Os brasileiros vão às urnas em outubro para escolher prefeitos e vice-prefeitos, e vereadores. Em agosto começa a propaganda eleitoral, quando os eleitores passarão a ter mais contato com as propostas dos candidatos. Nesse contexto, especialistas consideram que a Doutrina Social da Igreja pode dar uma grande contribuição tanto para os políticos quanto para os eleitores.

O primeiro turno das eleições municipais acontece em todo o Brasil, exceto em Brasília (DF), no dia 6 de outubro. O próximo dia 5 de agosto é a data limite para a realização das convenções partidárias para deliberar sobre coligações e escolha de candidatos, os quais devem ter os nomes registrados na Justiça Eleitoral até 15 de agosto. No dia seguinte, 16, começam as propagandas eleitorais gerais e, no dia 30 de agosto, o horário eleitoral gratuito em TV e rádio. Nos municípios onde for necessário, o segundo turno acontece em 30 de outubro.

“Acho que a Doutrina Social da Igreja tem muito a contribuir, não só porque afirma a necessidade, o valor da democracia, mas pela defesa intransigente da dignidade do homem nas situações concretas”, disse à ACI Digital a professora de Doutrina Social da Igreja (DSI), Marli Pirozelli Silva, formada em História, com mestrado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em DSI.

Para ela, “a primeira coisa é que a Doutrina Social precisa ser conhecida”. A professora universitária disse que a Doutrina Social da Igreja é algo “pouco conhecido” e que “permanece como uma formação para o clero”, quando, “na verdade”, é “algo que diz respeito aos leigos, a todas as pessoas”.

“É muito importante a divulgação da Doutrina Social, é algo que tenho feito como uma missão, porque acredito que é uma riqueza fantástica que temos nas mãos”, acrescentou.

A juíza de direito da terceira vara civil de Maracanaú (CE), Regma Janebro, consagrada de aliança da Comunidade Shalom, considera que o conhecimento da DSI passa também pela evangelização. “Que as pessoas evangelizadas possam entender a nossa fé, estudar a nossa fé, saber o grande valor da Doutrina Social da Igreja. E, mais do que isso, a Igreja tem resposta para tudo, para ideologia de gênero, para inteligência artificial, para aborto, para eutanásia, para tudo. Se nós estudarmos a doutrina da Igreja, a gente responde tudo. Isso é divino”, disse a juíza, que foi coordenadora da Escola de Doutrina Social da Igreja na Plataforma do Instituto Parresia, da Comunidade Shalom.

O que é a Doutrina Social da Igreja

A Doutrina Social da Igreja “é um conjunto de princípios para reflexão e orientações para julgar as situações concretas econômicas, políticas, culturais, morais e orientações para ação”, disse à ACI Digital Marli Pirozelli. “Não é um corpo teórico fechado, não defende certo projeto político ou econômico”. Ao contrário, disse, “é um convite sempre para que cada pessoa se coloque nesse jogo” e, “a partir desses critérios que o cristianismo nos dá, para que a gente possa julgar e agir na realidade. Mas, conforme o Evangelho”.

A juíza Regma Janebro disse que em sua “maneira de perceber a Doutrina Social, ela é uma resposta do Evangelho para o drama social do momento”. “Ela é sempre atual, porque é uma resposta do Evangelho, da vivência de Jesus quando se encarnou, para o drama que vivemos atualmente”. “Então”, disse, “o início da Doutrina Social é a vida de Jesus, e ela vai se atualizando, a Igreja vai tratando de atualizar diante dos dramas do momento”.

O início da Doutrina Social da Igreja como tal foi a publicação da encíclica Rerum Novarum, do papa Leão XIII, em 1891. “E qual era o drama daquele momento? Era a Revolução Industrial, a questão do trabalhador, a exploração do trabalhador. Ali, com a Rerum Novarum, foram dadas respostas aos dramas sociais daquele momento, foi se falando da propriedade privada, foi se rejeitando a luta de classes, foi se iluminando, dando sentido e explicando que não se trata de luta de classes, foi falado do respeito dos mais fracos, da dignidade dos pobres”, disse.

Marli Pirozelli disse que a Rerum Novarum “foi a primeira vez que a Igreja se pronunciou de uma forma bastante veemente sobre uma realidade de desigualdade”. “Estávamos no início da industrialização e uma classe operária se formando, sujeita a condições terríveis de trabalho, de vida”, disse.

