15. Como pastores, peregrinamos com o povo latino-americano através de nossa história, com muitos elementos de base comuns, mas também com os matizes e as diferenças de cada nação. Partindo do Evangelho que nos apresenta Jesus Cristo como 0 que passou fazendo o bem e amando a todos sem distinção , e iluminados pela fé, situamo-nos na realidade do homem latino-americano, que é expressa em suas esperanças, em seus triunfos e suas frustrações. Impele-nos esta fé a discernir as interpelações de Deus nos sinais dos tempos, a dar testemunho, a anunciar e a promover os valores evangélicos da comunhão e da participação; e a denunciar tudo o que, em nossa sociedade, vai contra a filiação que tem sua origem em Deus Pai, e contra a fraternidade dos homens em Cristo Jesus.
16. Como pastores, discernimos êxitos e malogros nestes últimos anos. Apresentamos esta realidade, não com o intento de provocar desânimo, mas antes querendo estimular a todos os que tenham possibilidade de melhorá-la. A Igreja da AL tem procurado ajudar o homem "a passar de situações menos humanas a mais humanas" (PP 20). Tem-se esforçado por convocar as pessoas para uma contínua conversão individual e social. Pede que todos os cristãos colaborem na transformação das estruturas injustas, comuniquem valores cristãos à cultura global em que estão inseridos, e, conscientes dos resultados já obtidos, se animem a continuar trabalhando pelo seu aperfeiçoamento.
17. Enumeramos, com alegria, alguns dados que nos enchem de esperança:
- O homem latino-americano tem uma tendência inata a acolher as pessoas; a partilhar o que tem, a viver a caridade fraterna e o desprendimento (sobretudo no meio dos pobres); a compadecer-se do sofrimento alheio. Valoriza muito os vínculos especiais da amizade oriundos do apadrinhamento, e preza não menos a família e as relações que estabelece.
18. - Tomou consciência mais clara da própria dignidade, do seu desejo de participação política e social, embora estes direitos estejam espezinhados em muitos lugares. Proliferam as organizações comunitárias, como movimentos cooperativistas e outros, sobretudo nos meios populares.
19. - Existe um interesse crescente pelos valores autóctones e pelo respeito à originalidade das culturas indígenas e de suas comunidades. Além disto há um profundo amor à terra.
20. - Nosso povo é jovem, e, onde tem tido oportunidades de habilitar-se e organizar-se, tem revelado surpreendente capacidade de se promover e de consolidar suas justas reivindicações.
21. - O significativo progresso econômico que nosso continente alcançou demonstra que seria possível erradicar a extrema pobreza e melhorar a qualidade de vida do nosso povo; ora, se existe a possibilidade, existe, conseqüentemente, a obrigação.
22. Nota-se um certo crescimento da classe média, embora em determinados lugares ela tenha sofrido alguma deterioração.
23. São claros os progressos no setor da educação.
24. Entretanto nos múltiplos encontros pastorais com nosso povo, percebemos também - como o Santo Padre João Paulo II em seus contatos com camponeses, operários e estudantes - o seu profundo clamor cheio de angústias, esperanças e aspirações ao qual queremos fazer eco: deste modo seremos a grande "voz de quem não pode falar ou de quem é silenciado" (Alocução Oaxaca 5 AAS LXXI p. 208).
25. Assim nos situamos no dinamismo de Medellin , cuja visão da realidade assumimos e que se tornou fonte de inspiração para tantos de nossos documentos pastorais na última década.
26. O que Paulo VI apresentou na Evangelii Nuntiandi reflete lucidamente a realidade de nossos países: "E bem sabido em que termos falaram, durante o último Sínodo, numerosos bispos de todos os continentes e sobretudo os bispos do Terceiro Mundo, com um acento pastoral em que vibravam as vozes de milhões de filhos da Igreja que constituem tais povos. Povos - já o sabemos - empenhados com todas as suas energias no esforço e na luta para superar tudo o que os condena a ficarem à margem da vida: fome, enfermidades crônicas, analfabetismo, empobrecimento, injustiça nas relações internacionais, especialmente nas de comércio, situações de neocolonialismo econômico e cultural por vezes tão cruel quanto o político etc. A Igreja, repetiram os bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, entre os quais há muitos filhos seus; o dever de ajudar a nascer esta libertação, de dar testemunho da mesma, de fazer que seja total. Nada disto é estranha à evangelização" (EN 30).
