Vaticano, 14 de jul de 2022 às 16:07
Cinquenta e cinco anos atrás, o papa são Paulo VI promulgou a encíclica Humanae vitae, que esclareceu inequivocamente a oposição perene da Igreja ao uso de contraceptivos artificiais, no momento em que as pílulas anticoncepcionais inundavam o mercado. Embora tenha enfrentado resistência de vários teólogos e até de bispos e cardeais da época, a doutrina de Humanae vitae foi reafirmada e desenvolvida por ensinamentos papais subsequentes, desde Evangelium vitae de são João Paulo II até a versão atual do Catecismo da Igreja Católica, recentemente revista pelo papa Francisco, que, no número 2.370 descreve a contracepção como “intrinsecamente má” e cita exatamente Humanae vitae: “qualquer ação que, quer em previsão do ato conjugal, quer durante a sua realização, quer no desenrolar das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação”.
Agora, um instituto da Santa Sé criado pelo grande papa e santo polonês está pressionando por uma “mudança de paradigma” na teologia moral que inclui abandonar a doutrina estabelecida sobre contracepção, mas também sobre eutanásia e sobre formas de concepção artificial. Os defensores dessa “mudança radical” estão instando o papa Francisco a publicar uma encíclica estabelecendo essa ruptura radical com o consenso magisterial pós-Concílio Vaticano II.
Essa “mudança de paradigma” consta de um livro da Pontifícia Academia para a Vida, instituto acadêmico criado por são João Paulo em 1994 para estudar e dar orientações “sobre os principais problemas da biomedicina e do direito, relativos à promoção e defesa da vida, sobretudo na relação direta que têm com a moral cristã e as diretrizes do magistério da Igreja”.
A academia descreve o livro Ética Teológica da Vida: Escritura, Tradição e Desafios Práticos (em tradução livre. O livro só foi publicado em italiano) que, em 528 páginas compila o que foi apresentado num seminário teológico da academia de 2021, como “uma contribuição que elabora uma visão cristã da vida, expondo-a a partir da perspectiva de uma antropologia adequada à mediação cultural da fé no mundo de hoje”.
'Uma mudança radical'
A introdução do texto, escrita pelo arcebispo Vincenzo Paglia, nomeado pelo papa Francisco para presidir a academia em 2016, descreve a “mudança de paradigma” na teologia moral que introduz como “ao mesmo tempo descritiva e conceitual, pois segue um padrão ao mesmo tempo argumentativo e narrativo, teórico e sapiencial, fenomenológica e interpretativa”.
“O texto realiza uma mudança radical, passando, por assim dizer, da esfera ao poliedro”, escreveu o arcebispo Paglia. “Este não é um manual de fórmulas ou catálogo de casos que podem ser retirados do contexto do argumento geral. Pelo contrário, é uma exposição fundamental da visão cristã da vida, ilustrada em seus aspectos existenciais mais relevantes para a natureza dramática da condição humana e abordada na perspectiva de uma antropologia adequada à mediação cultural da fé no mundo de hoje."
Parte dessa mudança das abordagens anteriores da teologia moral está ligada, diz o texto, aos critérios orientadores do “diálogo amplo”, que incorpora não só posições teológicas diferentes, mas também de não-católicos e não-crentes.
Mesmo assim, aparentemente não foram consultados vários membros ativos da Pontifícia Academia para a Vida na produção do documento.
“Como membro do PAV: o livro não é uma declaração oficial, mas os registros do seminário em que 20 pessoas fizeram suas declarações pessoais”, disse no Twitter Elena Postigo, bioeticista espanhola. “Muitos membros não sabiam disso e estão perplexos.”
O arcebispo Paglia também observa que o texto foi redigido no 25º aniversário da promulgação da Evangelium vitae, a encíclica de João Paulo II que reafirmou a oposição da Igreja à contracepção e mostrou a conexão com o aborto. Isso não foi coincidência, escreveu Paglia, mas foi feito “com uma intenção precisa”.
“A vitalidade dessa encíclica e seu precioso legado, para ser plenamente honrada, exigia que não nos limitássemos a comentá-la, mas que decifrássemos seu significado no marco do magistério cristão que traz seu ensinamento à vida na Igreja de hoje”, disse dom Paglia na introdução. “Esta tarefa é sempre realizada em relação com a Palavra viva de Deus, que é em última instância a regra vinculante, e com as novas questões colocadas pela condição do sujeito humano, que é o interlocutor designado da sua sabedoria. Assim a Tradição da fé nasce desenvolve-se e vive”.
