O cardeal Gerhard Müller confirmou que o dicastério para a Doutrina da Fé tinha um arquivo com questões teológicas preocupantes sobre o arcebispo argentino Victor Manuel Fernández, que o papa Francisco indicou como chefe do dicastério em 1° de julho.

 

O arquivo, também confirmado por uma segunda fonte importante da Igreja, data de quando o cardeal Jorge Bergoglio de Buenos Aires nomeou o então padre Fernández como reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina em 2009.

 

Em comentários feitos na última quarta (5) ao jornal National Catholic Register, da EWTN, grupo de comunicação católica a que pertence ACI Digital, o arcebispo Fernández disse que as preocupações da Santa Sé relacionadas a “acusações” baseadas em seus escritos “não eram de grande peso”, e que, com uma troca de cartas com funcionários da Santa Sé, nas quais “esclareceu” seu “verdadeiro pensamento, tudo foi esclarecido de forma serena”.

 

O papa Francisco indicou o arcebispo Fernández em 1° de julho, como prefeito do dicastério para a Doutrina da Fé. Fernández é próximo do papa desde os tempos em que Bergoglio era arcebispo de Buenos Aires. Tido como ghost-writer do papa em suas encíclicas, acredita-se que ele seja o inspirador dos trechos mais controversos da exortação apostólica Amoris Laetitia, como o que parece autorizar a comunhão para pessoas divorciadas em segunda união. A posse de Fernández no cargo foi antecipada de setembro para agosto.

 

O cardeal Müller, que foi prefeito do dicastério entre 2012 e 2017, antes chamado de congregação para a Doutrina da Fé, contou ao Register em 4 de julho que o arquivo tinha sido elaborado no final dos anos 2000 pelo arcebispo Jean-Louis Bruguès, então secretário da congregação para a Educação Católica (atual dicastério para a Cultura e a Educação), após o cardeal Bergoglio propor o então padre Fernández como reitor da universidade católica argentina.

O objetivo do arquivo era fornecer à congregação para a Doutrina da Fé informações suficientes para que ele pudesse conceder ou reter uma declaração de nihil obstat (nada impede), um requisito para qualquer novo reitor de uma universidade católica.

“A Congregação para a Doutrina da Fé está sempre envolvida em dar a última palavra”, disse o cardeal Müller. “A Congregação para a Educação Católica deve, portanto, pedir o nihil obstat da CDF, ao dar o sim oficial, para que a Igreja tenha absoluta certeza de que não há nada de problemático com tal nomeação”.

Devido ao conteúdo do arquivo, a congregação para a Doutrina da Fé, então chefiada pelo cardeal William Levada, adiou a emissão do nihil obstat até que as preocupações fossem resolvidas.

O padre Fernández, portanto, não pôde prestar juramento até maio de 2011, dois anos e meio após sua nomeação não oficial, devido às preocupações constantes levantadas no arquivo sobre algumas de suas opiniões teológicas.

O cardeal Müller enfatizou ao Register que, apesar da existência do arquivo, é possível que o padre Fernández tenha enviado à Congregação para a Doutrina da Fé uma carta “comprometendo-se a melhorar”, acrescentando que esta é “sempre a tática para essas coisas, para dirimir qualquer dúvida”.

O arcebispo Fernández parece ter adotado essa abordagem. Ele disse ao Register que, após sua nomeação como reitor em 2009, alguns artigos que havia escrito “chegaram a Roma” e “a partir desse momento começou uma troca de cartas nas quais esclareci meu verdadeiro pensamento e tudo se resolveu com serenidade”.

“Demorou mais de um ano no ritmo de trabalho romano, mas quero deixar claro que as acusações não tiveram grande peso”, disse. “Por exemplo, questionaram meia página que escrevi em um pequeno jornal da minha cidade, no interior da Argentina. Ali expliquei que nós, padres, não podíamos abençoar uniões homossexuais porque tínhamos uma certa concepção de casamento. Mas, no entanto, não julgamos ou condenamos as pessoas”.

