O Papa Francisco presidiu esta tarde na Basílica de São Pedro a celebração da Paixão do Senhor. A homilia, como todo ano, foi dada pelo pregador da Casa Pontifícia,  Pe. Rainiero Cantalamessa, quem refletiu sobre a necessária reconciliação de cada homem com o Senhor.

Na cerimônia, o Pontífice prostrou-se no chão diante da Cruz como sinal de adoração. Revestido com uma casula de cor vermelha que representa o sangue do martírio, o Santo Padre realizou o gesto da prostração frente ao Altar da Confissão da basílica e orou durante vários minutos. Mais tarde, foi ajudado a levantar-se por dois cerimoniais pontifícios, para dar início à celebração que inclui a liturgia da palavra e a adoração da Cruz.

Este é o único dia do ano que não se oficia missa nem se realiza a consagração, que para os católicos é a conversão do pão e o vinho no corpo e sangue de Jesus Cristo. 

A seguir, a íntegra da homilia do pregador da Casa Pontifícia:

Frei Raniero Cantalamessa na Celebração da Paixão do Senhor

Basílica de São Pedro

Sexta-feira, 25 de março de 2016

“DEIXAI-VOS RECONCILIAR COM DEUS”

“Deus nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação […] Suplicamo-vos em nome de Cristo: deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não tinha conhecido o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nos tornássemos justiça de Deus. Posto que somos seus colaboradores, exortamo-vos a não negligenciar a graça de Deus. Ele, com efeito, diz: ‘No tempo favorável te ouvi e no dia da salvação te socorri’. Eis agora o tempo favorável; eis agora o dia da salvação!” (2 Cor 5, 18; 6,2).

Estas são palavras de São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios. O apelo do apóstolo a reconciliar-se com Deus não se refere à reconciliação histórica entre Deus e a humanidade (esta, ele acaba de dizer, já se realizou através de Cristo na cruz); tampouco se refere à reconciliação sacramental que acontece no batismo e no sacramento da reconciliação; refere-se a uma reconciliação existencial e pessoal, a ser vivida no presente. O apelo é dirigido aos cristãos de Corinto que são batizados e vivem há tempo na Igreja; é dirigido, por isso, também a nós, aqui e agora. “O tempo favorável, o dia da salvação” é, para nós, o ano da misericórdia que estamos vivendo.

Mas o que significa, em sentido existencial e psicológico, reconciliar-se com Deus? Uma das razões, talvez a principal, da alienação do homem moderno da religião e da fé é a imagem distorcida que ele tem de Deus. Qual é, de fato, a imagem “predefinida” de Deus no inconsciente humano coletivo? Para descobrir, basta fazer-se esta pergunta: “Que associação de ideias, que sentimentos e reações surgem em mim, antes de qualquer reflexão, quando, na oração do pai-nosso, chego às palavras ‘seja feita a vossa vontade’”?

Quem as diz é como se inclinasse interiormente a cabeça em resignação, preparando-se para o pior. Inconscientemente, vincula-se a vontade de Deus com tudo o que é desagradável, doloroso, com aquilo que, de uma forma ou de outra, pode ser visto como mutilação da liberdade e do desenvolvimento individual. É um pouco como se Deus fosse o inimigo de toda festa, alegria, prazer. Um Deus ranzinza e inquisidor.

Deus é visto como o Ser Supremo, o Onipotente, o Senhor do tempo e da história, isto é, como uma entidade que, de fora, se impõe ao indivíduo; nenhum particular da vida humana lhe escapa. A transgressão da Sua lei introduz inexoravelmente uma desordem que exige uma reparação adequada, que o homem sabe ser incapaz de lhe dar. Daí o medo e, às vezes, um surdo rancor contra Deus. É um resquício da ideia pagã de Deus, nunca erradicada de todo, e talvez inerradicável, do coração humano. É nela que se baseia a tragédia grega; Deus é aquele que intervém, através da punição divina, para restaurar a ordem perturbada pelo mal.

É claro que nunca foi ignorada, no cristianismo, a misericórdia de Deus! Mas a ela foi confiada apenas a incumbência de moderar os rigores irrenunciáveis ??da justiça. A misericórdia era o expoente, não a base; a exceção, não a regra. O ano da misericórdia é a oportunidade de ouro para trazer de volta à luz a verdadeira imagem do Deus bíblico, que não somente tem misericórdia, mas é misericórdia.

Esta afirmação ousada se baseia no fato de que “Deus é amor” (1 Jo 4, 8.16). Só na Trindade Deus é amor sem ser misericórdia. Que o Pai ame o Filho não é graça ou concessão; é necessidade: Ele precisa amar para existir como Pai. Que o Filho ame o Pai não é misericórdia ou graça; é necessidade, mesmo queliberíssima: Ele precisa ser amado e amar para ser Filho. O mesmo deve ser dito do Espírito Santo, que é o amor feito pessoa.

