Vaticano, 8 de jan de 2018 às 11:36
O Papa Francisco dirigiu seu tradicional discurso por ocasião do começo do ano ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé, no qual pediu um maior esforço para acabar com as guerras que estão destruindo vários países no mundo e para promover os direito humanos.
Hoje, os direitos fundamentais, não só lesados pela “guerra ou a violência. No nosso tempo, há formas mais sutis: penso antes de mais nada nas crianças inocentes, descartadas ainda antes de nascer; às vezes não queridas, apenas porque doentes ou malformadas ou pelo egoísmo dos adultos”.
A seguir, o texto completo do discurso do Papa Francisco:
Excelências, Senhoras e Senhores!
Segundo um belo costume, tenho hoje ocasião de vos encontrar, guardando ainda viva no coração a alegria que dimana do Natal, para vos formular, pessoalmente, bons votos para o ano há pouco iniciado e testemunhar a minha proximidade e estima aos povos que representais. Agradeço ao Decano do Corpo Diplomático, Senhor Armindo Fernandes do Espírito Santo Vieira, Embaixador de Angola, as deferentes palavras que há pouco me dirigiu em nome de todo o Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé. Dou as boas-vindas aos Embaixadores que vieram, de fora de Roma, para esta ocasião e cujo número aumentou depois do estabelecimento das relações diplomáticas com a República da União do Myanmar, em maio passado. Saúdo igualmente os Embaixadores residentes em Roma, em número sempre maior, em cujo elenco se conta agora também o Embaixador da República da África do Sul. Dedico um pensamento particular ao falecido Embaixador da Colômbia, Guillermo León Escobar-Herrán, falecido poucos dias antes do Natal. Agradeço as relações frutuosas e constantes que mantendes com a Secretaria de Estado e restantes Dicastérios da Cúria Romana, testemunhando assim o interesse da comunidade internacional pela missão da Santa Sé e pelo serviço da Igreja Católica nos respetivos países. Nesta perspetiva, coloca-se também a atividade pactuante da Santa Sé, que, no ano passado, registou a assinatura, em fevereiro, do Acordo-Quadro com a República do Congo e, no mês de agosto, do Acordo entre a Secretaria de Estado e o Governo da Federação Russa relativo às viagens sem visto dos titulares de passaportes diplomáticos.
Na relação com as autoridades civis, a Santa Sé nada mais pretende senão favorecer o bem-estar espiritual e material da pessoa humana e a promoção do bem comum. As viagens apostólicas que realizei, no ano passado, ao Egito, a Portugal, à Colômbia, ao Myanmar e ao Bangladesh foram expressão desta solicitude. A Portugal, desloquei-me como peregrino, no centenário das aparições de Nossa Senhora em Fátima, para celebrar a canonização dos pastorinhos Jacinta e Francisco Marto. Pude constatar a fé, cheia de entusiasmo e alegria, que a Virgem Maria suscitou na multidão de peregrinos que então lá se reuniu. Também no Egito, Myanmar e Bangladesh, pude encontrar as comunidades cristãs locais que, apesar de numericamente exíguas, são apreciadas pelo contributo que oferecem para o desenvolvimento e a convivência civil dos respetivos países. Não faltaram os encontros com os representantes doutras religiões, testemunhando como as peculiaridades de cada uma não são obstáculo ao diálogo, mas a seiva que o nutre no desejo comum de conhecer a verdade e praticar a justiça. No caso da Colômbia, quis abençoar os esforços e a coragem daquele amado povo, inflamado por um vivo anélito de paz após mais de meio século de conflito interno.
Queridos Embaixadores!
No decurso deste ano, tem lugar o centenário do fim da I Guerra Mundial: um conflito que deu nova forma ao rosto da Europa e do mundo inteiro, com a aparição de novos Estados que tomaram o lugar dos antigos Impérios. Das cinzas da Grande Guerra, podemos retirar duas advertências, que a humanidade, infelizmente, não soube compreender de imediato, encontrando-se vinte anos depois a combater um novo conflito, ainda mais devastador que o precedente. A primeira advertência: vencer nunca significa humilhar o adversário derrotado. A paz não se constrói como afirmação do poder do vencedor sobre o vencido. Não é a lei do medo que dissuade de futuras agressões, mas a força serena duma razoabilidade que incita ao diálogo e à mútua compreensão para sanar as diferenças. Daqui deriva a segunda advertência: a paz consolida-se quando as nações se podem confrontar num clima de igualdade. Intuiu-o há um século – completa-se precisamente hoje – o então presidente dos Estados Unidos da América, Thomas Woodrow Wilson, quando propôs a instituição duma associação geral das nações visando promover – para todos os Estados, grandes e pequenos, indistintamente – mútuas garantias de independência e integridade territorial. Deste modo se lançaram, idealmente, as bases daquela diplomacia multilateral que, no decurso dos anos, foi adquirindo um papel e uma influência crescentes no seio da comunidade internacional.
