas) o desenvolvimento de um indivíduo. No ser humano, cada uma das células embrionárias permanece totipotente durante poucos dias depois da fecundação. A geminação homozigota (o fenómeno dos gêmeos idênticos), é a consequência de uma fissão embrionária acidental das células totipotentes que compõem o embrião nas primeiras etapas do desenvolvimento.
9) A multipotencialidade celular é a capacidade que uma célula tem de gerar células e tecidos diferenciados de uma parte do organismo, mas não de todos e de cada um deles, nem de um indivíduo completo. No homem, em particular, refere-se à capacidade de gerar linhas de células e tecidos diferenciados que derivam de cada um dos extratos embrionários, ou seja, ectoderma, mesoderma e endoderma.
10) Uma célula estaminal (stem cell em inglês, cellule souche em francês, célula madre ou célula troncal, em espanhol) é uma célula indiferenciada que pode originar cópias exactas de si mesma de maneira definitiva. As células estaminais são capazes de produzir células especializadas dos tecidos do organismo, como o músculo cardíaco, o tecido cerebral, epático, o miolo ósseo, etc. Os cientistas hoje estão em condições de manter em vida células estaminais in vitro durante um tempo indefinido, e começa-se a fazer com que se produzam células diferenciadas à medida que delas se tem necessidade.
11) House of Representatives, lei HR 534, Fevereiro de 2003.
12) Trata-se de um organismo do sistema das Nações Unidas, criado no âmbito da UNESCO.
13) Resolução 53/192.
14) Ad Hoc Committee on an International Convention against the Reproductive Cloning of Human Beings.
15) "Não é possível controlar a eficiência da clonagem humana para fins de reprodução a não ser que se proíba também a terapêutica... uma proibição parcial poderia originar o surgimento da clandestinidade da clonagem para fins reprodutivos, com a instauração de um comércio ilegal de oócitos... o princípio jurídico de precaução deve garantir a protecção da parte mais frágil, neste caso, o embrião humano... a experiência acumulada na clonagem de animais tornou conhecida uma eficiência muito limitada das técnicas utilizadas e dos grandes riscos de malformações e deformações do embrião... Opôr-se à clonagem humana não equivale a uma rejeição do progresso da ciência, nem da investigação genética. A clonagem não é a única estratégia de investigação para o progresso da medicina regeneradora... um desafio genético a favor da investigação sobre as células estaminais adultas ajudaria a desfrutar as suas possibilidades e a mostrar a sua eficiência". Memorandum contra a clonagem terapêutica. Delegação da Espanha às Nações Unidas, Fevereiro de 2002.
16) Resolução do Parlamento Europeu de 12 de Março de 1997 ( 2 e 11).
17) Ian Wilmut, "pai" da ovelha Dolly, e Rudolf Jaenisch deram testemunho, neste sentido, no Senado dos Estados Unidos.
18) A bibliografia científica é, neste ponto, muito abundante. Como exemplo vejam-se os trabalhos de D. Humpherys, K. Eggan, H. Akutsu, K. Ochedlinger, W. M. Rideout, D. Biniszkiewicz, R. Yanagimachi, R. Jaenisch, Epigenic Instability em ES Cells and Cloned Mice, em Science, 6/7/2000, 293 (5527), págs. 95-97; D. Bourchis, D. Le Bourhis, D. Patin, A. Niveleau, P. Comizzoli, J.-P. Renard, E. Viegas-Péquignot, Delayed and incomplete reprogramming of chromosome methylation patterns in bovine cloned embryos, em Current Biology, 2/10/2001, vol. 11, n. 19; Y-K. Kang, D-B. Koo, J-S. Parhk, Y-H. Choi, A-S. Chung, K-K. Lewe, Y-M Han, Aberrant methylation of donor genome in cloned bovine embryos, em Nature Genetics, June 2001, vol. 28, págs. 173-177.
19) Esta observação sobre a clonagem reprodutiva é válida também como objecção à clonagem terapêutica. A aplicação no âmbito clínico de células estaminais obtidas de embriões clonados seria, na verdade, muito incerta nesta circunstância. As células destes embriões apresentam graves defeitos genéticos e, por conseguinte, a proposta de tranferir células estaminais embrionárias anómalas para uma pessoa humana não é racional.
20) O livro de Alvin Toeffler's, Future Schock (1970) traça uma visão futurista fantástica do homem que faz cópias de si mesmo ("man will be able to make biological carbon copies of himsef"), e reflecte literariamente sobre as perspectivas geradas por estas técnicas, assim como sobre a preocupação pelas suas consequências. Cf. Lee M. Silver, Wat are clones? They're not what you think they are, Nature, 5 de Julho de 2001, vo. 412, n. 6842, pág. 21.
21) Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung (O princípio responsabilidade), Ed. Suhrkamp, Francoforte em Mogúncia, 1984.