2.2. Compartilhar as angústias
27. Preocupam-nos as angústias de todos os membros do povo, qualquer que seja a sua condição social: sua solidão, seus problemas familiares, a falta de sentido que não poucos vêem na vida. E mais especialmente queremos, hoje, compartilhar as angústias que nascem de sua pobreza.
28. Vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres . O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das grandes massas . Isto é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida.
Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social, cuja gravidade é tanto maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de mudar: "que se derrubem as barreiras da exploração... contra as quais se estraçalham seus maiores esforços de promoção" (João Paulo II, Alocução Oaxaca 5 - AAS, LXXI p. 209).
29. Comprovamos, pois, como o mais devastador e humilhante flagelo a situação de pobreza desumana em que vivem milhões de latino-americanos e que se exprime, por exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada, em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego, desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e sem proteção.
30. Ao analisar mais a fundo tal situação, descobrimos que esta pobreza não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas, embora haja também outras causas da miséria. A situação interna de nossos países encontra, em muitos casos, sua origem e apoio em mecanismos que, por estarem impregnados não de autêntico humanismo, mas de materialismo, produzem, em nível internacional, ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres . Esta realidade exige, portanto, conversão pessoal e transformações profundas das estruturas que correspondam às legítimas aspirações do povo a uma verdadeira justiça social; tais mudanças ou não se deram ou têm sido demasiado lentas na experiência da AL.
31. Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela):
32. - feições de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, impedidas que estão de realizar-se, por causa de deficiências mentais e corporais irreparáveis, que as acompanharão por toda a vida; crianças abandonadas e muitas vezes exploradas de nossas cidades, resultado da pobreza e da desorganização moral da família;
33. - feições de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e frustrados, sobretudo nas zonas rurais e urbanas marginalizadas, por falta de oportunidades de capacitação e de ocupação;
34. - feições de indígenas e, com freqüência, também de afro-americanos, que, vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considerados como os mais pobres dentre os pobres;
35. - feições de camponeses, que, como grupo social, vivem relegados em quase todo o nosso continente, sem terra, em situação de dependência interna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os exploram;
36. - feições de operários, com freqüência mal remunerados, que têm dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos;
37. - feições de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências das crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econômicos;
38. - feições de marginalizados e amontoados das nossas cidades, sofrendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação da riqueza de outros setores sociais;
39. - feições de anciãos cada dia mais numerosos, freqüentemente postos à margem da sociedade do progresso, que prescinde das pessoas que não produzem.
40. Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano, imagem e semelhança do Criador e a seus direitos inalienáveis de filhos de Deus.
41. Países como os nossos, onde com freqüência não se respeitam os direitos humanos fundamentais - vida, saúde, educação, moradia, trabalho...- , acham-se em situação de permanente violação da dignidade da pessoa humana.
42. Somam-se a isto as angústias produzidas pelo abuso do poder, típicas dos regimes de força. Angústias causadas pela repressão sistemática ou seletiva, acompanhada de delação, de violação da privacidade, de pressões exageradas, de torturas, de exílios. Angústias em numerosas famílias pelo desaparecimento de seus entes queridos, dos quais não conseguem ter a menor notícia. Insegurança total por detenções sem ordem judicial. Angústias ante uma justiça - submissa ou manietada. A Igreja, como afirmam os Sumos Pontífices, "por força de um autêntico compromisso evangélico" , deve fazer ouvir a sua voz, denunciando e condenando estas situações, sobretudo quando os governos ou responsáveis se confessam cristãos.
43. Angústias provocadas pela violência da guerrilha, do terrorismo e dos seqüestro, efetuados por extremistas de sinais diversos, que comprometem igualmente o convívio social.