Pirozelli recordou que “o século XIX é recheado de movimentos de católicos entre operários, entre universitários”. Segundo ela, havia nessa época, “principalmente na França e na Alemanha, uma agitação muito grande de católicos que buscam dar resposta a situações que percebem como injusta, seja na questão econômica, na participação social, pedindo legislação, e também no campo político”.

Apesar do marco da Rerum Novarum, disse a juíza Janebro, “a Igreja sempre deu respostas aos dramas sociais”.

A professora Marli Pirozelli ressaltou que a DSI “é algo que retoma toda a tradição da Igreja que se debruça diante de uma questão concreta”, que na época da Rerum Novarum era “a situação de penúria dos operários”.

Ao longo dos anos, vários documentos foram sendo publicados por diferentes papas e se somando à Doutrina Social da Igreja, por exemplo, Quadragesimo Anno, de Pio XI, Pacem in Terris, de João XXIII, Populorum Progressio, de Paulo VI, Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus, de João Paulo II, Caritas in Veritate, de Bento XVI, Evangelli gaudium, Laudato Si, Fratelli tutti, Laudate Deum, do papa Francisco.

“Todo esse corpo de documentos e outros tantos, foram sendo organizados e foi sendo formado um organismo mesmo, um corpo doutrinal. Esse corpo doutrinal sempre aponta para o bem e para o desenvolvimento da pessoa humana e da sociedade onde ela está. A pessoa humana vista como um todo, o homem todo e todo homem”, disse Regma Janebro.

Os princípios da Doutrina Social da Igreja

“A Doutrina Social da Igreja centra na pessoa humana” e tem como “princípio cardeal” a “caridade”, disse Regma Janebro. “Mas, passa inicialmente pela pessoa humana, vista como imagem e semelhança de Deus, única e irrepetível e voltada para a transcendência. Essa centralidade da pessoa humana e a pessoa humana vista deste modo, e não como um organismo que serve ao contexto social ou como um indivíduo que consome, a pessoa humana vista de uma maneira antropológica correta, ou seja, imagem e semelhança de Deus e imagem e semelhança de Deus trino, o Deus que se relaciona”, acrescentou.

A juíza recordou “uma das mais belas encíclicas sociais”, Caritas in Veritate, publicada em 2009 pelo papa Bento XVI. “É uma encíclica marcante, porque fala a respeito da caridade e da verdade, a caridade que é o grande princípio, o grande farol da Doutrina Social da Igreja, e a verdade que é o grande valor da Doutrina Social da Igreja”, disse.

Janebro citou, então, como um dos princípios da Doutrina Social da Igreja “o personalismo, que é a dignidade da pessoa humana”.

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O parágrafo 105 do Compêndio da Doutrina Social da Igreja diz sobre o princípio personalista: “A Igreja vê no homem, em cada homem, a imagem do próprio Deus vivo; imagem que encontra e é chamada a encontrar sempre mais profundamente plena explicação de si no mistério de Cristo, Imagem perfeita de Deus, revelador de Deus ao homem e do homem a si mesmo. A este homem, que recebeu do próprio Deus uma incomparável e inalienável dignidade, a Igreja se volta e lhe rende o serviço mais alto e singular, chamando-o constantemente à sua altíssima vocação, para que dela seja cada vez mais consciente e digno”.

Para Marli Pirozelli, a dignidade humana “é o princípio básico” da Doutrina Social da Igreja, “o respeito à dignidade humana, portanto a proteção dessa dignidade”.

A partir daí, disse Janebro, “compreendemos o princípio do bem-comum”. “Para a política, é essencial a visão de pessoas que compreendam o bem-comum a partir da centralidade da pessoa humana”, completou.

Outro princípio é o da solidariedade, “porque somos seres sociais”, então, “eu não vivo sem você e você não vive sem mim”. “Precisamos nos ajudar, estar em constante ajuda mútua para que você consiga se desenvolver o máximo possível, sempre para o bem, sempre para cima, e eu também”, disse a juíza. Para a professora Pirozelli, esse é o princípio “que deve ser colocado em prática” e dá a possibilidade de “estabelecer relações mais fraternas, não só no circulo familiar, mas pensando em termos econômicos, políticos, internacionais”.