“Meus acusadores disseram que eu não havia explicado suficientemente o entendimento da Igreja sobre o casamento”, continuou o arcebispo Fernández. “Acredite ou não, isso tomou vários meses do meu tempo.”

Ele acrescentou que não foi considerado “necessário ou apropriado” para ele publicar um artigo corretivo sobre o assunto porque explicou que “não era um especialista no assunto”. Em geral, disse ele, “os teólogos tentam escrever artigos sobre assuntos nos quais fomos capazes de nos especializar”.

Em entrevista de 3 de julho à rádio argentina Perfil, o arcebispo Fernández refletiu sobre a experiência, lembrando que o dicastério para a Doutrina da Fé costumava ser o Santo Ofício da Inquisição e dizendo que “até me investigou”. Ele disse que o processo “foi realmente muito chato” e que “passou meses em bobagens” tendo que se justificar.

O arcebispo Fernández continua a dar opinar sobre bênção de casais homossexuais. Ele disse ao site católico espanhol Infovaticana em 5 de julho que nada se compara ao “casamento” em “sentido estrito” entre um homem e uma mulher, e que “o maior cuidado a ser tomado é evitar ritos ou bênçãos que possam alimentar essa confusão”. Mas acrescentou: “Agora, se uma bênção é dada de forma que não cause essa confusão, ela terá que ser examinada e verificada. Como você verá, há um ponto em que deixamos uma discussão puramente teológica e passamos a uma questão mais prudencial e disciplinar”.

Ele também disse na entrevista que embora a doutrina da Igreja não possa ser alterada, “nosso entendimento” da doutrina pode mudar, “e que de fato ela mudou e continuará a mudar”.

O arcebispo Fernández disse que as preocupações da Santa Sé foram removidas não por causa de alguma pressão do cardeal Bergoglio. “Ele estava confiante de que, se eu respondesse às perguntas que me foram enviadas, tudo se resolveria mais cedo ou mais tarde.”

No entanto, parece que houve repercussões para o arcebispo Bruguès. O papa Francisco nunca fez do bispo francês um cardeal, apesar de ele ter servido como arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana de 2012 a 2018, uma posição de prestígio que foi liderada por um cardeal desde o século XVIII.

Dois meses após sua eleição como papa, o papa Francisco elevou o padre Fernández a arcebispo, mas sem informar a congregação para a Doutrina da Fé, então chefiada pelo cardeal Müller. Embora os papas não tenham obrigação de pedir à congregação para a Doutrina da Fé um nihil obstat antes de nomear um bispo, o cardeal Müller disse que eles geralmente o fazem para ter certeza de que o candidato é doutrinariamente sólido.

Em sua carta ao arcebispo Fernández sobre sua nomeação, o papa Francisco pareceu sugerir que o dicastério para a Doutrina da Fé sob o arcebispo Fernández não examinará mais a ortodoxia dos teólogos no mesmo grau que o próprio arcebispo Fernández foi submetido.

“O Dicastério a que Vossa Excelência presidirá, noutros tempos, chegou a usar métodos imorais”, escreveu Francisco. “Eram tempos em que, em vez de promover o conhecimento teológico, se perseguiam possíveis erros doutrinais. O que espero de si é certamente algo muito diferente”, escreveu o papa.

Em uma declaração de 1º de julho sobre sua nomeação, o arcebispo Fernández disse que o dicastério no passado “foi o terror de muitos, porque se dedicava a denunciar erros, perseguir hereges, controlar tudo, até torturar e matar”.

“Nem tudo foi dessa maneira, mas isso faz parte da verdade”, continuou ele. “Francisco me escreveu que a melhor maneira de cuidar da doutrina da fé é crescer em sua compreensão, porque 'este crescimento harmonioso preservará a doutrina cristã mais eficazmente do que qualquer mecanismo de controle', especialmente se soubermos apresentar um Deus que ama, que liberta, que eleva, que capacita as pessoas”.

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