As próprias relações entre as nações, tal como as relações humanas, devem ser reguladas «segundo as normas da verdade, da justiça, da solidariedade operante e da liberdade». Isto supõe que «se tenha como princípio inviolável a igualdade de todos os povos, pela sua dignidade de natureza», bem como o reconhecimento dos direitos mútuos, juntamente com o cumprimento dos respetivos deveres. Premissa fundamental desta atitude é a afirmação da dignidade de toda a pessoa humana, cujo desprezo e desrespeito levam a atos de barbárie que ofendem a consciência da humanidade. Por outro lado, «o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo», como afirma a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A este documento importante – setenta anos após a sua adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que teve lugar em 10 de dezembro de 1948 –, desejo dedicar o nosso encontro de hoje. Na verdade, para a Santa Sé, falar de direitos humanos significa, antes de mais nada, repropor a centralidade da dignidade da pessoa, enquanto querida e criada por Deus à sua imagem e semelhança. O próprio Senhor Jesus, ao curar o leproso, restituir a vista ao cego, sentar-se à mesa com o publicano, poupar a vida da adúltera e convidar a tratar do viandante ferido, fez-nos compreender como cada ser humano, independentemente da sua condição física, espiritual ou social, seja merecedor de respeito e consideração. Segundo a perspectiva cristã, há uma significativa relação entre a mensagem evangélica e o reconhecimento dos direitos humanos, lidos no espírito dos compiladores da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O pressuposto de tais direitos deriva da natureza que acomuna objetivamente o género humano. E foram enunciados para remover os muros de separação que dividem a família humana e favorecer o que a doutrina social da Igreja designa como desenvolvimento humano integral, porque deve «promover todos os homens e o homem todo (...) até se chegar à humanidade inteira». Pelo contrário, uma visão redutiva da pessoa humana abre o caminho à difusão da injustiça, da desigualdade social e da corrupção.
Todavia deve notar-se que, ao longo dos anos – sobretudo depois das agitações sociais de 1968 –, se foi progressivamente modificando a interpretação de alguns direitos, a ponto de se incluir uma multiplicidade de «novos direitos», não raro contrapondo-se entre si. Isto nem sempre favoreceu a promoção de relações amigas entre as nações, porque se afirmaram noções controversas dos direitos humanos que contrastam com a cultura de muitos países, que, por isso mesmo, não se sentem respeitados nas suas próprias tradições socioculturais, antes veem-se transcurados nas necessidades reais que têm de enfrentar. Consequentemente pode haver o risco – de certa forma paradoxal – de que, em nome dos próprios direitos humanos, se venham a instaurar formas modernas de colonização ideológica dos mais fortes e dos mais ricos em detrimento dos mais pobres e dos mais fracos. Ao mesmo tempo, é bom ter presente que as tradições dos diversos povos não podem ser invocadas como pretexto para descurar o devido respeito dos direitos fundamentais enunciados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Setenta anos depois, faz pena assinalar como muitos direitos fundamentais são violados ainda hoje. E, primeiro dentre eles, o direito à vida, à liberdade e à inviolabilidade de cada pessoa humana. A lesá-los, não são apenas a guerra ou a violência. No nosso tempo, há formas mais sutis: penso antes de mais nada nas crianças inocentes, descartadas ainda antes de nascer; às vezes não queridas, apenas porque doentes ou malformadas ou pelo egoísmo dos adultos. Penso nos idosos, também eles muitas vezes descartados, sobretudo se estão doentes, porque considerados um peso. Penso nas mulheres, que muitas vezes sofrem violências e prepotências, mesmo no seio das suas famílias. Penso depois em todos aqueles que são vítimas do tráfico de pessoas, que viola a proibição de toda e qualquer forma de escravatura. Quantas pessoas, especialmente em fuga da pobreza e da guerra, acabam objeto de tal traficância perpetrada por sujeitos sem escrúpulos!