Pirozelli também citou o princípio da “participação”, que se reflete na “democracia, porque é o regime capaz de dar vasão, de dar expressão à riqueza do homem, a liberdade, a capacidade de raciocínio”. A professora universitária destacou que outro princípio “bastante importante e pouco conhecido” é o da “subsidiariedade”.

Segundo Regma Janebro, o princípio da subsidiariedade foi tratado “pela primeira vez” na encíclica Quadragesimo anno, do papa Pio XI, publicada em 1931. Diz o documento: “Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer”.

Janebro ressaltou que o princípio da subsidiariedade, portanto, “fala a respeito das comunidades intermédias, de como se deve tratar as pequenas sociedades, como os poderes públicos e políticos devem deixar as pequenas sociedades participarem da vida social e, assim, forjando a democracia”.

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Trata-se, disse Marli Pirozelli, de “um princípio central na Doutrina Social, porque dá à sociedade uma grande participação e chama a sociedade a realizar aquilo que é possível, não esperando do Estado”. “Então, valoriza o homem, as obras sociais, tudo aquilo que a sociedade é capaz de fazer. Ela deve atuar em relação com o Estado, mas não dependente do Estado”, disse.

Para a professora universitária, a aplicação da subsidiariedade pode ser “uma grande contribuição” da Doutrina Social da Igreja para o Brasil, porque “dá às pessoas, à sociedade uma possibilidade de atuação, de escolha, de autodeterminação muito maior do que nós temos hoje”.

“Por exemplo, quando olhamos nosso país, temos milhares de entidades sociais – não só católicas – e que dão solução a problemas que o governo não consegue e que, em geral, dão soluções melhores porque conhecem diretamente o problema, e não são soluções elaboradas em gabinetes, por exemplo. Então, cabe a qualquer governo fortalecer essas entidades, ajudá-las para que desempenhem melhor seus objetivos. Essa é uma posição bastante diferente de muitos partidos no Brasil, que impõe maior estatismo, enquanto a Doutrina Social, ao contrário, valoriza muito mais aquilo que a sociedade já faz”, disse.

A opção preferencial pelos pobres

Marli Pirozelli também citou o princípio da “destinação universal dos bens”, que “é um princípio evangélico e que aparece nomeado em todas as encíclicas sociais”. “Os bens têm uma destinação universal. A Igreja defende a propriedade privada, mas, mais importante do que a propriedade privada é o homem. A propriedade privada não é sagrada, embora seja importante”, ressaltou.

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja diz que “o princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado. A esse propósito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres”.

Trata-se, acrescenta o Compêndio, citando a encíclica Sollicitudo Rei Socialis, publicada em 1987 por são João Paulo II, “de uma opção, ou de uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela concerne a vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, de mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor”.

A juíza Regma Janebro disse que “a ‘opção preferencial pelos pobres’ proposta pela Doutrina Social da Igreja e que também continua sendo proposta pelo papa Francisco é olhando a pessoa do pobre inteira, e não se utilizando do pobre para fazer política, para explorá-lo mais ainda”.

Não se trata de um “mero assistencialismo para que, aquele pobre, tendo recebido aquela migalha de pão, se submeta a mim e àquele partido político, e fique engajado em determinada facção política”, disse. Mas, “passa por emprestar àquela pessoa dignidade para que ela se torne crítica e construtiva na sociedade”.

“Entregar à pessoa humana o mínimo corpóreo, físico, de dignidade é necessário para que ela se encontre com sua dignidade, ou seja, ela precisa tomar um banho, se alimentar, dormir em um local adequado, para que ela possa encontrar dentro dela o próprio Deus uno e trino, a dignidade de que ela é portadora. Então, passa por isso, mas não é só isso, é um caminho”, acrescentou.

Marli Pirozelli disse que a “opção pelos pobres sempre existiu” e “continua”. “É uma opção evangélica”, disse, “não é política”. “Fugir disso é fugir do próprio Evangelho, porque é isso que Cristo fala: eu tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber...”, acrescentou, ressaltando que “as bem-aventuranças estão no cerne da Doutrina Social da Igreja”.

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja diz que “o amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na Sua atenção aos pobres”. “Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa”, completa o documento.

Doutrina Social da Igreja não é ideologia

As duas especialistas destacaram que a Doutrina Social da Igreja não é uma ideologia.

