Vaticano, 9 de jan de 2020 às 08:15
O Papa Francisco dirigiu nesta quinta-feira, 9 de janeiro, seu tradicional discurso por ocasião do começo do ano ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé, no qual os incentivou a trabalhar com esperança em favor da paz.
“Infelizmente, o novo ano aparece-nos constelado não tanto de sinais encorajadores, como sobretudo de uma intensificação de tensões e violências. É precisamente à luz destas circunstâncias que não podemos cessar de esperar. E esperar exige coragem. Exige que se tenha consciência de que o mal, o sofrimento e a morte não prevalecerão e que mesmo as questões mais complexas podem e devem ser enfrentadas e resolvidas. A esperança ‘é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis’”, advertiu o Santo Padre.
A seguir, o texto completo do discurso do Papa Francisco:
Excelências, Senhoras e Senhores!
Um novo ano se abre diante de nós e, como o vagido dum bebé recém-nascido, convida-nos à alegria e a assumir uma atitude de esperança. Gostaria que esta palavra (esperança) – para os cristãos, é uma virtude fundamental – animasse o olhar com que sondamos o tempo que está diante de nós.
Obviamente, esperar exige realismo. Exige que se tenha consciência das numerosas questões que afligem os nossos dias e dos desafios à nossa frente. Exige que se chamem os problemas pelo nome e se tenha a coragem de enfrentá-los. Exige não esquecer que a comunidade humana traz consigo os sinais e feridas das guerras que têm vindo a suceder-se com crescente capacidade destruidora ao longo do tempo e não cessam de atingir especialmente os mais pobres e os mais frágeis. Infelizmente, o novo ano aparece-nos constelado não tanto de sinais encorajadores, como sobretudo duma intensificação de tensões e violências.
É precisamente à luz destas circunstâncias que não podemos cessar de esperar. E esperar exige coragem. Exige que se tenha consciência de que o mal, o sofrimento e a morte não prevalecerão e que mesmo as questões mais complexas podem e devem ser enfrentadas e resolvidas. A esperança «é a virtude que nos coloca a caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem intransponíveis».
Com este espírito, vos recebo hoje, queridos Embaixadores, para vos formular os meus votos para o novo ano. Agradeço de modo especial ao Decano do Corpo Diplomático, o senhor George Poulides, Embaixador de Chipre, as expressões cordiais que me dirigiu em vosso nome; e sinto-me grato a todos vós pela presença, tão numerosa e significativa, e pelo empenho com que vos dedicais diariamente à consolidação das relações que ligam a Santa Sé aos vossos países e organizações internacionais a bem duma pacífica convivência entre os povos.
Com efeito, a paz e o desenvolvimento humano integral são o objetivo principal da Santa Sé no campo do seu empenho diplomático. Para tal objetivo tendem os esforços da Secretaria de Estado e dos dicastérios da Cúria Romana, bem como os esforços dos Representantes Pontifícios a quem agradeço a dedicação com que cumprem a dupla missão que lhes foi confiada de representar o Papa, quer junto das Igrejas locais quer junto dos vossos governos.
Nesta perspectiva, situam-se também os Acordos de caráter geral, assinados ou ratificados durante o ano passado com a República do Congo, a República Centro-Africana, o Burkina Faso e Angola, bem como o Acordo entre a Santa Sé e a República Italiana para a aplicação da Convenção de Lisboa sobre o reconhecimento dos títulos de estudo relativos ao Ensino Superior na Europa.
As próprias viagens apostólicas, além de ser uma via privilegiada pela qual o Sucessor do Apóstolo Pedro confirma os irmãos na fé, tornam-se ocasião para favorecer o diálogo a nível político e religioso. Em 2019, tive oportunidade de visitar várias realidades significativas. Gostaria de as repassar convosco, aproveitando o ensejo para uma visão mais ampla dalgumas questões problemáticas do nosso tempo.
