“O concílio Vaticano II foi um divisor de águas na história da Igreja, um momento em que a Igreja buscou se renovar abordando questões relacionadas ao poder e à autoridade”, disse o chanceler da cúria romana, cardeal Peter Turkson, de Gana, na aula inaugural do novo ano acadêmico no Hekima University College (HUC, na sigla em inglês), em Nairóbi, Quênia, no sábado (17).

O cardeal ganês de 73 anos, que foi prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral da Santa Sé de agosto de 2016 até dezembro de 2021, mencionou o concílio Vaticano II (1962-1965), o Sínodo Africano (1994) e o Sínodo da Sinodalidade, que está em andamento desde 2021, como os guias da atuação da Igreja na África. Turkson é um dos cardeais africanos mais próximos do papa Francisco. Com sua saída do dicastério, a Cúria Roma na ficou sem nenhum chefe de dicastério negro pela primeira vez desde os anos 1960.

“O poder não é uma força monolítica; ele se manifesta em várias formas e influencia todos os aspectos de nossas vidas, desde a governança e a sociedade civil até as próprias estruturas que moldam nossa existência diária. As estruturas de governança têm influência significativa sobre as tendências populacionais, liberdades civis e escolhas de estilo de vida”, disse ele na palestra.

Em várias partes do mundo, as estruturas de governança “podem capacitar as comunidades ou reforçar as desigualdades existentes, dependendo de como o poder é exercido”, acrescentou Turkson.

Turkson disse que o exercício do poder pelo papa, como visto na promulgação dos documentos do concílio, não é “autocrático”, mas “sinodal”, envolvendo consulta e colaboração com bispos e a comunidade da Igreja em geral.

Ele disse que, embora o papa tenha o “privilégio único de aprovar e promulgar documentos conciliares”, esse poder é exercido “em vários graus com todas as diferentes pessoas em comunhão”.

Para o cardeal da Cúria Romana, essa abordagem colaborativa reflete o “compromisso da Igreja com a sinodalidade”, segundo a qual decisões são tomadas através de um processo de discernimento que envolve toda a Igreja, não apenas a hierarquia.

“O concílio Vaticano II não foi apenas uma resposta a disputas doutrinárias”, disse o cardeal. “Foi um esforço proativo para renovar e atualizar a missão e as práticas da Igreja”.

Para Turkson, o concílio Vaticano II enfatizou a necessidade de abrir a Igreja ao mundo. Ele citou a expressão do papa são João XXIII ao convocar o concílio de que era preciso “abrir as janelas da Igreja”.

Turkson refletiu sobre a relação entre Igreja e Estado, tópico que, segundo ele, foi profundamente explorado durante o concílio Vaticano II.

O concílio Vaticano II, disse ele, marcou uma “mudança significativa em como a Igreja interage com a sociedade civil, afastando-se do modelo anterior em que a Igreja dependia do poder do Estado para proteger seus interesses. Em vez disso, o concílio enfatizou a importância da liberdade religiosa e da dignidade da pessoa humana, princípios que continuam a moldar as doutrinas sociais da Igreja hoje”.

Turkson falou com apreço do progresso feito desde o concílio Vaticano II e disse que ainda há muito trabalho a ser feito, especialmente na era da digitalização.

“A era digital introduziu avanços sem precedentes, mas também aprofundou o abismo entre os que têm e os que não têm. O poder cibernético é agora um determinante-chave do status econômico e social, e aqueles sem acesso à tecnologia estão sendo deixados para trás em todos os aspectos da vida”, disse ele.

Essa divisão, disse Turkson em sua palestra, pode levar à “marginalização se não for abordada por meio de políticas inclusivas e distribuição equitativa de recursos tecnológicos”.

“Hoje, precisamos recorrer ao mesmo espírito de renovação do Vaticano II ao enfrentar os desafios do nosso tempo”, disse ele. “A ênfase do concílio na colegialidade, no diálogo e na inclusão dos leigos nos processos de tomada de decisão é um modelo de como a Igreja pode seguir adiante”.