44. Em muitos de nossos países, a falta de respeito à dignidade do homem se exprime também na ausência de participação social nos vários níveis. Referimo-nos de modo particular à sindicalização. A legislação trabalhista, em muitos lugares, aplica-se arbitrariamente ou não é levada em consideração. Sobretudo nos países onde há regimes de força, vê-se com maus olhos a organização de operários, camponeses e grupos populares e adotam-se medidas repressivas para impedi-la. Este tipo de controle e limitação não acontece com os sindicatos patronais, que podem agir com todo o seu poder para assegurar os próprios interesses.
45. Em alguns casos a politização exasperada das cúpulas sindicais distorce a finalidade de sua organização.
46. Nos últimos anos, comprova-se, ainda, a deterioração do quadro político, com grave prejuízo da participação dos cidadãos na condução do seu próprio destino. Também aumenta, com freqüência, a injustiça que se pode chamar de institucionalizada . Além disso, grupos políticos extremistas, ao empregarem meios violentos, provocam novas repressões contra os setores populares.
47. A economia de mercado livre, na. sua expressão mais rígida, que ainda vigora em nosso continente e é legitimada por ideologias liberais, tem alargado a distância entre ricos e pobres, pelo fato de antepor o capital ao trabalho, o econômico ao social. Grupos minoritários nacionais, associados às vezes a interesses de fora, têm-se aproveitado das oportunidades que lhes oferecem estas formas envelhecidas de mercado livre, para se desenvolverem em proveito próprio e às custas dos interesses dos setores populares majoritários.
48. As ideologias marxistas se têm difundido no mundo operário, estudantil e docente e em outros meios com a promessa de maior justiça social. Na prática, suas estratégias têm sacrificado muitos dos valores cristãos e, portanto, humanos ou caído em irrealismos utópicos, inspirando-se em políticas que, ao utilizar a força como instrumento fundamental, incrementam a espiral da violência.
49. As ideologias da Segurança Nacional têm contribuído para fortalecer, em muitas ocasiões, o caráter totalitário ou autoritário dos regimes de força e alimentado o abuso do poder e da violação dos direitos humanos. Há casos em que pretendem proteger suas atitudes com uma profissão de fé cristã, que é, contudo, subjetiva.
50. Os tempos de crise econômica que nossos países estão vivendo (não obstante a tendência para a modernização) com forte crescimento da economia, mas enfrentando menor ou maior dureza, aumentam as angústias de nossos povos. Entretanto uma tecnocracia gélida aplica modelos de desenvolvimento que exigem dos setores mais pobres um custo social realmente desumano, tanto mais injusta quanto não é compartilhado por todos.
51. A AL é constituída de várias raças e grupos culturais com processos históricos diferentes. Não é uma realidade uniforme e contínua. Existem, contudo, elementos que constituem um patrimônio cultural comum de tradições históricas e de fé cristã.
52. Infelizmente, o desenvolvimento de algumas culturas é muito precário. Na prática se desconhecem, se marginalizam e até se destroem valores pertencentes à antiga e rica tradição do nosso povo. Por outro lado, iniciou-se uma revalorização das culturas autóctones.
53. Em razão de influências externas dominantes ou por imitação alienante de formas de vida ou valores importados, as culturas tradicionais de nossos países viram-se deformadas e agredidas, minando-se assim nossa identidade e nossos valores específicos.
54. Compartilhamos, pois, com o nosso povo, as angústias causadas pela inversão de valores que está na raiz de muitos dos males acima mencionados, a saber:
55. - o materialismo individualista, valor supremo de muitos homens de hoje, que atenta contra a comunhão e a participação, impedindo a solidariedade; e o materialismo coletivista que subordina a pessoa ao Estado;
56. - o consumismo, com sua ambição descontrolada de sempre se "ter mais", que vai afagando o homem contemporâneo num imanentismo que o fecha aos valores evangélicos do desprendimento e da austeridade, paralisando-o para a comunhão solidária e a participação fraterna;
57. - a deterioração dos valores básicos da família que desintegra a comunhão familiar, eliminando a participação co-responsável de todos os seus membros e tornando-os presa fácil do divórcio e do abandono do lar. Em alguns grupos culturais, a mulher encontra-se em condições de inferioridade;
58. - a degeneração da honradez pública e privada; as frustrações, o hedonismo que incita para os vícios: o jogo, as drogas, o alcoolismo, a devassidão.