22) Cf. Hans Jonas, Clonemos um homem: da eugenética à engenharia genética, em Técnica, medicina e ética, Ed. Einaudi, Turim 1997, pág. 136.
23) Natalía López, Las células adultas llevan clara ventaja a las embrionarias, em Palabra 12/2002.
24) Elisabeth Montfort, La Bioétique, entre confusion et responsabilitè, em AAVV (sous la direction d'Élisabeth Montfort, Bioétique. Entre confusion et responsabilitè. Actes du Colloque de Paris. Assemblée nationale, 1 octobre 2001. Revue trimestrielle Liberté politique, Ed. François-Xavier de Guibert, Paris 2003, pág. 27-28.
25) Pontifícia Academia para a Vida, Declaração sobre a produção e o uso científico e terapêutico das células estaminais, 25/8/2000.
26) D. Tettamanzi, Nuova bioetica cristiana, Piemme, Casale Monferrato 2000, pág. 235-268, L. Ciccone, Bioetica. Storia, principi, questioni, Ares, Milão 2003, págs. 61-80; R.C. Barra, Status giuridico dell'embrione umano, em Lexicon. Famiglia, vita e questioni etiche, EDB, Bolonha 2003; E. Sgreccia, Manuale de Bioetica (vol. 1), Vita e pensiero, Milão 1998, págs. 361-422; C. Caffarra, Il problema morale dell'aborto, em AAVV (ed. de A. Fiori-E. Sgreccia) L'aborto, Vita e pensiero, Milão 1975, págs. 313-320.
27) I. Carrasco de Paula, Il rispetto dovuto all'embrione humano: prospettiva storico-dottrinale, em Pontifíca Academia para a Vida, Identità e statuto dell'embrione humano, Libreria Ed. Vaticana, Vaticano 1998, pág. 31.
28) A expressão "pré-embrião" é enganadora e foi manipulada a favor do aborto. Cf. A. Serra, Lo stato biologico dell'embrione umano. Quando comincia l'essere umano"?, em Pontifícia Academia para a Vida, Commento interdisciplinare all'Evangelium vitae, Libreria Ed. Vaticana, Vaticano 1997.
29) R.C. Barra, Status giuridico dell'embrione umano, em Lexicon. Famiglia, vita e questioni etiche, EDB, Bolonha 2003.
30) Compreende-se por singamia aquela parte da fecundação que consiste no processo começado pela penetração do espermatozoo no oócita, orientada para a reunião do conteúdo cromossómico dos dois pronúcleos formados (anfimixis).
31) Cf. Angelo Serra, L'uomo-embrione. Il grande misconosciuto, Ed. Cantagalli, Siena 2003, págs. 41-52. Cf. também as vozes "Dignidade do embrião humano" e "Selecção embrionária", em Pontifício Conselho para a Família (por) Lexicon. Palavras ambíguas e debatidas sobre família, vida e questões éticas, EDB, Bolonha 2003.
32) As expressões técnicas de zigoto, morula e blastócito correspondem a qualificações fisiológicas.
33) A ideia enganadora de "pré-embrião" surgiu, como se sabe muito bem, na Comissão Warnock, e tornou-se hoje geralmente aceite e está profundamente radicada em muitos ambientes. A Serra, Pari dignità all'embrione umano em Pontifício Conselho para a Família, I figli: famiglia e società nel nuovo Millennio. Atti del Congresso Internazionale Teologico-Pastorale. Città del Vaticano, 11-13 ottobre 2000, Libreria ed. Vaticana, Vaticano 2001, págs. 313-320; R. Colombo, La famiglia e gli studi sul genoma umano; ob. cit. pág. 321-325. A. Serra, R. Colombo, Identità e statuto dell'embrione umano: il contributo della biologia, em Pontifícia Academia para a Vida, Identità e statuto dell'embrione umano, Libreria ed. Vaticana, Vaticano 1988, pág. 157. D. Tettamanzi, Nuova bioetica cristiana, Piemme, Casale Monferrato 2000, págs. 235-268, L. Ciccone, Bioetica. Storia principi, questioni, Ares, Milão 2003, págs. 61-80; R. C. Barra, Status giuridico dell'embrione umano, em Lexicon. Famiglia, vita e questioni etiche, EDB, Bolonha 2003; Ph. Caspar, La problematique de l'animation de l'embryon. Survoi historique et enjey dogmatique, em Nouvelle Revue Théologique n. 123/1991.
34) Racionalidade, consciência e autonomia constituiriam, segundo autores como H. T. Engelhardt ou P. Singer, a pessoa. H. T. Engelhardt, The foundations of bioethics, Nova Iorque, Oxford University Press, 1986; Manuale di bioetica, Mondadori, Milão 1991; Practical Ethics, Cambridge University Press, Cambridge, 1993; Cf. L. Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Turim, Giappicchelli, 1996.
35) CDF, Instr. Donum vitae, I.6.