Muitos teólogos acharão duvidosa a afirmação de que a posição do último documento da PAL é um desenvolvimento genuíno de Evangelium vitae. Ou, na verdade, de todo o corpo de ensino magistral dos papas sobre a contracepção da Humanae vitae em diante. A imprensa italiana afirma que o livro rompe significativamente com o ensino estabelecido da Igreja sobre contracepção. Uma vez que existem “condições e circunstâncias práticas que tornariam a escolha de gerar irresponsável”, diz uma parte do texto, um casal pode decidir recorrer “com uma escolha sábia” a “todas as técnicas possíveis” para evitar um nascimento, “obviamente excluindo as abortivas”.
De qualquer ponto de vista, isto não é um outro modo de dizer ou um desenvolvimento da mesma realidade moral dos ensinamentos de são Paulo VI e seus sucessores, mas uma contradição da verdade moral que os papas anteriores descreveram e ensinaram com autoridade.
Em entrevista à revista dos jesuítas dos EUA America, o padre jesuíta Carol Casalone, membro da Pontifícia Academia da Vida desde 2017 e redator do texto, descreveu o seminário e o livro resultante como um esforço para aplicar “a visão orgânica” da abordagem moral do papa Francisco, ele também jesuíta, às questões de bioética.
“Se se juntar tudo o que Francisco disse, ver-se-á que há acentuações muito novas, por exemplo, em relação à consciência versus a norma [e] discernimento ético (em sua conexão com o discernimento espiritual), e isso é ao mesmo tempo novo e em continuidade com a tradição. É isso que estamos tentando dizer.”
“Como teólogos morais”, continuou o padre Casalone, “devemos nos perguntar por que essas questões conturbadas continuam sendo motivo de inquietação e até desolação entre os crentes. Percebemos que para chegar a uma melhor compreensão dessas questões tínhamos que abrir um diálogo; e nessa abordagem dialógica devemos levar em consideração o que o povo de Deus entende e sente sobre eles”.
Essa linha de raciocínio tem sido usada para sugerir que o ensinamento magistral da Igreja sobre questões sexuais, particularmente sobre contracepção, é inautêntico e não vinculativo. Alguns, por exemplo, alegam em favor desse argumento pesquisas que indicam que 98% das mulheres católicas americanas em idade reprodutiva usaram em algum momento métodos artificiais de contracepção.
Em lugares que não estavam nas garras da revolução sexual quando a Humanae vitae foi publicada, a taxa de católicos que aderem à doutrina oficial da Igreja sobre contracepção é exponencialmente maior do que nos EUA e na Europa.
Por exemplo, uma pesquisa de atitudes católicas globais de 2014 conduzida pela Univision descobriu que os católicos em Uganda e no Congo tinham taxas muito mais mais baixas de apoio ao uso de contraceptivos do que americanos e europeus. Uma pesquisa do Pew do mesmo ano descobriu que a maioria, em países africanos como Nigéria e Gana, se opunha moralmente à contracepção, contra apenas 7% nos EUA.
Refletir sobre essa distinção significativa entre as crenças e práticas dos católicos parece importante para uma compreensão não-ocidental da Igreja, que o papa atual sempre enfatiza. Em sua crítica extremamente favorável, o jesuíta Ferrer descreveu o seminário e a publicação do livro da Academia para a Vida como uma “atividade principalmente europeia”.
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Outra fonte para o entendimento e intenções da academia para o novo documento veio da página oficial do Pontifícia Academia para a Vida no Twitter, que promoveu ativamente o documento e uma cobertura midiática favorável, mas também respondeu a seus críticos.
Em resposta a um comentário de que o documento promovia a dissidência do ensino magisterial, por exemplo, a conta da academia respondeu: “Cuidado: o que é dissidência hoje, pode mudar. Não é relativismo, é a dinâmica da compreensão dos fenômenos e da ciência: o Sol não gira em torno da Terra. Caso contrário, não haveria progresso e tudo ficaria parado. Até na teologia. Pense sobre isso.”