É quando cria o mundo e, nele, as criaturas livres que o amor de Deus deixa de ser natureza e se torna graça. Este amor é uma livre concessão: poderia não existir; é hesed, graça e misericórdia. O pecado do homem não muda a natureza deste amor, mas provoca nele um salto de qualidade: da misericórdia como dom se passa à misericórdia como perdão. Do amor de simples doação se passa para um amor de sofrimento, porque Deus sofre diante da rejeição ao seu amor. “Eu nutri e criei filhos, diz o Senhor, mas eles se rebelaram contra mim” (Is 1, 2). Perguntemos aos muitos pais e mães que tiveram essa experiência se isto não é sofrimento, e dos mais amargos da vida.

* * *

E o que é da justiça de Deus? É esquecida ou desvalorizada? A esta pergunta quem respondeu de uma vez por todas foi São Paulo. Ele começa a sua exposição, na Carta aos Romanos, com uma notícia: “Manifestou-se a justiça de Deus” (Rm 3, 21). Nós nos perguntamos: qual justiça? Aquela que dá “unicuique suum”, a cada um o que é seu, distribuindo prêmios e castigos de acordo com o mérito? Haverá, é verdade, um tempo em que se manifestará também essa justiça de Deus, que consiste em dar a cada um segundo os seus méritos. Deus, de fato, como escreveu pouco antes o Apóstolo,

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“retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando nas obras de bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade; ira e indignação contra aqueles que, por rebelião, desobedecem à verdade e obedecem à injustiça” (Rom 2, 6-8).

Mas não é desta justiça que fala o Apóstolo quando escreve que “se manifestou a justiça de Deus”. O primeiro é um evento futuro; este, um evento em ato, que acontece “agora”. Se assim não fosse, a afirmação de Paulo seria absurda, negada pelos fatos. Do ponto de vista da justiça retributiva, nada mudou no mundo com a vinda de Cristo. Continuam, disseBossuet, a ver-se muitas vezes no trono os culpados e no patíbulo os inocentes[1]; mas para que não se creia que há no mundo alguma justiça e ordem fixa, ainda que invertida, eis que às vezes se vê o contrário, ou seja, o inocente no trono e o culpado no cadafalso. Não é isto, portanto, que consiste a novidade trazida por Cristo. Ouçamos o que diz o Apóstolo:

“Todos pecaram e foram privados da glória de Deus, mas são justificados gratuitamente pela sua graça, em virtude da redenção realizada por Cristo Jesus. Deus o estabeleceu como instrumento de expiação por meio da fé, no seu sangue, a fim de manifestar a sua justiça, depois da tolerância usada para com os pecados passados no tempo da divina paciência. Ele manifesta a sua justiça no tempo presente, para ser justo e justificar quem tem fé em Jesus” (Rm 3, 23-26).

Deus faz justiça a si mesmo ao ter misericórdia! Eis a grande revelação. O Apóstolo diz que Deus é “justo e justificador”: justo consigo mesmo quando justifica o homem; Ele, de fato, é amor e misericórdia; por isso faz justiça a si mesmo – demonstrando-se verdadeiramente como o que é – quando tem misericórdia.

Mas nada disto se entende quando não se compreende o que quer dizer, exatamente, a expressão “justiça de Deus”. Existe o perigo de se ouvir falar de justiça de Deus e, ignorando o seu significado, ficar-se com medo em vez de encorajado. Santo Agostinho já tinha deixado claro: “A ‘justiça de Deus’ é aquela pela qual, por sua graça, nós nos tornamos justos, assim como a salvação do Senhor (Sl 3,9) é aquela pela qual Deus nos salva”[2]. Em outras palavras, a justiça de Deus é o ato pelo qual Deus faz justos, agradáveis a Si, aqueles que creem no Seu Filho. Não é um fazer-se justiça, mas um fazer justos.

Lutero teve o mérito de trazer de volta à luz esta verdade depois que, durante séculos, pelo menos na pregação cristã, o seu sentido tinha se perdido, e é isto, principalmente, que a Cristandade deve à Reforma, cujo quinto centenário ocorre no próximo ano. “Quando descobri isto, eu me senti renascer, e pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do paraíso”[3], escreveu mais tarde o reformador. Mas não foram nem Agostinho nem Lutero os que assim explicaram o conceito de “justiça de Deus”; foi a Escritura que o fez antes deles:

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“Quando se manifestaram a bondade de Deus e o seu amor pelos homens, Ele nos salvou, não por causa de obras de justiça por nós praticadas, mas por causa da sua misericórdia” (Tt 3, 4-5). “Deus, rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, fez-nos, de mortos que estávamos pelo pecado, reviver com Cristo. Pela graça fostes salvos” (cf. Ef 2, 4).

Dizer que “se manifestou a justiça de Deus”, portanto, é como dizer que se manifestou a bondade de Deus, o seu amor, a sua misericórdia. A justiça de Deus não só não contradiz a sua misericórdia como consiste precisamente nela!

* * *

O que aconteceu na cruz de tão importante a ponto de justificar esta mudança radical nos destinos da humanidade? Em seu livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI escreveu:

“A injustiça, o mal como realidade, não pode ser simplesmente ignorada, deixada acontecer. Deve ser eliminada, derrotada. Esta é a verdadeira misericórdia. E que o faça Deus mesmo, já que os homens não são capazes – esta é a bondade incondicional de Deus”[4].