59. Educação e Comunicação Social como transmissores de cultura.
60. - A educação tem progredido muito nos últimos anos; tem aumentado a escolaridade, embora a deserção seja ainda considerável; tem diminuído o analfabetismo, ainda que não suficientemente nas regiões de população autóctone e camponesa.
61. Apesar deste progresso, há deformações e despersonalizações devidas à manipulação de grupos minoritários de poder, preocupados com assegurar seus próprios interesses e impor suas ideologias.
62. - Os traços culturais que apresentamos sofrem a pesada influência dos meios de comunicação social. Através deles, os grupos de poder político, ideológico e econômico penetram de modo sutil no ambiente e no modo de viver do nosso povo. Há manipulação das informações por partes dos diversos poderes e grupos. Isto se concretiza de modo particular no caso da publicidade. Esta introduz falsas expectativas, cria necessidades fictícias e muitas vezes contradiz os valores fundamentais de nossa cultura latino-americana e do Evangelho. O uso indevido da liberdade nestes meios leva a invadir o campo da vida íntima das pessoas, geralmente indefesas. Estes meios penetram todas as áreas da vida humana (lar, centros de trabalho, lugares de lazer, praças) 24 horas por dia. Por outro lado, levam a uma mudança cultural que gera uma nova linguagem .
2.4. Raízes profundas destes fatos
63. Queremos indicar algumas das suas raízes mais profundas, para oferecer nossa contribuição e cooperar nas mudanças necessárias, a partir de uma perspectiva pastoral que perceba mais diretamente as exigências do povo:
64. a) A vigência de sistemas econômicos que não consideram o homem como centro da sociedade, nem realizam as profundas mudanças que se fazem necessárias, para a construção de uma sociedade justa.
65. b) A falta de integração entre as nossas nações que, entre outras conseqüências graves, tem esta igualmente: apresentamo-nos como entidades pequenas, sem peso de negociação, no conceito internacional.
66. c) O fato da nossa dependência econômica, tecnológica, política e cultural: a presença de grupos multinacionais que muitas vezes velam por seus próprios interesses à custa do bem do país que os acolhe; a perda do valor de nossas matérias-primas comparado com o preço dos produtos elaborados que adquirimos.
67. d) A corrida armamentista, o grande crime de nosso tempo, que é produto e causa de tensões entre países irmãos. Ela faz com que se destinem muitos recursos à compra de armas em vez de se empregarem na solução de problemas vitais.
68. e) A falta de reformas estruturais na agricultura, adaptadas a cada realidade e que enfrentem com decisão os graves problemas sociais e econômicos dos camponeses: o acesso à terra e aos meios que tornem possíveis a melhoria da produtividade e da comercialização.
69. f) A crise de valores morais: a corrupção pública e privada, a ganância do lucro desmedido, a venalidade, a falta de esforço, a carência de sentido social, de justiça vivida e solidariedade, a fuga de capitais e de cérebros... tudo isso enfraquece e até impede a comunhão com Deus e a fraternidade.
70. g) Finalmente, nós, como pastores, sem pretender determinar o caráter técnico destas raízes, vemos que no mais profundo delas há um mistério de pecado: a pessoa humana, convocada a dominar o mundo, impregna os mecanismos da sociedade de valores materialistas.
2.5. Localização no interior de um continente com graves problemas demográficos
71. Observamos que em quase todos os nossos países se tem experimentado um acelerado crescimento demográfico. É jovem a maioria de nossa população. As migrações internas e externas levam a um senso de desenraizamento. As cidades crescem desordenadamente, com perigo de se transformarem em megalópoles incontroláveis: é cada dia mais difícil oferecerem-se os serviços básicos de alimentação, hospitais, escolas, etc... exarcebando-se assim a marginalização social, cultural e econômica. O aumento dos que buscam trabalho foi mais rápido do que a capacidade de dar emprego do próprio sistema econômico atual. Há instituições internacionais que propiciam e governos que aplicam ou apoiam políticas de antinatalidade, contrárias à moral familiar.