Roma, 2 de jun de 2021 às 12:01
A reforma do direito penal da Igreja depende, agora, de quem irá utilizá-lo, diz o monsenhor Markus Graulich. A reforma do direito canônico a que o subsecretário do Pontifício Conselho para os Textos Jurídicos se refere foi asssinada no domingo de Pentecostes, promulgada na terça-feira 1º de junho e entra em vigor em dezembro próximo. Encomendada por Bento XVI em 2007 ela consiste em uma ampla reforma do livro VI do Código de Direito Canônico, que trata das penalidades para os delitos canônicos e determinam. CNA Deutsch, agência em alemão do grupo ACI, conversou com o canonista alemão.
A reforma do Código de Direito Canônico foi assinada pelo papa Francisco em Pentecostes por alguma razão especial?
A data da promulgação da nova lei penal da Igreja não é uma coincidência, ela foi escolhida deliberadamente e segue uma tradição mais antiga. O primeiro código de 1917 também foi promulgado no Pentecostes. Como os trabalhos de reforma foram concluídos na primavera e o texto foi aprovado pelo papa, fazia sentido escolher essa data para a promulgação da lei penal reformada também. Ainda assim, a reforma permanece - como afirma o papa na sua Constituição Apostólica – no âmbito da tradição do direito eclesiástico e não se trata de algo completamente novo, mesmo que traga novidades.
Por que foi feita a reforma das disposições penais do VI livro do Código de Direito Canônico (CIC)?
A renovação do direito penal eclesiástico era necessária porque o anterior direito penal do CIC era de leitura pouco, digamos assim, "amigável". Em muitos pontos, as penalidades eram apenas mencionadas como possibilidade e todo o texto dava a impressão de que era quase uma impiedade aplicá-las. É preciso lembrar que o direito penal tinha sido renovado renovado em um momento (1983) em que o direito na Igreja e, especialmente, o direito penal estava fundamentalmente em questão. Hoje, também por causa da investigação dos abusos de menores, o ambiente é diferente.
Que efeitos concretos essa revisão da lei criminal terá na igreja?
É muito difícil dizer. O Papa expressa em sua constituição apostólica que deseja que o direito penal renovado seja utilizado como um “instrumento terapêutico e corretivo mais flexível, oportuno e com amor pastoral. Pode ser usado para prevenir males maiores e curar as feridas deixadas pela fraqueza humana”. Depende dos bispos e outros líderes da Igreja que este objetivo seja alcançado. Em todo caso, pode-se dizer que a reforma do direito penal previu uma boa ferramenta para atingir os três objetivos associados à imposição de punições na Igreja: a restauração da justiça, a correção do perpetrador e o reparo do escândalo. Se esta reforma pode ser implementada na prática depende não apenas deste instrumento, mas de quem irá utilizá-lo.
O momento é explosivo: bandeiras do movimento LGBT são penduradas em igrejas em na Alemanha, uniões homossexuais foram abençoadas em um protesto público. No Congresso da Igreja Ecumênica em Frankfurt em maio deste ano, a Sagrada Comunhão foi dada a protestantes. Por todo o mundo há pressão para que mulheres sejam ordenadas. A lei da igreja é um meio de esclarecer essas situações?
Claro. O direito canônico é muito claro nessas questões, caso contrário, não seria uma lei. Mas, como eu disse, só pode ser um meio de esclarecimento se for aplicado. A questão que se coloca aqui é: o que nos deve guiar? A doutrina e a lei, ou seja, critérios objetivos ou uma atitude de abertura ao momento da vida ou do zeitgeist (espírito do tempo)? Se tudo for fundamentado em um certo pensamento positivo, então até mesmo o melhor sistema jurídico será inútil.
O senhor pode nos dar um exemplo específico?
Existe, por exemplo, a norma no cân. 1371 §1: “Quem não obedecer à Sé Apostólica, o Ordinário ou o Superior, que legalmente ordene ou proíba, e persista na desobediência depois de advertido, será punido conforme a gravidade do caso, sujeito a pena ou a perda do mandato ou outras penalidades do cân. 1336 §§ 2-4”. Essa norma era semelhante à do código atual, mas não era aplicada. O mesmo se aplica ao novo §4 do cân. 1379: “Quem deliberadamente der um sacramento a quem está proibido de recebê-lo, seja punido com a suspensão, enquanto as demais penas de acordo com o cân. 1336 §§ 2-4 podem ser adicionados. Esta norma será implementada? O risco é que práticas diferentes se desenvolvam na aplicação da lei: haverá países onde ela será realmente aplicada e países onde não será. Isso contradiz o objetivo da ordem legal que é ter uma prática uniforme na igreja.
A reforma também afeta os parágrafos do Sexto Mandamento - lá o abuso sexual foi legalmente definido. O que muda?