No início do ano passado, por ocasião da XXXIV Jornada Mundial da Juventude, encontrei no Panamá jovens provenientes dos cinco continentes, cheios de sonhos e esperanças, lá congregados para rezar e reavivar o desejo e o compromisso de criar um mundo mais humano.[3] Poder encontrar os jovens é sempre uma alegria e uma grande oportunidade; são o futuro e a esperança das nossas sociedades.
E todavia, como é tristemente sabido, não poucos adultos, incluindo vários membros do clero, tornaram-se responsáveis de delitos gravíssimos contra a dignidade dos jovens, crianças e adolescentes, violando a sua inocência e intimidade. Trata-se de crimes que ofendem a Deus, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a vida de comunidades inteiras. Na sequência do encontro com os Episcopados de todo o mundo, que convoquei no Vaticano em fevereiro passado, a Santa Sé renova o seu empenho para que se descubram os abusos cometidos e se garanta a proteção dos menores, através duma ampla gama de normas que permitam enfrentar tais casos no contexto do direito canónico e através da colaboração com as autoridades civis, a nível local e internacional.
Perante feridas tão graves, torna-se ainda mais urgente que os adultos não abdiquem da tarefa educativa que lhes cabe; antes pelo contrário, assumam tal compromisso com maior zelo para levar os jovens à maturidade espiritual, humana e social.
Por esta razão, pretendo promover um evento mundial, no próximo dia 14 de maio, que terá como tema Reconstruir o pacto educativo global. Trata-se dum encontro que visa «reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão. Nunca, como agora, houve necessidade de unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna».
Qualquer mudança epocal, como a que estamos a atravessar, requer um caminho educativo, a constituição de uma aldeia da educação, que gere uma rede de relações humanas e abertas. Uma tal aldeia deve colocar no centro a pessoa, favorecer a criatividade e a responsabilidade por uma projetação a longo prazo e formar pessoas disponíveis para servir a comunidade.
Precisamos, pois, dum conceito de educação que englobe a ampla gama de experiências de vida e processos de aprendizagem e que permita aos jovens, individual e coletivamente, desenvolver a sua personalidade. A educação não se esgota nos tempos de lição das escolas ou das universidades, mas é garantida principalmente respeitando e reforçando o direito primário da família a educar e o direito das Igrejas e das agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação dos filhos.
Educar exige entrar num diálogo leal com os jovens. São eles os primeiros a recordar-nos a urgência daquela solidariedade intergeracional que, infelizmente, tem vindo a faltar nos últimos anos. De facto, em muitas partes do mundo, verifica-se uma tendência a fechar-se em si mesmo, proteger os direitos e privilégios adquiridos; conceber o mundo dentro dum horizonte limitado, que trata com indiferença os idosos e sobretudo já não oferece espaço à vida nascente. Uma representação triste e emblemática disto mesmo é o envelhecimento geral de parte da população mundial, especialmente no Ocidente.
Se, por um lado, não devemos esquecer que os jovens esperam a palavra e o exemplo dos adultos, por outro, devemos ter em mente que aqueles têm muito para oferecer com o seu entusiasmo, o seu empenhamento e sede de verdade, pela qual nos recordam constantemente o facto de que a esperança não é uma utopia, e a paz é um bem sempre possível.
Vimo-lo no modo como muitos jovens se estão empenhando por sensibilizar os líderes políticos para a questão das alterações climáticas. O cuidado da nossa casa comum deve ser uma preocupação de todos, e não objeto de contraposição ideológica entre diferentes visões da realidade e, menos ainda, entre as gerações, pois «no contato com a natureza – como recordava Bento XVI –, a pessoa reencontra a sua justa dimensão, redescobre-se criatura, pequena mas ao mesmo tempo única, “capaz de Deus”, porque interiormente aberta ao Infinito». Por isso, a salvaguarda do lugar que nos foi dado pelo Criador para viver não pode ser negligenciada nem reduzida a uma problemática de elite. Os jovens dizem-nos que não pode ser assim, porque existe um desafio urgente, a todos os níveis, de proteger a nossa casa comum e «de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral». Recordam-nos a urgência duma conversão ecológica, que «deve ser entendida de maneira integral, como uma transformação das relações que mantemos com as nossas irmãs e irmãos, com os outros seres vivos, com a criação na sua riquíssima variedade, com o Criador que é origem de toda a vida».