A comparação do ensino da Igreja sobre contracepção com a teoria do geocentrismo não é novidade. Em 1964, depois que o Papa Paulo VI tirou a questão da contracepção artificial das discussões do Concílio Vaticano II, o cardeal belga Leo Joseph Suenens fez um discurso crítico da mudança, afirmando: “Eu imploro, meus irmãos bispos, evitemos um novo caso Galileu. Um é suficiente para a Igreja”. Suenens também se opôs à promulgação da Humanae vitae por Paulo VI quatro anos depois.
Prelúdio de uma encíclica?
A pressão da Pontificia Academia para a Vida para recomeçar os debates e a dissidência da época da Humanae vitae ocorre em um momento de grande divisão na Igreja, que o papa Francisco atribui à falha em “aceitar o [Concílio Vaticano II]”. Na mesma entrevista em que disse isso, Francisco descreveu uma espécie de tendência “restauracionista” que “chegou a amordaçar o Concílio”.
Em sua carta apostólica sobre a formação litúrgica Desiderio desideravi, publicada depois, o papa escreveu que “não vê como é possível dizer que se reconhece a validade do Concílio – embora me surpreenda que um católico possa presumir fazer isso — e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica” nascida da constituição pastoral do concílio sobre a liturgia e consagrada nos livros litúrgicos posteriores promulgados por Paulo VI e João Paulo II.
É de se perguntar se esse mesmo entendimento sobre a recepção do Vaticano II e as advertências sobre os “restauracionistas” se aplicam a quem rejeita igualmente os ensinamentos morais sobre contracepção emitidos por esses mesmos papas.
Em sua introdução ao novo livro, dom Paglia qualificou a obra como “um serviço ao magistério” que fornece “argumento para o magistério eclesiástico” e um “estímulo à busca de uma convergência pastoral do compromisso teológico, sem querer limitar de qualquer modo o legítimo confronto de opiniões”.
Na verdade, alguns estão defendendo ativamente que o documento servirá de estímulo para que o papa Francisco autorize as mudanças por meio de uma encíclica. Na conclusão de sua resenha para La Civiltà Cattolica, jornal internacional jesuíta que passa pelo crivo da Santa Sé antes de ser publicado, o padre Ferrer sugeriu que o livro da academia poderia ajudar a contribuir para uma “futura intervenção magisterial que torne o ensinamento da Igreja sobre a ética da vida cada vez mais profundo e adequado”. Ele até levantou a hipótese de que o papa Francisco poderia em breve emitir uma exortação encíclica ou apostólica sobre bioética, “que ele talvez pudesse intitular Gaudium vitae”, que significa “Alegria da vida” em latim.
Um artigo de Gerald O'Connell para a revista America, intitulado “Controle de natalidade, fertilização in vitro, eutanásia: o Vaticano incentivou o diálogo sobre questões polarizadoras da vida. Vem aí uma encíclica papal?”, pôs mais lenha nessa fogueira.
“Resta saber se o papa Francisco publicará uma exortação ou encíclica sobre teologia moral que aborde esses e outros tópicos urgentes em nossa história humana”, concluiu o vaticanista da revista jesuíta. A conta de Twitter da Pontifícia Academia para a Vida retuitou o artigo várias vezes, incluindo um caso em que a apimentada especulação sobre uma encíclica foi grifada.
É provável que o Papa Francisco dê esse passo? Como o arcebispo Paglia fez questão de deixar claro, o papa foi “informado desde o início sobre esta iniciativa e a publicação das atas” e aparentemente incentivou a discussão. E como o teólogo Larry Chapp argumentou apenas um mês atrás, o papa parece “favoravelmente disposto” ao tipo de teologia moral “proporcionalista” defendida no documento da academia.
No entanto, ao mesmo tempo, apesar de sua disposição de permitir conversas sobre tópicos controversos anteriormente considerados resolvidos, o próprio papa muitas vezes não está disposto a cruzar essas linhas doutrinárias, o que significa que as feridas que estão sendo reabertas provavelmente se estenderão ao próximo pontificado.
Uma coisa é clara. Apesar de mais de 50 anos de ensinamentos papais claros e consistentes sobre a inadmissibilidade moral da contracepção artificial, alguns atores da Igreja – sob o pretexto de desenvolver a doutrina – pretendem nos levar de volta às velhas feridas e guerras da década de 1960.
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— ACI Digital (@acidigital) June 29, 2022