Deus não se contentou em perdoar os pecados do homem; Ele fez infinitamente mais: Ele os tomou sobre si mesmo. O Filho de Deus, diz São Paulo, “se fez pecado por nós”. Palavra terrível! Já na Idade Média havia quem achasse difícil acreditar que Deus exigira a morte do Filho para reconciliar consigo o mundo. São Bernardo lhe respondia: “Não foi a morte do Filho que aprouve a Deus, mas a sua vontade de morrer espontaneamente por nós”: “non mors placuit sed voluntas sponte morientis”[5]. Não foi a morte, portanto, mas o amor que nos salvou! O amor de Deus alcançou o homem no ponto mais distante a que ele tinha se expulsado ao fugir de Deus, ou seja, a morte.

A morte de Cristo devia ser para todos a prova suprema da misericórdia de Deus para com os pecadores. É por isso que ela não tem sequer a majestade de certa solidão, mas é enquadrada, antes, entre dois ladrões. Jesus quis ser amigo dos pecadores até o fim: por isso morreu como eles e com eles. O ódio e a ferocidade dos ataques terroristas desta semana  em Bruxelas nos ajudam a entender a força divina contida nas últimas palavras de Cristo: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Não importa quão grande o ódio dos homens, o amor de Deus tem sido, e será, cada vez maior. Para nós, é dirigida, nas atuais circunstancias, a exortação do Apóstolo Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem”(Rm 12, 21).

* * *

É hora de perceber que o oposto da misericórdia não é a justiça, mas a vingança. Jesus não opôs a misericórdia à justiça, mas à lei de talião: “olho por olho, dente por dente”. Perdoando os pecados, Deus não renuncia à justiça, mas à vingança; Ele não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18, 23). Jesus Cristo, na cruz, não pediu ao Pai que vingasse a sua causa; pediu-lhe que perdoasse os seus algozes.

Temos que desmitificar a vingança! Ela se tornou um mito penetrante, que contamina tudo e todos, começando pelas crianças. Grande parte das histórias levadas às tela e aos jogos eletrônicos são histórias de vingança. Metade, se não mais, do sofrimento que há no mundo (quando não se trata de males naturais) vem do desejo de vingança, seja nas relações entre as pessoas, seja nas relações entre países e povos.

Foi dito que “o mundo será salvo pela beleza”[6]; mas a beleza também pode levar à ruína. Há somente uma coisa que realmente pode salvar o mundo: a misericórdia! A misericórdia de Deus pelos homens e dos homens entre si. Ela pode salvar, em particular, a coisa mais preciosa e mais frágil que há no mundo neste momento: o matrimônio e a família.

Acontece no matrimônio algo semelhante ao que aconteceu na relação entre Deus e a humanidade, que a Bíblia descreve, precisamente, com a imagem de um casamento. No início de tudo, dizíamos, está o amor, não a misericórdia. A misericórdia só intervém depois do pecado do homem. Também no casamento, no início não há misericórdia, mas amor. As pessoas não se casam por misericórdia, mas por amor. Depois de anos, ou meses, de vida em comum, revelam-se os limites pessoais, os problemas de saúde, do dinheiro, dos filhos; intervém a rotina, que apaga toda alegria.

O que pode salvar um casamento de escorregar para um poço sem fundo, senão o divórcio, é a misericórdia, entendida no sentido completo da Bíblia, ou seja, não apenas como perdão recíproco, mas como um “revestir-se de sentimentos de ternura, de bondade, de humildade, de mansidão e de magnanimidade” (Col 3, 12). A misericórdia faz com que ao eros se junte o ágape; ao amor de busca, o de doação e de compaixão. Deus “se apieda” do homem (Sl 102, 13): não deveriam marido e mulher se apiedar um do outro? E não deveríamos, nós que vivemos em comunidade, apiedar-nos uns dos outros em vez de nos julgarmos?

Oremos. Pai Celestial, pelos méritos do teu Filho, que, na cruz, “se fez pecado” por nós, afasta do coração das pessoas, das famílias e dos povos o desejo de vingança e faz-nos enamorar da misericórdia. Faz que a intenção do Santo Padre ao proclamar este ano santo da misericórdia encontre resposta concreta em nosso coração e leve todos a experimentarem a alegria da reconciliação contigo. Assim seja!

[1] Jacques-Bénigne Bossuet, “Sermon sur la Providence” (1662), in Oeuvresde Bossuet, eds. B. Velat and Y. Champailler (Paris: Pléiade, 1961), pág. 1062.

 

[2] S. Agostinho, O Espírito e a letra, 32,56 (PL 44, 237).

 

[3] Martinho Lutero, Prefácio às obras em latim, ed . Weimar, 54, pág.186.

 

[4] Cf. J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Libreria Editrice Vaticana 2011, pág. 151.

 

[5] S. Bernardo de Claraval, Contra os erros de Abelardo, 8, 21-22 (PL 182, 1070).

 

[6] F. Dostoiévski, O Idiota, parte III, cap.5.