Infelizmente, a urgência desta conversão ecológica parece não ser sentida pela política internacional, cuja resposta às problemáticas colocadas por questões globais como a das alterações climáticas é ainda muito fraca e fonte de grande preocupação. A XXV Sessão da Conferência dos Estados Parceiros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP25), que se realizou em Madrid no passado mês de dezembro, constitui um sério toque de alarme sobre a vontade que tem a Comunidade Internacional de enfrentar, com sabedoria e eficácia, o fenómeno do aquecimento global, que requer uma resposta coletiva, capaz de fazer prevalecer o bem comum sobre os interesses particulares.
Estas considerações movem a nossa atenção para a América Latina, em particular para a Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região amazónica, realizada no Vaticano em outubro passado. O Sínodo foi um evento essencialmente eclesial, motivado pela vontade de colocar-se à escuta das esperanças e desafios da Igreja na Amazónia e de abrir novos caminhos para o anúncio do Evangelho ao Povo de Deus, especialmente às populações indígenas. Todavia a Assembleia Sinodal não podia eximir-se de abordar outras temáticas – a começar pela ecologia integral – que dizem respeito à própria vida daquela região tão vasta e importante para todo o mundo, uma vez que «a floresta amazónica é um “coração biológico” para a terra cada vez mais ameaçada».
Além da situação na região amazónica, preocupa a multiplicação de crises políticas num número crescente de países do continente americano, com tensões e insólitas formas de violência que agravam os conflitos sociais e geram graves consequências socioeconómicas e humanitárias. As polarizações cada vez mais fortes não ajudam a resolver os problemas reais e urgentes dos cidadãos, especialmente dos mais pobres e vulneráveis, e menos ainda o consegue a violência, que por nenhuma razão pode ser adotada como instrumento para enfrentar as questões políticas e sociais. Gostaria aqui de lembrar especialmente a Venezuela, para que não esmoreça o empenho na busca de soluções.
Em geral, os conflitos da região americana, embora possuindo raízes diferentes, são irmanados pelas profundas desigualdades, as injustiças e uma endémica corrupção, bem como pelas várias formas de pobreza que ofendem a dignidade das pessoas. Por isso, os líderes políticos esforcem-se por restabelecer, urgentemente, uma cultura do diálogo em prol do bem comum e por fortalecer as instituições democráticas e promover o respeito pelo estado de direito, a fim de prevenir deslizes antidemocráticos, populistas e extremistas.
Na segunda viagem de 2019, fui aos Emirados Árabes Unidos: era a primeira visita dum Sucessor de Pedro à Península Arábica. Em Abu Dhabi, assinei juntamente com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, o Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum. Trata-se de um texto importante, que visa favorecer a mútua compreensão entre cristãos e muçulmanos e a convivência em sociedades que se vão tornando cada vez mais multiétnicas e multiculturais, pois, ao condenar firmemente o uso do «nome de Deus para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão», recorda a importância do conceito de cidadania, que se «baseia na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam da justiça». Isto exige que seja respeitada a liberdade religiosa e se trabalhe para renunciar ao uso discriminatório do termo «minorias», que traz consigo as sementes da sensação de isolamento e inferioridade e prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia, discriminando os cidadãos com base na sua pertença religiosa. Para isso, é particularmente importante formar as gerações futuras no diálogo inter-religioso, como via mestra para o conhecimento, a compreensão e o apoio mútuo entre membros de diferentes religiões.
