“Mediante a doação pessoal recíproca, que lhes é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão dos seus seres, em vista de um aperfeiçoamento mútuo pessoal, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas”, diz a carta encíclica Humanae Vitae, do papa Paulo VI, que proibiu os métodos artificiais de controle da natalidade. Mãe de cinco filhos entre um e nove anos, a consultora do sono Narlla Bessoni, 38 anos, disse ter feito “uma grande descoberta” quando conheceu esse documento de são Paulo VI, seis meses antes de se casar.

Bessoni contou à ACI Digital que na época de seu noivado já era católica. Mas, “um dos conselhos que mais recebia” era de que tinha que esperar se “adaptar ao casamento” para “depois ter filhos”. “Era um conselho que eu recebia até de pessoas próximas e maduras na fé. Acabei ouvindo aquilo e pensei que era isso mesmo”, disse.

Seis meses antes do casamento, foi a uma ginecologista católica de Brasília (DF), “na expectativa de fazer exames”. Aquela consulta mudou o seu modo de ver o matrimônio e a abertura à vida. “A primeira coisa que a médica me perguntou foi: ‘e os filhos?’. Eu fiquei pesando qual era a resposta certa. Lá no fundo, minha consciência sabia que tinha algo que não estava muito interessante naquele conceito que eu estava formando”.

A médica, então, “não me examinou, não fez nada, só pegou a Humanae Vitae e fez uma catequese comigo naquela consulta. Eu saí de lá em lágrimas, mas não eram lágrimas de tristeza, eram lágrimas de quem fez uma grande descoberta”, recordou.

A mentalidade que Bessoni estava formando antes de seu casamento é a mesma que muitos católicos têm atualmente. A própria Humanae vitae foi recebida com muita crítica pela hierarquia católica mais progressista de muitos países. O argumento era o de que a proibição da pílula, como se dizia à época, afastaria os casais da Igreja.

Segundo pesquisa do Datafolha de 2022, 51% dos brasileiros são católicos. A taxa de fertilidade no país, porém, é de 1,6 filhos por mulher, segundo dados do Banco Mundial.

O pároco da paróquia São Paulo Apóstolo, em Santos (SP), conhecida nas redes sociais pelo slogan “a paróquia mais fértil do Brasil”, padre Ricardo Marques, ressaltou que esses dados estatísticos “pegam não só os católicos, mas a sociedade como um todo”. Entretanto, disse, “nisso, os católicos deveriam dar um testemunho de luz, de sal da terra, fazer diferente”.

“Mas, muitos estão seguindo o modo de ver a vida e encarar o bem-estar, os seus interesses pessoais, o aproveitar a vida de um modo que não é o aproveitar no sentido cristão. Então, em vez de evangelizarem, muitos católicos estão sofrendo uma influência da sociedade como um todo que tem sido individualista, tem dado valor a outras coisas que não o sentido da família como a Igreja apresenta”, disse o sacerdote à ACI Digital.

Narlla Bessoni, por sua vez, ressaltou que “o magistério da Igreja não mudou, quem mudou fomos nós, nós deixamos de transmitir esses valores, nós mudamos nosso comportamento, mudamos nossa postura, perdemos um pouco do valor que é a família e isso acaba refletindo no modo como nos comportamos”.

O Catecismo da Igreja Católica diz no número 2.366: “A fecundidade é um dom, um fim do matrimônio, porque o amor conjugal tende naturalmente a ser fecundo. O filho não vem de fora acrescentar-se ao amor mútuo dos esposos; surge no próprio âmago dessa doação mútua da qual é fruto e realização”.

A constituição pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo, dedica um capítulo para falar sobre “a promoção da dignidade do matrimônio e da família”. O documento diz que “o matrimônio e o amor conjugal ordenam-se por sua própria na natureza à geração e educação da prole” e que “os esposos sabem que no dever de transmitir e educar a vida humana - dever que deve ser considerado como a sua missão específica - eles são os cooperadores do amor de Deus criador e como que os seus intérpretes”.

