A Fundação Pontifícia Scholas Occurrentes, que tem entre seus objetivos promover a educação especialmente nas comunidades “com menos recursos”, recebeu milhões de dólares em doações e convênios com diversas organizações nos últimos anos sem ter construído uma única escola em bairros pobres. Para onde vai esse dinheiro, então?

Scholas Occurrentes formalizou sua existência em 2015 respaldada pelo Papa Francisco, que incentiva uma “Igreja pobre para os pobres”. Naquele ano, foram registrados dois braços da fundação, um na Argentina e outro na Espanha, ao mesmo tempo em que recebeu do Santo Padre o título de “Fundação do Direito Pontifício”.

A fundação reconhece entre os seus objetivos "promover, melhorar a educação e conseguir a integração das comunidades, com foco nas de menos recursos", assim como "promover campanhas de sensibilização para os valores humanos".

No entanto, Scholas Occurrentes não ergueu uma única escola em todo o mundo. Em vez disso, instalou escritórios como sedes e realizou convênios para ter presença em outros centros educativos de nível escolar e superior.

O projeto mais recente da Scholas Occurrentes, a "Universidade do Sentido", tem entre seus expositores conhecidos promotores e referentes da legalização do aborto e da ideologia de gênero no mundo.

No final de setembro deste ano, a Universidade Católica de Valência, na Espanha, aceitou ser a sede oficial da Universidade do Sentido.

De acordo com seu site, Scholas Occurrentes tem sedes na Argentina, Chile, Cidade do Vaticano, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Haiti, Japão, Itália, México, Moçambique, Panamá, Paraguai, Portugal e Romênia. No entanto, a sua presença se estende a uma “rede em 190 países, integrando mais de 400 mil centros educativos e atingindo mais de um milhão de crianças e jovens em todo o mundo”.

O Conselho Curador da Scholas Occurrentes é composto por José María del Corral como presidente, o bispo argentino e membro da cúria vaticana Dom Marcelo Sánchez Sorondo como vice-presidente, Enrique Adolfo Palmeyro como secretário e Marta Simoncelli como vice-secretária.

Importantes doações e convênios

O respaldo do Papa Francisco permitiu a Scholas Occurrentes, apesar de seu curto tempo de funcionamento, firmar convênios e receber doações de grandes empresas e instituições públicas de alto nível.

Em cada uma das suas demonstrações financeiras públicas de 2016, 2017 e 2018 existe um acordo com o Barcelona Futebol Clube, ​​equipe de Lionel Messi, no valor anual de 30 mil euros, cerca de 35 mil dólares. No relatório econômico de 2019, os 30 mil euros de F.C. Barcelona foram registrados como "doação".

Outra equipe desportiva espanhola, o Club Atlético de Madrid, doou 460 mil euros em 2017, cerca de 543 mil dólares.

A demonstração financeira de 2015 de Scholas Occurrentes inclui a Pontifícia Academia das Ciências com um donativo de cerca de 324 mil euros, cerca de 383 mil dólares.

Em 2019 também registraram importantes convênios, como com o Ministério da Educação do Haiti, por 323.951 euros, cerca de 405 mil dólares.

Scholas também tem um convênio de quase um milhão de euros com a Origen Worldwide, uma empresa de marketing e comunicação com sede em Madri, Espanha.

Em 2019, recebeu também uma doação da companhia aérea Air Europa no valor de cerca de 735 mil euros, cerca de 867 mil dólares.

Entre outras organizações públicas e privadas com as quais Scholas realizou convênios ou das quais recebeu doações estão: Paul David Hewson, o cantor e vocalista da banda de rock U2 conhecida como Bono; o Banco Santander; o Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires; PricewaterhouseCoopers, uma das principais empresas de consultoria do mundo; Disney Worldwide; a Agência Mexicana de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento; o Escritório da Primeira Dama da República Dominicana; o Banco Interamericano de Desenvolvimento; Mercedes Benz Argentina; Microsoft e Fundação Universitária São Paulo CEU.

Milhões de dólares para honorários e viagens e centenas de milhares para escritórios

Entretanto, de acordo com relatórios não incluídos nas demonstrações financeiras publicadas oficialmente, Scholas Occurrentes usaria milhões de dólares para pagar honorários e centenas de milhares para custear seus escritórios e as viagens de seus funcionários.

De acordo com o documento intitulado “Fundação Scholas Occurrentes - Scholas Consolidado (USD): Scholas Argentina. Demonstrativo de receitas e despesas de janeiro de 2016 a dezembro de 2016", ao qual ACI Prensa – agência em espanhol do Grupo ACI – teve acesso, a organização teria gasto nesse período, somente na sede argentina, quase 5,2 milhões de dólares em “honorários profissionais" e mais um milhão de dólares em "honorários temporários".

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O documento assinala ainda que mais de 448 mil dólares foram usados ​​para “salários e encargos sociais”.

Em “aluguel de escritórios”, Scholas Occurrentes gastou mais de 324 mil dólares naquele ano. Outros 300 mil dólares foram destinados a "telefonia móvel".

Como receita total, "lucro bruto", a fundação pontifícia registrou nesse ano em sua sede argentina mais de 12 milhões de dólares.