Defender o direito à vida e à integridade física significa também tutelar o direito à saúde da pessoa e dos seus familiares. Hoje, este direito assumiu implicações que excedem as intenções originárias da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual visava afirmar o direito de cada um a ter os cuidados médicos e os serviços sociais necessários. Nesta linha, espero que se trabalhe, nos fóruns internacionais competentes, por favorecer, antes de tudo, um fácil acesso para todos aos cuidados e tratamentos sanitários. É importante unir esforços para que se possam adotar políticas capazes de garantir, a preços acessíveis, o fornecimento de medicamentos essenciais para a sobrevivência das pessoas indigentes, sem transcurar a pesquisa e o desenvolvimento de tratamentos que, embora não relevantes economicamente para o mercado, são cruciais para salvar vidas humanas.
Defender o direito à vida implica também trabalhar ativamente pela paz, reconhecida universalmente como um dos valores mais altos que se deve procurar e defender. E todavia graves conflitos locais continuam a abrasar várias regiões da terra. Os esforços coletivos da comunidade internacional, a ação humanitária das organizações internacionais e as súplicas incessantes de paz que se elevam das terras ensanguentadas pelos combates parecem ser cada vez menos eficazes perante a lógica aberrante da guerra. Um tal panorama não pode fazer diminuir o nosso desejo e o nosso compromisso em prol da paz, cientes de que, sem ela, o desenvolvimento integral do homem se torna inatingível.
O desarmamento integral e o desenvolvimento integral estão intimamente relacionados entre si. Entretanto a busca da paz como condição prévia para o desenvolvimento supõe combater a injustiça e erradicar, de forma não violenta, as causas da discórdia que levam às guerras. A proliferação de armas agrava claramente as situações de conflito e implica enormes custos humanos e materiais, deteriorando assim o desenvolvimento e a busca duma paz duradoura. O resultado histórico alcançado no ano passado com a adoção do Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, no termo da Conferência das Nações Unidas cuja finalidade era precisamente negociar um instrumento juridicamente vinculativo para proibir as armas nucleares, mostra como permanece vivo o desejo de paz. A promoção da cultura da paz para um desenvolvimento integral exige esforços perseverantes em ordem ao desarmamento e à redução do recurso à força armada na gestão dos assuntos internacionais. Por isso desejo encorajar, sobre o tema, um debate sereno e o mais amplo possível, que evite polarizações da comunidade internacional numa questão tão delicada. Todo o esforço nesta direção, por mais modesto que seja, constitui um resultado importante para a humanidade.
Por sua vez, a Santa Sé assinou e ratificou, também em nome e por incumbência do Estado da Cidade do Vaticano, o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares, na perspectiva expressa por São João XXIII na encíclica Pacem in terris, segundo a qual «a justiça, a reta razão e o sentido da dignidade humana terminantemente exigem que se pare com essa corrida ao poderio militar; que o material de guerra, instalado em várias nações, se vá reduzindo duma parte e doutra, simultaneamente; que sejam banidas as armas atómicas». Na verdade, mesmo «se parece difícil que haja pessoas capazes de assumir a responsabilidade das mortes e incomensuráveis destruições que a guerra provocaria, não é impossível que um facto imprevisível e incontrolável possa inesperadamente atear esse incêndio [duma guerra nuclear]».
Por conseguinte, a Santa Sé reitera a firme «persuasão de que com negociações, e não com armas, devem ser dirimidas as eventuais controvérsias entre os povos». Aliás a incessante produção de armas cada vez mais sofisticadas e “aperfeiçoadas” e o prolongamento de numerosos surtos de conflito – daquela que várias vezes designei por «terceira guerra mundial aos pedaços» – não pode senão fazer-nos repetir vigorosamente estas palavras do meu santo Predecessor: «Não é mais possível pensar que, nesta nossa era atómica, a guerra seja um meio apto par ressarcir direitos violados. (...) Contudo, é lícito esperar que os homens, por meio de encontros e negociações, venham a conhecer melhor os laços comuns de natureza que os unem e assim possam compreender a beleza de uma das mais profundas exigências da natureza humana, a de que reine entre eles e as suas respetivas nações, não o temor, mas o amor, um amor que antes de tudo leve os homens a uma colaboração leal, multiforme, portadora de inúmeros bens».
