23 de out de 2023 às 09:08
O Sínodo da Sinodalidade convocado pelo papa Francisco acirrou o embate entre correntes internas na Igreja que se digladiam desde o Concílio Vaticano II. Acusações de manipulação em nome de uma agenda mundana, por um lado, e pressão por ordenação de mulheres, fim do celibato sacerdotal e alteração da moral sexual católica para aceitar a homossexualidade vieram à tona logo no início da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, que pela primeira vez reúne não só bispos, mas até leigos com direito a voto.
“Certamente não podemos ignorar o mundo, e por isso é errado entrincheirar-nos no passado, mas nunca devemos esquecer que estamos no mundo e não somos do mundo”, disse o cardeal Agostino Marchetto à ACI Digital. “Não podemos subverter a Tradição doutrinal e moral da Igreja para agradar ao mundo. Olhamos para a Cruz de Cristo, gloriosa sim, mas ainda assim, Cruz”.
Marchetto, criado cardeal pelo papa Francisco no último 30 de setembro, é, segundo o próprio papa, “o melhor intérprete do Concílio Vaticano II”. Para o cardeal, “é necessário reforçar o diálogo interno na Igreja entre as diversas posições, entre aqueles que exaltam a fidelidade exclusiva à Tradição e aqueles que, ao contrário, pretendem adaptar-se ao mundo”.
ACI Digital: Alguns veem o Sínodo da Sinodalidade como uma oportunidade para finalmente aplicar as decisões do Concílio Vaticano II, especialmente sobre a colegialidade na Igreja, que teriam ficado suspensas durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Como o senhor vê o papel do sínodo à luz da hermenêutica do Concílio Vaticano II em continuidade com a tradição da Igreja?
Marchetto: O julgamento sobre a suspensão do exercício do ministério colegial na Igreja é facilmente desqualificado se pensarmos em todos os sínodos dos bispos celebrados durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. No famoso discurso de 22 de dezembro de 2005 à Cúria Romana, o papa Bento XVI disse que de fato o Concílio Vaticano II representava continuidade, mas não ruptura, com a tradição católica. E todos os papas conciliares e pós-conciliares fazem eco. Sobre os dois polos continuidade e descontinuidade, prefiro começar mais longe, observando que a primeira alternativa, colocada pelo papa Bento XVI, é a ruptura, na descontinuidade, ou a reforma-renovação, na continuidade da Igreja sujeito único. É precisamente nesta combinação de continuidade e descontinuidade, mas não ruptura, a diferentes níveis que consiste a verdadeira natureza de uma reforma autêntica. Continuidade refere-se então à Tradição com letra maiúscula que, com a Sagrada Escritura e o Magistério, formam o "gênio" do catolicismo, como disse [o teólogo Oscar] Cullmann, um protestante. A fidelidade neste sentido é fonte de uma fecundidade que se renova, tendo presentes os sinais dos tempos, o hoje de Deus, o tempo em que vivemos, o "Sitz im Leben", que não é uma nova revelação. Vejo, portanto, o sínodo em curso nesta perspectiva.
ACI Digital: Importantes personalidades da Igreja participantes no sínodo defenderam a ideia de uma moral menos ligada às leis e à verdade e mais pastoral, com acompanhamento e discernimento de cada caso particular. Também é comum ouvir a ideia de que as ciências humanas têm uma contribuição mais importante a dar para a compreensão da sexualidade humana do que, por exemplo, a teologia clássica, ou simplesmente a teologia. Essas ideias fazem eco a uma interpretação do Vaticano II segundo a qual ali foi superada a hegemonia da “teologia”, entendida como isolamento da dimensão da doutrina e do seu conceitual abstrato, bem como a do “juridicismo” em moral. Essa posição é forte entre os participantes do sínodo?
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Marchetto: Creio que quem me lê está convencido da importância e do valor doutrinal, espiritual e pastoral do Concílio Vaticano II, tanto que pode dizer que é um “ícone” da própria Igreja Católica, ou seja, daquilo que especialmente o catolicismo é constitucionalmente: comunhão. Também com o passado, com as origens, identidade na evolução, fidelidade na renovação. Aquilo que foi uma posição extrema no Concílio Vaticano II, na sua chamada "maioria" cada vez mais ávida por impor o seu próprio ponto de vista, surda aos “chamados” e ao trabalho de “costura” de Paulo VI, conseguiu, depois do concílio, monopolizar, pelo menos durante um certo tempo, a interpretação do "acontecimento", rejeitando qualquer interpretação diferente como anticonciliar. Mas para responder corretamente, voltemos ao pensamento inicial, aquele que considera a Igreja, como qualquer organismo vivo, em contínuo crescimento, interna e externamente, permanecendo ela mesma. Ora, tal desenvolvimento certamente implica múltiplos problemas, que dizem respeito à doutrina, ao culto, à moral, à disciplina e ao apostolado. Geralmente – como sabemos – a sua solução é fornecida pelo magistério ordinário (ensino) dos Pastores, assistidos por teólogos unidos a todo o Povo de Deus, em comunhão com eles. Às vezes, porém, a complexidade do assunto ou a gravidade das circunstâncias históricas sugerem intervenções extraordinárias. Entre estes devem ser considerados os concílios, que promovem, na fidelidade à tradição, o desenvolvimento doutrinal, as reformas litúrgicas e disciplinares e as escolhas apostólicas, tendo também em consideração as necessidades dos tempos (os famosos "sinais dos tempos", que não constituem uma nova Revelação). Os sínodos aparecem, nesta perspectiva, como os marcos do caminho da Igreja através da história. Pois bem, agora surge a ideia de que a sinodalidade não é apenas a expressão de um acontecimento episódico da vida da Igreja, mas permeia toda ela, transformando-a em sinodalidade, pedindo que o Povo de Deus “caminhe junto”, em consenso sinodal, como expressão do “católico”, para nós a “encarnação” da combinação entre Tradição e renovação como foi no Grande Sínodo Vaticano.