Paz e esperança estiveram também no centro da minha visita a Marrocos, onde, com Sua Majestade o Rei Mohammed VI, assinei um apelo conjunto sobre Jerusalém, «reconhecendo a singularidade e sacralidade de Jerusalém / Al Qods Acharif e tendo a peito o seu significado espiritual e a sua vocação peculiar de Cidade da Paz». E falando de Jerusalém – cidade amada pelos fiéis das três religiões monoteístas, chamada a ser lugar-símbolo de encontro e coexistência pacífica onde se cultive o respeito mútuo e o diálogo –, naturalmente o meu pensamento alarga-se a toda a Terra Santa para lembrar à Comunidade Internacional inteira a urgência de confirmar, com coragem, sinceridade e no respeito pelo direito internacional, o seu compromisso e apoio ao processo de paz entre Israel e a Palestina.
E há grande urgência dum empenho mais assíduo e eficaz da Comunidade Internacional também noutros pontos da região mediterrânica e do Médio Oriente. Refiro-me, antes de mais nada, à cortina de silêncio que corre o risco de encobrir a guerra que devastou a Síria durante a última década. É particularmente urgente encontrar soluções adequadas e clarividentes que permitam ao querido povo sírio, exausto da guerra, encontrar a paz e começar a reconstrução do país. A Santa Sé olha, favoravelmente, toda a iniciativa destinada a lançar as bases para a resolução do conflito e expressa mais uma vez a sua gratidão à Jordânia e ao Líbano por terem recebido milhares de refugiados sírios, ocupando-se deles com não poucos sacrifícios. Infelizmente, para além das canseiras provocadas pela recepção, há outros fatores de incerteza económica e política – no Líbano e noutros Estados – que estão a causar tensões entre a população, colocando ainda mais em risco a frágil estabilidade do Médio Oriente.
Particularmente preocupantes são os sinais que chegam de toda a região, após a recrudescência da tensão entre o Irão e os Estados Unidos que se arrisca, antes de tudo, a colocar a dura prova o lento processo de reconstrução do Iraque, bem como a criar as bases dum conflito de mais vasta escala que todos quereríamos poder esconjurar. Por isso, renovo o meu apelo a todas as partes interessadas para que evitem um agravamento do conflito e mantenham «acesa a chama do diálogo e do autocontrole»,[16] no pleno respeito da legalidade internacional.
Penso ainda no Iémen, que vive uma das mais graves crises humanitárias da história recente, num clima de indiferença geral da Comunidade Internacional, e na Líbia, que há muitos anos vive uma situação conflituosa, agravada pelas incursões de grupos extremistas e por uma nova escalada de violência nos últimos dias. Este contexto é terreno fértil para o flagelo da exploração e tráfico de seres humanos, alimentado por pessoas sem escrúpulos que exploram a pobreza e o sofrimento daqueles que fogem de situações de conflito ou de pobreza extrema. Muitos deles acabam presa de verdadeiras e próprias máfias que os detêm em condições desumanas e degradantes, sujeitando-os a torturas, violências sexuais, extorsões.
Em geral, é preciso salientar que no mundo existem vários milhares de pessoas, com necessidades humanitárias e legítimos pedidos de asilo e proteção verificáveis, que não são adequadamente identificadas. Muitos arriscam a vida em perigosas viagens por terra e sobretudo por mar. Com mágoa, continua-se a constatar como o Mar Mediterrâneo permanece um grande cemitério. Por isso, é cada vez mais urgente que todos os Estados se responsabilizem por encontrar soluções duradouras.
Por seu lado, a Santa Sé olha com grande esperança para os esforços feitos por numerosos países para compartilhar o peso da reinstalação e proporcionar aos deslocados, especialmente por emergências humanitárias, um lugar seguro onde viver, uma educação e também a possibilidade de trabalhar e voltar para as suas famílias.
Queridos Embaixadores!
