25 de mar de 2024 às 14:06
Na Quinta-feira Santa (28), às 23h, sai da capela Nossa Senhora das Dores, da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei (MG), a procissão das endoenças, também conhecida como procissão do fogaréu, que recorda a prisão de Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Trata-se de uma tradição trazida de Portugal ao Brasil no período colonial, mas que deixou de acontecer em São João del-Rei durante muitos anos, até ser retomada em 2018.
Durante a procissão, as luzes do centro histórico de São João del-Rei são apagadas e as ruas ficam iluminadas pelas tochas carregadas pelos farricocos, homens que seguem descalços, vestidos com uma túnica escura, um capuz cobrindo a cabeça e apenas com duas aberturas para os olhos, representando os soldados romanos. Eles seguem até a igreja de São Francisco e depois retornam para a capela da Santa Casa de Misericórdia. “Eles vão levando uma cruz e depois retornam trazendo o Cristo preso”, contou à ACI Digital Thiago Serafico Soares Silva, um dos organizadores da procissão.
Segundo ele, a procissão se chama “endoenças” porque esta palavra “significa indulgência”, então, remete “à penitência e ao perdão”. Mas, também ficou conhecida como procissão do fogaréu por causa das tochas levadas pelos farricocos.
A tradição “foi retomada em 2018, após ver em arquivos históricos que isso acontecia antigamente”, disse Silva. Então, “resgatamos mais um momento de espiritualidade, de oração e reflexão” e isso “faz com que as pessoas reflitam ainda mais e preparem o coração para os outros dias da Semana Santa, para celebrar a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus”, disse.
No artigo “Irmandade da Misericórdia de São João del-Rei e a procissão de endoenças”, publicado em 2021 na revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, a cientista social Suely Campos Franco, doutora em Estudos Portugueses, Brasileiros e Africanos de Língua Portuguesa pela Universidade Sorbonne Nouvelle, retomou os aspectos históricos dessa tradição.
Franco recorda desde o surgimento da primeira Santa Casa, no século XV, em Portugal, por “iniciativa da rainha viúva de D. João II Dona Leonor de Lencastre”. Segundo ela, “ao longo dos séculos projeto da Misericórdia de Lisboa estendeu-se a todo território português” e, “na formação das vilas e cidades mais importantes de Portugal e do vasto território ultramarino criava-se uma Câmara Municipal e uma Misericórdia”. A criação da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei remonta a 1783.
“As festas e celebrações religiosas realizadas ao longo do ano pela Irmandade da Misericórdia de São João del-Rei em sua Capela cumpriam as determinações de seus estatutos conforme modelo do Rio de Janeiro e de Lisboa”, diz Franco. Entre outras festas religiosas, “a Irmandade da Santa Casa realizava a procissão das Endoenças, na Semana Santa”.
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A pesquisadora destaca que esta procissão “era praticada na Misericórdia de Lisboa desde a sua fundação”. “Esta atividade piedosa na Quinta-feira Santa, consagrada a rememorar a marcha dos soldados romanos do Pretório até o Horto das Oliveiras, a fim de efetuarem a prisão de Jesus Cristo é, desde sua criação, um exercício de reconhecimento dos pecados e de penitência dos fiéis cristãos”, diz.
Franco conta que esse costume foi introduzido e disseminado no Brasil a partir da Irmandade da Misericórdia de Salvador, fundada em 1549. Ela destaca que além das tochas carregadas pelos farricocos, “alguns destes personagens simbólicos levam também as matracas que ecoam no silêncio da noite, chamando os fiéis à ‘desobriga’ ou confissão dos pecados”.
“Os vários documentos depositados no Arquivo da Irmandade da Misericórdia de São João del-Rei e outros arquivos de Irmandades e Confrarias locais, revelam que essa procissão existiu até o período bem avançado do século XIX, ainda que não saibamos dela os detalhes da sua organização durante o período em que integravam as celebrações para-litúrgicas”, diz a pesquisadora.
Esse costume “foi recuperado em 2018 a partir do conhecimento de sua prática através dos documentos disponíveis e pesquisas recentemente realizadas”, diz Franco. Desde então, acrescenta, “foram reunidos diversos esforços para as despesas abrangiam desde a indumentária dos fogaréus, paramentos litúrgicos e ornamentos de decoração até a música da procissão. Estudou-se o itinerário, prepararam-se as alfaias e o cortejo contou com grande assistência já na primeira edição”.
A pesquisadora conta que, “no ano seguinte [2019] a Irmandade encomendou ao escultor sacro uma imagem de Jesus representando a sua prisão e na segunda edição o andor foi incorporado à procissão e ao acervo da Capela da Santa Casa”.
Para Franco, “a integração da figura dos fogaréus incorporada à procissão da Quinta-feira Santa tem, na atualidade, um caráter especialmente simbólico, fazendo relembrar a sentido penitencial deste ato ritualístico”. Mas, acrescenta, “tem também o intento de ver renovada e ‘ressuscitada’ uma instituição que teve importante presença e atuação na vida de São João del-Rei há pelo menos quase três séculos” e tem “o objetivo de promover ainda mais a Semana Santa de São João del-Rei integrando atos devocionais aos atos litúrgicos”.
Desde que a tradição foi retomada, disse à ACI Digital Thiago Serafico Soares Silva, “temos um público muito esperado e muita gente de fora vem acompanhar essa procissão”.