Nesta perspectiva, é de suma importância que se sustente toda a tentativa de diálogo na península coreana, a fim de se encontrar novos caminhos para superar as contraposições atuais, aumentar a confiança mútua e garantir um futuro de paz ao povo coreano e ao mundo inteiro.
De igual modo, é importante que possam continuar, num clima propugnador de maior confiança entre as partes, as várias iniciativas de paz em curso a favor da Síria, para que se consiga finalmente encerrar o longo conflito que envolveu o país e provocou imensos sofrimentos. Os votos de todos nós são que, depois de tanta destruição, tenha chegado o tempo de reconstruir. Mas, ainda mais que a construção de edifícios, é necessário reconstruir os corações, voltar a tecer a tapeçaria da mútua confiança, premissa imprescindível para o florescimento de qualquer sociedade. Por isso, é preciso trabalhar para promover as condições jurídicas, políticas e de segurança, em ordem a uma retomada da vida social, onde cada cidadão, independentemente da sua pertença étnica e religiosa, possa participar no desenvolvimento do país. Neste sentido, é vital tutelar as minorias religiosas, entre as quais se contam os cristãos, que há séculos contribuem ativamente para a história da Síria.
É igualmente importante que possam regressar à pátria os numerosos refugiados que encontraram acolhimento e refúgio nas nações vizinhas, especialmente na Jordânia, Líbano e Turquia. O empenho e o esforço, realizados por tais países nesta circunstância difícil, merecem o apreço e o apoio de toda a comunidade internacional, que ao mesmo tempo é chamada a trabalhar em ordem a criar as condições para o repatriamento dos refugiados originários da Síria. É um compromisso que aquela deve assumir concretamente a começar pelo Líbano, para que este amado país continue a ser uma «mensagem» de respeito e convivência e um modelo a imitar por toda a região e pelo mundo inteiro.
A vontade de diálogo é necessária também no amado Iraque, para que as várias componentes étnicas e religiosas possam reencontrar o caminho da reconciliação, convivência pacífica e colaboração, bem como no Iémen e noutras partes da região, e ainda no Afeganistão.
Uma palavra particular, dirijo aos israelitas e palestinenses, na sequência das tensões das últimas semanas. A Santa Sé, ao exprimir o seu pesar por quantos perderam a vida nos recentes confrontos, renova o seu premente apelo a ponderar bem cada iniciativa para que se evite de exacerbar as contraposições e convida a um esforço comum por respeitar, em conformidade com as pertinentes Resoluções das Nações Unidas, o status quo de Jerusalém, cidade santa para cristãos, judeus e muçulmanos. Setenta anos de confrontos tornam extremamente urgente encontrar uma solução política que consinta a presença na região de dois Estados independentes dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas. Apesar das dificuldades, a vontade de dialogar e retomar as negociações permanece a via-mestra para se chegar finalmente a uma coexistência pacífica dos dois povos.
Também no seio de contextos nacionais, são essenciais a abertura e a disponibilidade a encontrar-se. Penso especialmente na querida Venezuela, que está atravessando uma crise política e humanitária cada vez mais dramática e sem precedentes. A Santa Sé, ao mesmo tempo que exorta a responder sem demora às necessidades primárias da população, almeja que se criem as condições para que as eleições, agendadas para o ano em curso, sejam capazes de dar solução aos conflitos existentes, e se possa olhar de novo com serenidade para o futuro.
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A comunidade internacional não esqueça também o sofrimento em muitas partes do continente africano, especialmente no Sudão do Sul, República Democrática do Congo, Somália, Nigéria e República Centro-Africana, onde o direito à vida está ameaçado pela exploração indiscriminada dos recursos, pelo terrorismo, pela proliferação de grupos armados e por prolongados conflitos. Não basta indignar-se perante tanta violência! É preciso que cada um, no seu próprio âmbito, trabalhe ativamente por remover as causas da miséria e construir pontes de fraternidade, premissa fundamental para um desenvolvimento humano autêntico.