Nas viagens do ano passado, tive oportunidade de deslocar-me também a três países da Europa oriental, visitando primeiro a Bulgária e a Macedónia do Norte e, depois, a Roménia. Trata-se de três países diferentes entre si, mas irmanados pelo facto de terem sido, ao longo dos séculos, ponte entre o Oriente e o Ocidente e encruzilhada de diferentes culturas, etnias e civilizações. Ao visitá-los, pude experimentar mais uma vez como são importantes o diálogo e a cultura do encontro para construir sociedades pacíficas, onde cada um possa expressar livremente a própria pertença étnica e religiosa.
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Permanecendo no contexto europeu, gostaria de recordar a importância de sustentar o diálogo e o respeito da legalidade internacional para resolver os «conflitos congelados» que persistem no continente, alguns deles há já decénios, e que exigem uma solução, a começar pelas situações relativas aos Balcãs ocidentais e ao Cáucaso meridional, nomeadamente a Geórgia. Além disso gostaria de expressar aqui o encorajamento da Santa Sé às negociações para a reunificação de Chipre, o que aumentaria a cooperação regional, favorecendo a estabilidade de toda a região mediterrânea, bem como manifestar apreço pelas tentativas tendentes a resolver o conflito na parte oriental da Ucrânia e pôr termo aos sofrimentos da população.
O diálogo – e não as armas – é o instrumento essencial para resolver as disputas. A propósito, desejo mencionar aqui a contribuição oferecida, por exemplo na Ucrânia, pela Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), especialmente neste ano em que ocorre o 45º aniversário da Ata Final de Helsinque, que concluiu a Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (CSCE), iniciada em 1973 para favorecer a distensão e a colaboração entre os países da Europa ocidental e os da Europa oriental, quando o continente ainda estava dividido pela cortina de ferro. Foi uma etapa importante dum processo iniciado sobre os escombros da II Guerra Mundial e que viu o consenso e o diálogo como um instrumento essencial para resolver as disputas.
Já em 1949 na Europa ocidental, com a criação do Conselho da Europa e sucessiva adoção da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, lançaram-se as bases do processo de integração europeia, que encontraram um pilar fundamental na Declaração de 9 de maio de 1950 do Ministro francês dos Negócios Estrangeiros de então, Robert Schuman. Afirmava ele que «a paz só pode ser salvaguardada através de esforços criativos, proporcionais aos perigos que a ameaçam». Nos Pais fundadores da Europa moderna, havia a consciência de que o continente só poderia recuperar das lacerações da guerra e das novas divisões que sobrevieram através dum processo gradual de partilha de ideais e recursos.
Desde os primeiros anos, a Santa Sé olhou com interesse o projeto europeu, recorrendo este ano o cinquentenário da presença da Santa Sé como Observador no Conselho da Europa, bem como o estabelecimento das relações diplomáticas com as Comunidades Europeias de então. O referido interesse pretende sublinhar uma ideia de construção inclusiva, animada por um espírito participativo e solidário, capaz de fazer da Europa um exemplo de hospitalidade e equidade social sob o signo dos valores comuns que estão na sua base. O projeto europeu continua a ser uma garantia fundamental de desenvolvimento para quem faz parte dele há algum tempo e uma oportunidade de paz, depois de turbulentos conflitos e lacerações, para os países que desejam participar.
Por isso, a Europa não perca o sentido de solidariedade que, há séculos, a carateriza, mesmo nos momentos mais difíceis da sua história. Não perca aquele espírito, cujas raízes brotam, para além do mais, da pietas romana e da caritas cristã, que descrevem bem a alma dos povos europeus. O incêndio da Catedral de Notre Dame em Paris mostrou como é frágil e fácil de destruir até o que parece sólido. Os danos sofridos por um edifício, caro não apenas aos católicos mas significativo para toda a França e a humanidade inteira, trouxeram à ribalta o tema dos valores históricos e culturais da Europa e das raízes nas quais a mesma se fundamenta. Num contexto onde faltam valores de referência, torna-se mais fácil encontrar elementos de divisão que de coesão.