O analista de investimentos Renato Odo, 52 anos, é pai de sete filhos entre 15 e 25 anos. Ele disse à ACI Digital ter “a impressão” de que hoje há “uma visão mais materialista da vida”, de que “dá trabalho cuidar de criança, é custoso”. “O menor enfoque que se dá hoje em dia é para a providência e o sobrenatural”, disse.

Renato Odo e família. Arquivo pessoal
Renato Odo e família. Arquivo pessoal

Para o diretor de empresa Sandro Dian, 51 anos e pai de seis filhos entre 16 e 22 anos, “as pessoas começaram a escolher aquilo da Igreja que elas querem acreditar” e “muitas pessoas, dentro do próprio ambiente católico, mais liberais, digamos assim, são mais relaxadas em relação a doutrina da Igreja” sobre a família.

“Infelizmente, acredito que a propaganda é muito forte contra a natalidade”, disse e acrescentou: “ao mesmo tempo, não é suficiente a pregação do clero para confrontar essa propaganda mundial que existe hoje, a contraofensiva da Igreja parece não ser suficiente”.

O padre Ricardo Marques disse que, “em parte, alguns membros da hierarquia da Igreja e também lideranças leigas se calaram. E os motivos pelos quais se calaram são diversos, por exemplo, o ser conivente com esse pensamento mundano a respeito da vida, ou então propagaram ideias contrárias àquilo que a Igreja ensina”.

Respondendo se há uma maior presença de crianças e famílias numerosas em paróquias consideradas mais conservadoras do que em paróquias consideradas progressistas, o sacerdote disse que “a princípio tem uma ligação sim, pelo modo de se encarar a vida”.

“No sentido positivo da palavra, ‘conservador’ é um modo de ver a sociedade, é um modo de ver a ação política do cristão, um modo de encarar a família e o matrimônio, a cultura, um modo de se viver a espiritualidade e a fé cristã dentro e fora da Igreja”, disse o padre. “Então, é um conjunto de coisas. Uma família conservadora não é só gerar muitos filhos, mas ela vai ter uma série de hábitos e uma visão de vida que a caracteriza como conservadora”, disse, ressaltando que faz parte disso a “abertura à vida, que é essa generosidade a Deus, como um profetismo numa sociedade individualista”.

Mas, o padre ressaltou que é preciso “ver cada caso, porque pode haver paróquias conservadores que não tenham alto número de crianças sendo geradas, como pode haver paróquias progressistas que tenham um grande número de crianças”.

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O sacerdote disse que, embora exista o individualismo mesmo entre católicos, ele tem “visto aqui no Brasil alguns movimentos, algumas paróquias, e não são poucas, onde acontece algo contrário a isso”, as famílias são abertas à vida e há diversas famílias numerosas.

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Evangelizar é a solução

Para valorizar cada vez mais as famílias e a abertura à vida, “evangelizar é a solução”, disse o padre Ricardo Marques. “Chamar para o profetismo, valorizar as famílias, acompanhá-las, encorajá-las, ajudá-las mutuamente. Fazer ver que Deus quer o nosso bem, mas o bem-estar não pode ser uma ideologia. Mostrar que há a possibilidade de se viver bem, felizes, com suas dificuldades, mas tendo filhos, vencendo a si mesmos, saindo desse comodismo, egoísmo, individualismo, para acolher novas vidas no seio da vida daquela família”, disse.

A encíclica Humanae Vitae faz diversos apelos a diferentes setores da sociedade em relação a esse tema. Aos padres, diz: “Diletos filhos sacerdotes, que por vocação sois os conselheiros e guias espirituais das pessoas e das famílias, dirigimo-nos agora a vós, com confiança. A vossa primeira tarefa - especialmente para os que ensinam a teologia moral - é expor, sem ambiguidades, os ensinamentos da Igreja acerca do matrimônio”.

O padre Marques contou que, em sua paróquia, busca fazer isso “na homilia e em outros contextos”. “Eu faço [a orientação] no contexto litúrgico-catequético-formativo e também nas redes sociais. Segundo, incentivando a generosidade de vida, a abertura à geração dos filhos dentro daquilo que a Igreja chama paternidade e maternidade responsáveis. Enfim, acolhendo essas famílias, dando tempo a elas. E visitando, é uma coisa muito importante dentro do apostolado, eu visito as famílias, vou à casa delas, rezo com elas. Em contrapartida, as famílias fazem com que as crianças gostem do padre, peçam a bênção ao padre, que o padre faça parte do imaginário dessas crianças”, contou.