Um esforço comum por reconstruir pontes é urgente também na Ucrânia. O ano, que findou, ceifou novas vítimas no conflito que atormenta o país, continuando a infligir grandes sofrimentos à população, particularmente às famílias que moram nas áreas afetadas pela guerra e que perderam os seus entes queridos, não raro idosos e crianças.
E, precisamente à família, quereria dedicar uma especial reflexão. Efetivamente, o direito de formar uma família está reconhecido na própria Declaração de 1948, apresentando-a como «elemento natural e fundamental da sociedade, [que] tem direito à proteção desta e do Estado». É sabido como a família, sobretudo no Ocidente, seja considerada, infelizmente, uma instituição superada. Em vez da estabilidade dum projeto definitivo, preferem-se hoje ligações fugazes. Ora não se mantém de pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis; mas é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera e simples, um caráter sacro e inviolável e uma função natural na ordem social. Por isso considero urgente que se adotem políticas efetivas em apoio da família, da qual aliás depende o futuro e o desenvolvimento dos Estados. Sem ela, de facto, não se podem construir sociedades capazes de enfrentar os desafios do futuro. E a falta de interesse pela família traz consigo outra consequência dramática – particularmente atual nalgumas regiões – que é a queda da natalidade. Vive-se um verdadeiro inverno demográfico! Isto é sinal de sociedades que sentem dificuldade em enfrentar os desafios do presente, tornando-se, por conseguinte, cada vez mais temerosas do futuro e acabando por se fechar em si mesmas.
Ao mesmo tempo, não se pode esquecer a situação de famílias dilaceradas por causa da pobreza, das guerras e das migrações. Aos nossos olhos, depara-se demasiadas vezes o drama de crianças cruzando sozinhas os confins que separam o sul do norte do mundo, frequentemente vítimas do tráfico de seres humanos.
Hoje fala-se muito de migrantes e migrações, por vezes só para suscitar temores ancestrais. Não devemos esquecer que sempre existiram as migrações. Na tradição judaico-cristã, a história da salvação é, essencialmente, uma história de migrações. Nem devemos esquecer que a liberdade de movimento, como a de deixar o país próprio e a ele regressar, pertence aos direitos humanos fundamentais. Por isso é necessário sair duma generalizada retórica sobre o assunto e partir da consideração essencial de que se encontram diante de nós, antes de mais nada, pessoas.
Isto mesmo pretendi reiterar, com a Mensagem «Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz», escrita para o Dia Mundial da Paz que se celebrou no passado dia 1 de janeiro. Embora reconhecendo que nem todos estão sempre animados pelas melhores intenções, não se pode esquecer que a maior parte dos migrantes preferiria permanecer na sua própria terra, mas é forçada a deixá-la «por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental. (...) Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma corrente de apoios e beneficência, uma atenção vigilante e abrangente, a gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes em grande número, bem como recursos que são sempre limitados. Praticando a virtude da prudência, os governantes saberão acolher, promover, proteger e integrar, estabelecendo medidas práticas, “nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, [para] lhes favorecer a integração” (Pacem in terris, 57). Os governantes têm uma responsabilidade precisa para com as próprias comunidades, devendo assegurar os seus justos direitos e desenvolvimento harmónico, para não serem como o construtor insensato que fez mal os cálculos e não conseguiu completar a torre que começara a construir (cf. Lc 14, 28-30)».
Desejo agradecer de novo às Autoridades dos Estados que se prodigalizaram, durante estes anos, para prestar assistência aos numerosos migrantes que chegaram às suas fronteiras. Penso, antes de mais nada, no empenho de não poucos países na Ásia, na África e nas Américas, que acolhem e assistem inúmeras pessoas. Conservo ainda vivo no coração o encontro que tive em Daca com alguns membros do povo rohingya e quero renovar os sentimentos de gratidão às Autoridades do Bangladesh pela assistência que lhes prestam no seu território.