No seu “Relatório Abreviado a 31 de dezembro de 2017”, que também não se encontra entre os documentos publicados no seu site, Scholas Occurrentes indica que destinou a “despesas de viagens” 903 mil euros em 2016 e mais de 912 mil euros 2017. Em ambos os casos, trata-se de mais de um milhão de dólares por ano.

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De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas, 30,8% da população da América Latina vive em situação de pobreza, abaixo do limite de 1,9 dólares por dia. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 14 milhões de crianças e adolescentes entre 7 e 18 anos estão fora do sistema educacional na América Latina. No entanto, os projetos realizados por Scholas Occurrentes na América Latina e no mundo parecem estar longe de dar uma resposta concreta à educação de pessoas com menos recursos.

Entre os eventos que constam do anuário de 2019 de Scholas estão shows, acampamentos, o projeto “Programando pela Paz”, que não detalha como alunos de escolas de baixa renda podem acessar a tecnologia, além de uma “Maratona Online sobre Bullying e Cyberbullying ”.

Scholas também não parece responder ao desafio atual da educação à distância para alunos de baixa renda, pois seus projetos online, como a Universidade do Sentido, parecem esquecer a falta de acesso à Internet entre os grupos mais pobres e vulneráveis, que se tornou especialmente tangível em meio à pandemia de coronavírus Covid-19.

Um relatório da UNICEF de agosto deste ano revelou que "pelo menos um terço das crianças em idade escolar em todo o mundo não teve acesso à educação a distância durante o fechamento das escolas devido a Covid-19”.

Uma das principais causas da falta de acesso à educação à distância durante a pandemia de Covid-19 no México, um dos países onde Scholas Occurrentes instalou uma sede, foi “a falta de computador ou internet”, segundo um estudo realizado pela Universidade Ibero-americana.

De acordo com a UNICEF, a “percentagem mínima de crianças em idade escolar sem acesso à educação à distância” é superior a 40% na África, enquanto no Sul da Ásia é de 38%. Na Europa Oriental e Ásia Central é de 34%, enquanto na América Latina e Caribe é de 9%.

No total, indicou a organização das Nações Unidas, haveria 463 milhões de menores sem acesso à educação à distância em todo o mundo.

Transparência?

ACI Prensa contatou Scholas Occurrentes desde 15 de setembro, por meio de Virginia Priano, diretora de comunicações da fundação pontifícia. Depois de duas semanas, com várias trocas de e-mails, mensagens de WhatsApp e telefonemas, os diretores da organização não responderam a um primeiro grupo de perguntas sobre os palestrantes pró-aborto e ideologia de gênero convocados para a Universidade do Sentido.

Em 29 de setembro, após a publicação do artigo “Fundação Pontifícia organiza ‘aulas’ com promotores do aborto e da ideologia de gênero”, ACI Prensa enviou novas perguntas a Virginia Priano, desta vez sobre a gestão financeira e os consideráveis gastos de Scholas Occurrentes em honorários, viagens, escritórios e telefonia.

Priano enviou uma breve mensagem de saudação a ACI Prensa no dia 30 de setembro via WhatsApp. Seria a última vez que entraria em contato com esta agência. Dias depois, o número do telefone argentino para o qual foi feita a comunicação ficou inativo. As chamadas e mensagens para o telefone italiano do diretor de comunicações de Scholas Occurrentes não foram respondidas, assim como os diversos e-mails enviados nas últimas duas semanas.

Entre as últimas perguntas dirigidas aos diretores de Scholas Occurrentes estão: “como explicar às famílias pobres, com acesso limitado à educação, que Scholas Occurrentes – incentivada pelo Papa Francisco, que quer uma 'Igreja pobre para os pobres' – destina milhões de dólares para honorários, centenas de milhares para escritórios e telefonia móvel?”.

A fundação pontifícia também foi consultada sobre se haverá um programa específico para a construção de escolas e acesso à educação para menores pobres, algum programa de bolsas, o custo da Universidade do Sentido e quanto Scholas Occurrentes pagou à consultoria PriceWaterhouseCoopers para o concepção do Projeto Ágora.

O Projeto Ágora

Entre outros documentos internos de Scholas Occurrentes aos quais ACI Prensa teve acesso está o “Projeto Ágora. Criação de uma Rede Social Mundial baseada na Educação: Scholas”, que remonta a 2015 e tem uma legenda de “estritamente privado e confidencial”.

O Projeto Ágora propõe um modelo de crescimento e financiamento para Scholas Occurentes que ilumina seu funcionamento atual.

Naquela época, 2015, PriceWaterhouseCoopers assinalava que o modelo de captação de recursos de Scholas havia sido gerado “de forma espontânea e oportunista”, razão pela qual propôs novos mecanismos para conseguir “continuar com a atividade de Scholas, consolidar os países nos quais estão presentes e investir na geração de outras fontes de financiamento”.

Em uma de suas primeiras páginas, o projeto reconhece que “o Papa é um trunfo fundamental para Scholas e, portanto, é necessário um modelo de desenvolvimento que permita a Scholas Global ter amplo controle sobre o uso de sua imagem em todos os seus capítulos/sedes”.

Por isso, indica o documento, é importante “manter o controle sobre a imagem e a reputação da Fundação e do Papa”.

“Evitar o risco de reputação é, para Scholas (...) uma tarefa prioritária”, diz o documento confidencial.

Publicado originalmente em ACI Prensa. Traduzido e adaptado por Natalia Zimbrão.

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