A alma da verdade da oportunidade e da importância do consenso continua a ser a forma correta de proceder conciliar e sinodalmente. A sua ausência ou deficiência é, na verdade, algo que se paga caro, como ensina a história. De fato, o exemplo de muitos concílios importantes - desde o de Calcedónia ao Vaticano II, passando pelo Concílio de Trento - que laboriosamente trabalharam para chegar a consensos é um testemunho da sua grande importância e do seu carácter de sinal, especialmente no sentido de que a verdade não é decidida através do voto, mas atestada através do consenso. Não creio que haja muitos que neste sínodo aderem conscientemente a uma visão tão distorcida do Grande Sínodo, como sempre chamei o Concílio Vaticano II, ou deste em andamento. Se o Espírito Santo falar, fico tranquilo, até porque é o papa Francisco, o sucessor de Pedro, quem detém as chaves.
ACI Digital: E qual é o caminho para chegar ao consenso católico?
Marchetto: Conhecendo a riqueza e as contradições da cultura moderna, as aspirações, as esperanças, as alegrias e as tristezas, as desilusões e as dificuldades do homem contemporâneo, Paulo VI, seguindo o impulso interior da caridade, procurou mergulhar nelas. Foi um evangelista assíduo e promotor do diálogo com todos os homens de boa vontade: com os cristãos separados, com os não-cristãos, com os não-crentes. “A Igreja deve dialogar com o mundo em que vive; a Igreja torna-se palavra; a Igreja torna-se mensagem; a Igreja se torna uma conversa”, testemunhou ele. Posteriormente afirmou expressamente: “Cabe especialmente a nós, pastores da Igreja, procurar com audácia e sabedoria, em plena fidelidade ao seu conteúdo, os modos mais adequados e eficazes de comunicar a mensagem evangélica aos homens do nosso tempo”. Este é o diálogo da salvação, que encontra a sua origem transcendente na própria intenção de Deus e tem como características a clareza, a mansidão, a confiança e a prudência. “No diálogo, assim conduzido, consegue-se a união da verdade com a caridade, da inteligência com o amor”. Paulo VI afirmou com força que o diálogo deve permanecer imune ao relativismo, que mina a doutrina imutável da fé e da moral: “A preocupação de aproximar-se dos irmãos não deve traduzir-se numa atenuação, numa diminuição da verdade”; “o nosso diálogo não pode ser uma fraqueza em comparação com o compromisso com a nossa fé”; “Não podemos comprometer os princípios teóricos e práticos da nossa profissão cristã”. Quem nos lê percebe todos os vínculos que aqui existem, falando de sinodalidade, com o Vaticano II, com o seu andamento, com o primado, com a colegialidade, com a busca do diálogo dentro da Igreja Católica, com o que proporciona consensos constantes e fervorosos, com o desejo continuamente renovado e concretizado de que a renovação e a Tradição dialoguem entre si e haja uma ligação entre o antigo e o novo, entre a sinodalidade, o proceder conjunto, a colegialidade e o primado [do papa]. O Vaticano II viu-se sancionando o desenvolvimento teológico ocorrido, traduzindo-o em ação pastoral, em resposta às necessidades dos tempos, na continuidade com a doutrina. E agora este empreendimento sinodal, que tentei apresentar no seu contexto.
ACI Digital: O que podemos esperar do sínodo no “caminho do consenso e do diálogo para combinar tradição e renovação”, como já definiu o Concílio Vaticano II?
Marchetto: O Concílio não foi uma ruptura na história, mas uma renovação na continuidade da Igreja Católica única. Todos os papas aceitaram esta interpretação. Nós, católicos, porém, como muitas vezes parece, estamos facilmente armados uns contra os outros a este respeito, e isso não é certo, não é cristão. Em vez disso, é necessário reforçar o diálogo interno na Igreja entre as diversas posições, entre aqueles que exaltam a fidelidade exclusiva à Tradição e aqueles que, pelo contrário, pretendem adaptar-se ao mundo. Certamente não podemos ignorar o mundo – e por isso é errado entrincheirar-nos no passado – mas nunca devemos esquecer que estamos no mundo e não somos do mundo. Certamente não podemos subverter a Tradição doutrinal e moral da Igreja para agradar ao mundo. Olhamos para a Cruz de Cristo, gloriosa sim, mas ainda assim uma Cruz.