Desejo ainda expressar particular gratidão à Itália, que, nestes anos, mostrou um coração aberto e generoso e soube oferecer também exemplos positivos de integração. A minha esperança é que as dificuldades, que o país atravessou nestes anos e cujas consequências permanecem, não levem a fechamentos e preclusões, mas antes a uma redescoberta daquelas raízes e tradições que nutriram a rica história da nação e constituem um tesouro inestimável para oferecer ao mundo inteiro. De igual modo, exprimo apreço pelos esforços desenvolvidos por outros Estados europeus, particularmente a Grécia e a Alemanha. Não devemos esquecer que numerosos refugiados e migrantes procuram alcançar a Europa, porque sabem que nela podem encontrar paz e segurança, fruto aliás dum longo caminho que nasceu dos ideais dos Pais fundadores do projeto europeu depois da II Guerra Mundial. A Europa deve sentir-se orgulhosa deste seu património, baseado sobre determinados princípios e numa visão do homem cujas bases assentam na sua história milenária, inspirada pela concepção cristã da pessoa humana. A chegada dos migrantes deve incitá-la a redescobrir o seu património cultural e religioso, de modo que, recuperando a consciência dos valores sobre os quais está edificada, possa ao mesmo tempo manter viva a sua tradição e continuar a ser um lugar hospitaleiro, promissor de paz e desenvolvimento.
No ano passado, os governos, as organizações internacionais e a sociedade civil interrogaram-se mutuamente sobre os princípios basilares, as prioridades e as modalidades mais apropriadas para dar resposta aos movimentos migratórios e às situações prolongadas que afetam os refugiados. As Nações Unidas, na sequência da Declaração de Nova Iorque sobre Refugiados e Migrantes de 2016, aviaram importantes processos de preparação tendo em vista a adoção de dois Pactos Mundiais (Global Compacts), respetivamente sobre os refugiados e para uma migração segura, ordenada e regular.
A Santa Sé espera que tais esforços, com as negociações que brevemente se abrirão, deem resultados dignos duma comunidade mundial sempre mais interdependente, fundada nos princípios de solidariedade e mútua ajuda. No atual contexto internacional, não faltam as possibilidades e os meios para garantir, a todo o homem e mulher que vive sobre a terra, condições de vida dignas da pessoa humana.
Na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, sugeri quatro «pedras miliárias» para a ação: acolher, proteger, promover e integrar. Gostaria de me deter de modo particular nesta última, a propósito da qual se confrontam diferentes posições, cada uma delas derivada das respetivas avaliações, experiências, preocupações e convicções. A integração é «um processo bidirecional», com direitos e deveres recíprocos. De facto, quem acolhe é chamado a promover o desenvolvimento humano integral, enquanto se pede, a quem é acolhido, a indispensável conformação às normas do país que o hospeda, bem como o respeito pelos princípios identificadores do mesmo. Todo o processo de integração deve manter sempre, no centro das normas respeitantes aos vários aspetos da vida política e social, a tutela e a promoção das pessoas, especialmente daquelas que se encontram em situações de vulnerabilidade.
A Santa Sé não pretende interferir nas decisões que competem aos Estados: a eles cabe – à luz das respetivas situações políticas, sociais e económicas, bem como das próprias capacidades e possibilidades de receção e integração – a responsabilidade primeira do acolhimento. Mas ela considera que deve desempenhar um papel de «recordação» dos princípios de humanidade e fraternidade, que fundamentam toda a sociedade coesa e harmoniosa. Nesta perspectiva, é importante não esquecer a interação com as comunidades religiosas, tanto institucionais como associativas, que podem desempenhar um papel valioso de reforço na assistência e proteção, de mediação social e cultural, de pacificação e de integração.
Entre os direitos humanos que gostaria de lembrar hoje, está também o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, que inclui a liberdade de mudar de religião. É sabido como, infelizmente, o direito à liberdade religiosa seja muitas vezes menosprezado não sendo raro que a religião se torne quer ocasião para justificar ideologicamente novas formas de extremismo quer pretexto para a marginalização social, senão mesmo perseguição, dos crentes. A construção de sociedades inclusivas requer como condição uma compreensão integral da pessoa humana, que pode sentir-se verdadeiramente acolhida quando é reconhecida e aceite em todas as dimensões que constituem a sua identidade, incluindo a dimensão religiosa.