O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim colocou-nos diante dos olhos um dos símbolos mais dilacerantes da história recente do continente, lembrando-nos como é fácil erguer barreiras. O Muro de Berlim permanece emblemático duma cultura da divisão que afasta as pessoas umas das outras e abre caminho ao extremismo e à violência. Vemo-lo sempre mais na linguagem de ódio amplamente usada na internet e nos meios de comunicação social. Às barreiras do ódio, preferimos as pontes da reconciliação e da solidariedade; àquilo que afasta, preferimos o que aproxima, cientes de que «nenhuma paz – como escreveu há cem anos o meu predecessor Bento XV – se [pode] consolidar (...) se, ao mesmo tempo, não se aplacarem os ódios e os rancores por meio duma reconciliação fundada na mútua caridade».
Queridos Embaixadores!
Sinais de paz e reconciliação, pude ver durante a viagem à África, onde é evidente a alegria de quem juntamente se sente povo e enfrenta as canseiras diárias com espírito de partilha. Experimentei a concretização da esperança através de numerosos gestos encorajadores, a começar pelos renovados progressos realizados em Moçambique, com a assinatura do Acordo para a cessação definitiva das hostilidades no dia 1 de agosto passado.
Em Madagáscar, pude constatar que é possível construir segurança onde havia precariedade, ver esperança onde se sentia apenas fatalidade, vislumbrar vida onde muitos anunciavam morte e destruição. Para isso, são essenciais a família e o sentido da comunidade que permite estabelecer aquela confiança fundamental que está na base de todo o relacionamento humano. Nas Ilhas Maurício, observei como trabalham juntas «as várias religiões com as suas respetivas identidades, contribuindo para a paz social e recordando o valor transcendente da vida contra todo o tipo de reducionismo». Confio que o entusiasmo que pude experimentar durante a viagem continue a concretizar-se em gestos de hospitalidade e em projetos capazes de promover a justiça social, evitando dinâmicas de fechamento.
Estendendo o olhar para outras partes do continente, dói constatar como continuam – particularmente no Burkina Faso, Mali, Níger e Nigéria – episódios de violência contra pessoas inocentes, entre as quais muitos cristãos perseguidos e mortos pela sua fidelidade ao Evangelho. Exorto a Comunidade Internacional a apoiar os esforços que estes países estão a fazer na luta para derrotar o flagelo do terrorismo, que está a cobrir de sangue partes cada vez mais extensas da África, bem como outras regiões do mundo. À luz destes acontecimentos, é necessário que se implementem estratégias que incluam intervenções não só no campo da segurança, mas também na redução da pobreza, na melhoria do sistema de saúde, no desenvolvimento e na assistência humanitária, na promoção da boa governança e dos direitos civis. Tais são os pilares dum real desenvolvimento social.
De igual modo, é preciso encorajar as iniciativas que promovem a fraternidade entre todas as expressões culturais, étnicas e religiosas do território, especialmente no Corno de África, nos Camarões e na República Democrática do Congo, onde persistem violências sobretudo nas regiões orientais do país. Os conflitos e as emergências humanitárias, agravadas pelas convulsões climáticas, aumentam o número dos deslocados e repercutem-se sobre as pessoas que já vivem em grave estado de pobreza. Muitos dos países atingidos por estas situações carecem de estruturas adequadas que permitam atender às necessidades daqueles que foram deslocados.
A propósito, gostaria de salientar aqui que, infelizmente, ainda não existe uma resposta internacional coerente para enfrentar o fenómeno do deslocamento interno, porque, em grande parte, o mesmo não possui uma definição internacional concorde, verificando-se dentro das fronteiras nacionais. O resultado é que os deslocados internos nem sempre recebem a proteção que merecem e dependem da capacidade de resposta e das políticas do Estado onde se encontram.
Recentemente, iniciou-se o trabalho do Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Deslocamentos Internos, que espero possa favorecer a atenção e o apoio global aos deslocados, desenvolvendo recomendações concretas.