Segundo o cardeal, a Primeira Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos, em 1994, e o atual Sínodo da Sinodalidade se baseiam na visão de poder do concílio Vaticano II.

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Ele disse que esses eventos abordaram oportunidades e desafios específicos em contextos africanos em sua defesa de uma abordagem mais inclusiva e participativa ao poder.

“O Sínodo Africano enfatizou a importância de contextualizar as doutrinas da Igreja dentro das realidades culturais e sociais únicas da África. Ele defendeu uma Igreja que esteja profundamente engajada com as realidades de seu povo, promovendo justiça e paz de uma forma que ressoe com os contextos locais".

Em relação ao Sínodo da Sinodalidade, que o papa Francisco estendeu até este ano — a primeira fase foi de 4 a 29 de outubro do ano passado, concluindo com um relatório de síntese de 42 páginas, e a segunda sessão está programada para 2 a 29 de outubro em Roma — ele destacou o foco em “escuta e diálogo” como importante.

“O Sínodo da Sinodalidade convida toda a Igreja a se engajar em um processo de escuta e diálogo, refletindo sobre como podemos construir uma Igreja a que todos sintam pertencer e contribuir”, disse o cardeal. “Ele nos desafia a repensar estruturas e relacionamentos tradicionais para promover uma Igreja mais inclusiva e participativa”.

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Turkson pediu reflexão e engajamento no exame da dinâmica de poder dentro da Igreja e da sociedade.

“À medida que navegamos pelas complexidades do poder no mundo de hoje, devemos refletir continuamente sobre como nossa fé e doutrinas nos guiam nessas dinâmicas”, disse ele. “À medida que a Igreja busca se renovar, ela também pode oferecer um testemunho profético ao mundo desafiando estruturas de poder injustas e defendendo a dignidade de cada pessoa humana”.

“Em um mundo onde o poder é frequentemente usado para oprimir e explorar, a Igreja deve se posicionar como um farol de esperança e uma voz para os sem voz. O legado do Vaticano II, do Sínodo Africano e do Sínodo da Sinodalidade oferece insights valiosos para construir uma Igreja e uma sociedade mais justas e inclusivas”.

O cardeal exortou aos líderes da Igreja e da sociedade para se envolverem em um “reexame crítico da dinâmica do poder”, dizendo: “Este não é apenas um desafio para os líderes da Igreja ou os poderosos da sociedade; é um chamado para cada um de nós examinar como usamos o poder que temos em nossas próprias vidas. Seja em nossas famílias, nossos locais de trabalho ou nossas comunidades, devemos nos esforçar para usar o poder de maneiras que reflitam os valores de justiça, compaixão e bem comum”.

“Que o Espírito de Deus nos guie enquanto buscamos reimaginar o poder em nossa Igreja e em nosso mundo, para que todos possam experimentar a plenitude da vida que Cristo veio trazer .

Início de novo ano letivo para a HUC

Turkson anunciou em sua palestra a abertura do ano acadêmico de 2024/2025 da HUC.

O novo ano acadêmico na HUC tem o tema “HUC@41 para a frente e para cima: uma visão ousada cheia de esperança”.

Em seu discurso durante o evento, o diretor da HUC, padre Marcel Uwineza, jesuíta, disse que o tema do novo ano acadêmico mostra o "compromisso da instituição com a melhoria contínua, a excelência acadêmica e o crescimento espiritual, ao mesmo tempo em que se baseia no legado de seus fundadores e predecessores".

Ao refletir sobre as conquistas da HUC desde que completou 40 anos de existência no ano passado, Uwineza disse que 99% dos objetivos definidos no tema 2023/2024, “Passando do Melhor para o Melhor”, foram alcançados.

“Seguir em frente significa continuar a progredir, construir sobre os pontos fortes daqueles que vieram antes de nós e aprender com os erros do passado. Erros não são fracassos; são oportunidades de crescimento e sabedoria. Esta é a essência da Hekima — sabedoria que vem da experiência vivida”, disse o jesuíta ruandês.