Por fim, desejo recordar a importância do direito ao trabalho. Não há paz nem desenvolvimento, se o homem está privado da possibilidade de contribuir pessoalmente, através da sua atividade, para a edificação do bem comum. É doloroso, porém, constatar como o trabalho constitua, em muitas partes do mundo, um bem escassamente disponível. Poucas são as oportunidades, especialmente para os jovens, de encontrar trabalho. Muitas vezes é fácil perdê-lo não só em consequência da alternância dos ciclos económicos, mas também pelo progressivo recurso a tecnologia e maquinaria cada vez mais perfeitas e precisas capazes de substituir o homem. Se, por um lado, se constata uma distribuição desigual das oportunidades de trabalho, por outro verifica-se a tendência a pretender, de quem trabalha, ritmos sempre mais oprimentes. As exigências de lucro, ditadas pela globalização, levaram a uma progressiva redução dos tempos e dos dias de repouso, pelo que se perdeu uma dimensão fundamental da vida – a do descanso – que serve para regenerar, física e espiritualmente, a pessoa. O próprio Deus descansou no sétimo dia: abençoou-o e santificou-o, «visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação» (Gn 2, 3). Na alternância de fadiga e repouso, o homem participa na «santificação do tempo» realizada por Deus e enobrece o seu trabalho, subtraindo-o às dinâmicas repetitivas duma cotidianidade árida que não conhece pausa.
Motivo de particular preocupação são ainda os dados publicados recentemente pela Organização Mundial do Trabalho sobre o aumento do número de crianças empregadas em atividades laborais e das vítimas das novas formas de escravidão. O flagelo do trabalho infantil continua a afetar seriamente o desenvolvimento psicofísico das crianças, privando-as das alegrias da infância, ceifando vítimas inocentes. Não se pode pensar em projetar um futuro melhor, nem esperar construir sociedades mais inclusivas, se se continua a manter modelos económicos orientados meramente para o lucro e a exploração dos mais fracos, como as crianças. Eliminar as causas estruturais de tal flagelo deveria ser uma prioridade de Governos e organizações internacionais, chamados a intensificar os esforços para adotar estratégias integradas e políticas coordenadas, tendentes a acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas.
Excelências, Senhoras e Senhores!
Ao lembrar alguns dos direitos contidos na Declaração Universal de 1948, não pretendo transcurar um aspeto estritamente conexo com a mesma: cada indivíduo tem também deveres relativamente à comunidade, visando «satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática». O justo apelo aos direitos de todo o ser humano deve ter em conta que cada um é parte dum corpo maior. Também as nossas sociedades, como cada corpo humano, gozam de boa saúde se cada membro cumprir a própria tarefa, ciente de que a mesma está ao serviço do bem comum.
Entre os deveres particularmente imperiosos, conta-se hoje o de cuidar da nossa terra. Sabemos que a natureza pode ela mesma ser cruenta, mesmo quando isso não é responsabilidade do homem. Vimo-lo no ano passado com os terremotos que atingiram várias partes da terra, particularmente nos últimos meses no México e no Irão ceifando numerosas vítimas, bem como a violência dos furacões que afetaram vários países do Caribe até chegar às costas dos Estados Unidos da América e, mais recentemente, investiram as Filipinas. Todavia não devemos esquecer que há também uma particular responsabilidade do homem na sua interação com a natureza. As alterações climáticas, com a subida global das temperaturas e os efeitos devastadores que isso comporta, são também consequência da ação do homem. Por conseguinte, é preciso enfrentar, com um esforço conjunto, a responsabilidade de deixar às gerações seguintes uma terra mais bela e habitável, esforçando-se, à luz dos compromissos concordados em Paris no ano de 2015, por reduzir as emissões de gás nocivas à atmosfera e prejudiciais para a saúde humana.
O espírito que deve animar os indivíduos e as nações nesta obra é comparável ao dos construtores das catedrais medievais que constelam a Europa. Estes edifícios imponentes contam como é importante a participação de cada qual para uma obra capaz de ultrapassar os confins do tempo. O construtor de catedrais sabia que não veria a conclusão do seu trabalho. E contudo trabalhou ativamente, entendendo que fazia parte dum projeto de que gozariam os seus filhos, que – por sua vez – o haviam de embelezar e ampliar para os respetivos filhos. Cada homem e mulher deste mundo – particularmente quem tem a responsabilidade de governar – é chamado a cultivar o mesmo espírito de serviço e solidariedade intergeracional, sendo assim um sinal de esperança para o nosso mundo atribulado.
Com estas considerações, renovo a cada um de vós, às vossas famílias e aos vossos povos os votos de um ano rico de alegria, esperança e paz. Obrigado!
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— ACI Digital (@acidigital) 8 de janeiro de 2018