O sacerdote reconheceu que, apesar do slogan “a paróquia mais fértil do Brasil”, tem “consciência de que, numericamente, talvez” a paróquia São Paulo Apóstolo “não seja a mais fértil do Brasil, mas há uma generosidade dos casais tamanha que faz com que possamos dizer isso”.

Além disso, esse slogan serve “para incentivar os casais” e também “outras paróquias e padres a fazerem o mesmo”, disse. Segundo ele, já há até “certa disputa” entre os padres nas redes sociais e muitos lhe mandam mensagem dizendo que suas paróquias é que são as mais férteis.

Uma vocação

Sobre a missão de “transmitir e educar a vida humana”, Gaudium et Spes diz que os esposos devem desempenhá-la “com a sua responsabilidade humana e cristã”. “Com um respeito cheio de docilidade para com Deus, de comum acordo e com esforço comum, formarão retamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que preveem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja”. Mas, ressalta o documento, “no seu modo de proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir arbitrariamente, mas que sempre se devem guiar pela consciência, que se deve conformar com a lei divina, e ser dóceis ao magistério da Igreja, que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho”.

“Entre os esposos que deste modo satisfazem à missão que Deus lhes confiou, devem ser especialmente lembrados aqueles que, de comum acordo e com prudência, aceitam com grandeza de ânimo educar uma prole numerosa”, diz o documento.

A consultora do sono Narlla Bessoni disse à ACI Digital que, quando conheceu a doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a abertura à vida, entendeu que Deus a “chamava a ser santa na vocação da família”. “E, se Ele quisesse me dar muitos filhos, ok, se não quisesse, eu tinha que estar aberta a qualquer que fosse o plano de Deus”.

Para o analista de investimentos Renato Odo, “a família numerosa não é uma finalidade em si mesma”. “Não é ter filhos por ter filhos, não é uma questão biológica determinista, é sobrenatural, de uma alma espiritual voltada à santidade, a essência do matrimônio”, disse.

O padre Ricardo Marques considera que “santidade” é uma “palavra que vale a pena destacar” em relação às famílias abertas à vida. “São famílias buscando ser santas. Isso que caracterizaria, sobretudo, esse modo de enxergar a si mesmas e de encarar a vida em todos os seus contextos, é a busca da santidade, mas com suas falhas evidentemente, com suas dificuldades”, disse.

Desafios

O diretor de empresa Sandro Dian disse que, “evidentemente”, uma família numerosa “tem seus desafios”. “E não estou falando de desafios financeiros, porque Deus sempre ajudou bastante. Mas, tem o desafio de educar seis crianças em um mundo completamente laico”, disse.

Sandro Dian e família. Arquivo pessoal
Sandro Dian e família. Arquivo pessoal

“Dá trabalho”, disse Renato Odo, “mas, graças a Deus, a mesma Igreja que recomenda a abertura à vida dá os meios, dá os critérios, diz quais são os princípios para uma boa educação”.

Narlla Bessoni recomendou “três pilares” para ajudar a cuidar de uma família numerosa: a vida de oração, “colocando-se diante de Deus para ser sustentada por Ele”; o estudo, “porque Deus também quer iluminar nossa inteligência para podermos acolher as verdades da fé”; e o “testemunho alegre”.

Para Dian, é preciso manter uma “vida regular de frequentar um ambiente católico, ir à missa, conversar sobre religião, tentar formá-los da melhor forma possível na doutrina da Igreja, porque só se pode crer naquilo que foi ensinado”, além de “buscar bons colégios, tomar cuidado com o colégio que vai colocar o filho para estudar”. Destacou ainda a importância de “dar o exemplo, os pais devem ser exemplo de oração, de família. Se os pais pregam uma coisa, mas fazem outra, não vai funcionar”.