Existem várias mudanças nesta área. Em primeiro lugar, o abuso sexual de menores foi anteriormente listado como crime sob o título “Infrações contra obrigações especiais”. Isso era insuficiente porque o abuso sexual é mais do que uma ofensa ao celibato. No direito penal renovado, o delito encontra-se sob o título: "Crimes contra a vida, a dignidade e a liberdade do ser humano". Essa classificação do delito não parece à primeira vista ser um grande passo, mas muda. A perspctiva é decisiva: quem abusa de um menor sempre viola a sua dignidade. A segunda mudança fundamental é que os menores são tratados em pé de igualdade com as pessoas cujo uso da razão é habitualmente restrito ou a quem a lei concede proteção igual. Isso amplia o círculo de possíveis vítimas.
E o círculo de possíveis crimes também?
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As infracções penais há muito tratadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, nomeadamente a sedução para representações pornográficas e a aquisição, armazenamento e divulgação de imagens pornográficas de menores ou de pessoas cujo uso da razão é habitualmente restringido, também foram incluídos na nova lei penal geral. Algo totalmente novo no direito canônico é um parágrafo no cânone sobre o abuso, que diz: "Se um membro de um instituto de vida consagrada ou uma sociedade de vida apostólica ou qualquer outro crente que detém uma dignidade ou um cargo ou uma função, um dos as infrações do § 1 ou do cân. 1395 § 3 comete, conforme cân. 1336 §§ 2-4 são punidos, dependendo da gravidade da ofensa, outras penas devem ser adicionadas”. Esses infratores não estavam sob a jurisidição da Congregação para a Doutrina da Fé, que é responsável apenas por abusos por parte de clérigos, mas devem ser tratados pelo ordinário local.
Mas, aparentemente, permanece a formulação de que se tratam de atos "contra o sexto mandamento"?
Sim, foi criticado em várias ocasiões que o código usa a frase “ofensa ao sexto mandamento do Decálogo”. Essa crítica também foi discutida na comissão de especialistas que tratou da revisão do direito penal. Decidiu-se manter essa formulação porque ela está claramente definida na teologia moral e especialmente no catecismo e, portanto, facilita uma aplicação abrangente da norma. Se alguém fosse escolher outras formulações, a aplicação do padrão poderia ser restrita.
Falando de aplicação e abuso: O problema era que o direito canônico não era aplicado de forma consistente. A reforma do texto pode remediar isso?
Você tem razão. Especialmente a aceitação do abuso levou ao fato de que a lei na igreja, e especialmente a lei criminal, foi abordada com uma atitude diferente. Houve erros e violações flagrantes da lei nessa área, que diminuíram com o tempo. É por isso que houve reformas antes da publicação da lei criminal aprimorada, introduzidas pelo papa João Paulo II, pelo papa Bento XVI e pelo papa Francisco em áreas individuais. Agora foram incorporados à reforma. Como eu disse, para que a reforma conduza a melhorias e seja dada uma solução depende acima de tudo da sua aplicação.
A conexão entre o direito e a teologia é de grande importância com relação aos sacramentos. O que mudou?
A lei, inclusive a lei penal, protege os sacramentos, regulamentando o que é necessário para sua celebração válida e permitida. No caso de certas violações, são previstas as penas correspondentes, que passam a ser agrupadas na rubrica “Ofensas aos sacramentos”. Um dos direitos dos fiéis na Igreja é “celebrar o culto segundo as prescrições do próprio rito aprovadas pelos competentes Pastores da Igreja” (cân. 214). Portanto, quando padres ou outros agentes pastorais começam a “costurar” seus próprios rituais, inventar orações, etc., eles estão violando esse direito dos crentes. É, como se diria hoje, um abuso espiritual. Espero sinceramente que o direito penal renovado também seja aplicado nesta área e que possa darr uma solução.
No que diz respeito ao sacramento da confissão, só é objeto do direito penal na medida em que se cometem crimes relacionados com a administração do sacramento. Por exemplo, a violação direta ou indireta do segredo confessional ou a divulgação do conteúdo da confissão através dos meios de comunicação. A confissão, por sua vez, também pode ajudar a corrigir os maus hábitos e, assim, prevenir possíveis infrações criminais. No geral, porém, é um "sacramento esquecido" que precisa ser reavivado com urgência. Infelizmente, o direito penal não se estende a essa área.
Como o Livro VI revisado do CIC pode ajudar a não entrar em conflito com o direito penal e civil estatal - por exemplo, no assunto do segredo de confissão?
O direito penal eclesiástico protege de forma absoluta o sigilo confessional. A violação direta do segredo confessional continua a ser punida com o delito de excomunhão. Na área do direito civil, estão sendo feitos esforços para afrouxar o sigilo confessional ou para estabelecer certas obrigações sobre circunstâncias em que o confessor deve transmitir informações. Nada disto está previsto no direito canônico e permanece a proteção absoluta ao sigilo da confissão.
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— ACI Digital (@acidigital) June 2, 2021