Nesta perspectiva, olho também para o Sudão, almejando que os seus cidadãos possam viver na paz e na prosperidade e colaborar no crescimento democrático e económico do país; para a República Centro-Africana, onde, em fevereiro passado, foi assinado um Acordo global para pôr termo a mais de cinco anos de guerra civil; e para o Sudão do Sul, que espero poder visitar no decurso deste ano e ao qual dediquei um dia de retiro no mês de abril passado com a presença dos líderes do país e a preciosa contribuição do Arcebispo de Cantuária, Sua Graça Justin Welby, e do ex-Moderador da Igreja Presbiteriana da Escócia, o Reverendo John Chalmers. Confio que aqueles que têm responsabilidades políticas continuem o diálogo, com a ajuda da Comunidade Internacional, para implementar os acordos alcançados.
A última viagem do ano findo foi ao leste da Ásia. Na Tailândia, pude constatar a harmonia gerada pelos numerosos grupos étnicos que constituem o país, com a sua diversidade filosófica, cultural e religiosa. Trata-se dum apelo importante no contexto atual da globalização, que tende a amolgar as diferenças e considerá-las primariamente em termos económicos e financeiros, com o risco de apagar as notas essenciais que caraterizam os vários povos.
Finalmente, no Japão, experimentei o sofrimento e o horror que nós, seres humanos, somos capazes de nos infligir. Ouvindo os testemunhos de alguns hibakusha – os sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroshima e Nagasaki –, pareceu-me evidente que não se pode construir uma verdadeira paz sobre a ameaça duma possível aniquilação total da humanidade provocada pelas armas nucleares. Os hibakusha «mantêm viva a chama da consciência coletiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu em agosto de 1945 e os sofrimentos indescritíveis que se seguiram até aos dias de hoje. Assim, o seu testemunho aviva e preserva a memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição», especialmente a provocada por armas de tão grande força destruidora como as nucleares. Estas não só fomentam um clima de medo, desconfiança e hostilidade, mas destroem também a esperança. O seu uso é imoral, «um crime não só contra o homem e a sua dignidade, mas também contra toda a possibilidade de futuro na nossa casa comum».
Um mundo sem armas nucleares «é possível e necessário», e é tempo que se tornem cientes disto mesmo quantos têm responsabilidades políticas, porque não é a posse dissuasora de poderosos meios de destruição de massa que torna o mundo mais seguro, mas o trabalho paciente de todas as pessoas de boa vontade que se dedicam concretamente, cada uma na sua própria área, a construir um mundo de paz, solidariedade e respeito mútuo.
O ano 2020 oferece uma oportunidade importante neste sentido, porque, de 27 de abril a 22 de maio, realizar-se-á em Nova Iorque a X Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Almejo vivamente que a Comunidade Internacional consiga, em tal ocasião, encontrar um consenso final e proativo sobre as modalidades de implementação deste instrumento jurídico internacional, que se revela ainda mais importante num momento como o atual.
No termo da resenha dos lugares que pisei durante o ano findo, quero dirigir uma saudação particular a um país que não visitei, ou seja, a Austrália, duramente flagelada nos últimos meses por persistentes incêndios, cujos efeitos se fizeram sentir também noutras regiões da Oceânia. Ao povo australiano, especialmente às vítimas e a quantos vivem nas regiões atingidas pelos fogos, desejo certificá-los da minha proximidade e oração.
Excelências, Senhoras e Senhores!
Este ano, a Comunidade Internacional comemora o 75º aniversário de fundação das Nações Unidas. Na sequência das tragédias experimentadas nas duas Guerras Mundiais, quarenta e seis países deram vida – com a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945 – a uma nova forma de colaboração multilateral. As quatro finalidades da Organização, delineadas no artigo 1 da Carta, permanecem válidas ainda hoje e podemos dizer que o serviço das Nações Unidas nestes 75 anos foi, em grande parte, um sucesso, especialmente para evitar outra guerra mundial. Os princípios fundantes da Organização – o desejo de paz, a busca da justiça, o respeito pela dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e a assistência – traduzem as justas aspirações do espírito humano e constituem os ideais que deveriam guiar as relações internacionais.