“A ideologia é sempre uma gama de ideias que se volta para um segmento da sociedade em vista do cumprimento dos seus objetivos. A ideologia é sempre parcial, sempre busca um segmento da sociedade, busca proteger, defender as ideias e os ideais de um segmento da sociedade”, disse Regma Janebro.

Segundo Marli Pirozelli, a Doutrina Social da Igreja “propõe critérios para que possamos olhar com clareza, examinar a realidade e, por isso, deixa as pessoas muito mais livres diante das doutrinas e ideologias”. “Então, o meu compromisso não é com o liberalismo, não é com o capitalismo, não é com o socialismo, é com o homem, tal como ele é, que é esse homem que busca Deus, mas que é como o cristianismo, uma religião da encarnação, é o Deus encarnado, é este homem que vive e precisa viver de acordo com essa dignidade que ele tem de filho de Deus”, disse.

Janebro disse que, hoje em dia, “nós estamos sempre em contato com duas ideologias que se alternam, que é o individualismo e o coletivismo. E a Doutrina Social da Igreja não se confunde nem com um nem com outro, porque ela parte da pessoa humana vista como inteira, completa, e não só, mas o homem todo e todo homem, ou seja, ela abrange todas as pessoas com suas diferenças”.

A juíza destacou que a centralidade da pessoa humana não pode ser confundida com o individualismo. “No individualismo, nós destruímos o outro para crescer. Aí vêm as rivalidades, as competições, a violência. E, na centralidade da pessoa humana, nós nos vemos como seres de relação, imagem e semelhança da Santíssima Trindade. Precisamos uns dos outros para realmente nos desenvolver. Essa é a grande diferença da Doutrina Social da Igreja e ela traz princípios, valores, para essa comunhão de pessoas, que somos nós, sociedade humana, e que devemos refletir o amor da Trindade”.

Doutrina Social da Igreja e a política

Respondendo sobre como a Doutrina Social da Igreja pode ser aplicada na prática, sobretudo no contexto político eleitoral do Brasil, a juíza Regma Janebro disse que “primeiro de tudo, precisamos evangelizar, porque as pessoas precisam conhecer a verdadeira antropologia”.

“O mundo se secularizou muito e [se perderam] esses valores da centralidade humana, da pessoa humana, a questão da Santíssima Trindade, e a gente compreender quem sou eu e quem é você, como devo respeitar-te porque tu és filho de Deus tanto quanto eu”, disse.

“Nós precisamos realmente de políticos que amem a política e que não se sirvam dela. A política é um serviço. E, quando você se torna servo das pessoas? Quando você compreende o valor delas diante de Deus”, acrescentou.

A professora universitária Marli Pirozelli disse atribuir “essa confusão nesse período que estamos vivendo” também ao “pouco conhecimento da Doutrina Social da Igreja”. Ela citou, por exemplo, a “junção da religião e da política”, e considerou que esse foi “o grande mal” nas “últimas eleições”.

“O que se viu foram projetos políticos envolvidos por uma embalagem religiosa. E são esferas separadas, a política trata do bem comum. Por isso que posso me relacionar, discutir propostas. Claro, devo ter critérios que são cristãos, mas é outro âmbito. Aí, não cabe aos sacerdotes, cabe aos leigos entrarem e devem entrar mesmo na política. Todos somos chamados a participar de alguma forma. Mas, eu penso que foi algo extremamente danoso para todo o país – não só para os católicos – essa fusão”, disse. “A religião não pode ser usada para fins políticos, nunca. A religião, como a Doutrina Social, me esclarece, esclarece minha consciência para que eu possa participar melhor”, acrescentou.

Por fim, Regma Janebro, ressaltou que “não há mudança duradoura” sem “um amadurecimento do modo de viver das pessoas e de suas convicções”, o que “passa pela evangelização” e “pela conversão do coração”.

“A pessoa humana precisa se encontrar com Deus, consigo e com o outro e se reconciliar, passa por essa reconciliação, por essa vocação à paz do ser humano. Não é pelos grupos, é pela pessoa”, disse. Segundo ela, “a partir daí”, se estabelecem “novos modos de se viver, novas convicções, porque nós estamos juntos. Quando estamos juntos, vivemos em sociedade, fortalecemos o tecido social”, disse.