Neste aniversário, queremos reafirmar o propósito de toda a família humana trabalhar pelo bem comum, como critério de orientação da ação moral e perspetiva que deve comprometer cada país a colaborar para garantir a existência e a segurança na paz de cada um dos outros Estados, num espírito de igual dignidade e efetiva solidariedade, no contexto dum ordenamento jurídico baseado na justiça e na busca de compromissos équos.
Tal ação será tanto mais eficaz quanto mais procurarmos superar aquela surtida transversal, presente na linguagem e nos atos dos organismos internacionais, que visa ligar os direitos fundamentais a situações contingentes, esquecendo que os mesmos estão intrinsecamente fundados na própria natureza do ser humano. Quando começa a faltar, no léxico das organizações internacionais, uma ancoragem clara à realidade objetiva, existe o risco de favorecer, não a aproximação, mas o afastamento dos membros da Comunidade Internacional, com a consequente crise do sistema multilateral que está, tristemente, à vista de todos. Neste contexto, resulta urgente retomar o percurso para uma reforma geral do sistema multilateral, a partir do sistema onusiano, que o torne mais eficaz, tendo na devida consideração o contexto geopolítico atual.
Queridos Embaixadores!
Chegados à conclusão destas reflexões, desejo mencionar ainda duas efemérides – aparentemente alheias ao nosso encontro hodierno – que terão lugar este ano. A primeira são os 500 anos da morte de Rafael Sanzio, o grande artista de Urbino, que morreu em Roma no dia 6 de abril de 1520. Devemos a Rafael um enorme património de beleza inestimável. Tal como o génio do artista sabe compor de maneira harmoniosa materiais toscos, cores e sons diferentes, tornando-os parte duma única obra de arte, assim também a diplomacia é chamada a harmonizar as peculiaridades dos vários povos e Estados para construir um mundo de justiça e paz, que é o belo quadro que gostaríamos de poder admirar.
Rafael foi um filho importante duma época – o Renascimento –, que enriqueceu toda a humanidade; uma época, não isenta de dificuldades, mas animada pela confiança e a esperança. Através deste artista insigne, desejo fazer chegar os mais calorosos votos ao povo italiano, a quem almejo descobrir aquele espírito de abertura ao futuro que caracterizou o Renascimento e que tornou esta península tão bela e rica de arte, história e cultura.
Um dos temas preferidos da pintura de Rafael era Maria. A Ela, dedicou numerosas pinturas, que hoje se podem admirar em vários museus do mundo. Para a Igreja Católica, este ano marca o septuagésimo aniversário da proclamação dogmática da Assunção da Virgem Maria ao Céu. Com o olhar posto em Maria, desejo dirigir uma saudação particular a todas as mulheres, 25 anos depois da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim no ano de 1995, com votos de que em todo o mundo se reconheça cada vez mais o precioso papel das mulheres na sociedade e cessem todas as formas de injustiça, desigualdade e violência contra elas. «Toda a violência infligida à mulher é profanação de Deus». A violência exercida contra uma mulher ou a sua exploração não é um simples reato; é um crime que destrói a harmonia, a poesia e a beleza que Deus quis dar ao mundo.
A Assunção de Maria convida-nos a olhar ainda mais além, para a conclusão do nosso caminho terreno, para o dia em que serão totalmente restabelecidas a justiça e a paz. Deste modo sentimo-nos encorajados – através da diplomacia, que é a nossa tentativa humana, imperfeita mas sempre preciosa – a trabalhar zelosamente para antecipar os frutos deste desejo de paz, sabendo que a meta é possível. Com este compromisso, renovo a todos vós, queridos Embaixadores e ilustres convidados aqui reunidos, e aos vossos países, os meus votos cordiais de um novo ano cheio de esperança e repleto de bênçãos.
Obrigado!
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— ACI Digital (@acidigital) January 8, 2020