A Santa Sé aprovou a experiência espiritual ligada a Medjugorje e emitiu um julgamento positivo sobre as mensagens, embora indique alguns esclarecimentos e não pronuncie sobre a sobrenaturalidade dos acontecimentos.

O prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, cardeal Víctor Manuel Fernández, apresentou hoje (19) em Roma o documento “A Rainha da Paz”, — aprovado pelo papa Francisco em 28 de agosto —, com o qual confirma o nihil obstat (nada impede) e autoriza aos fiéis aderir a essa devoção.

Cardeal Víctor Manuel Fernández em conferência de imprensa hoje (19). Daniel Ibáñez/ EWTN News
Cardeal Víctor Manuel Fernández em conferência de imprensa hoje (19). Daniel Ibáñez/ EWTN News

“É chegado o momento de concluir uma longa história”

Depois de mais de quatro décadas de investigação às supostas aparições de Nossa Senhora no santuário-paróquia da Rainha da Paz de Medjugorje, na Bósnia-Herzegovina, a Santa Sé diz que “é chegado o momento” de concluir essa “longa e complexa história".

Segundo as novas normas para o estudo das supostas aparições da Igreja, o Dicastério da Santa Sé diz que “foram verificados muitos frutos positivos e não se difundiram no Povo de Deus efeitos negativos ou arriscados”, embora evite emitir um julgamento sobre sua natureza sobrenatural.

O dicastério diz que, embora nas mensagens como um todo existam muitos elementos positivos “que ajudam a colher o chamado do Evangelho”, alguns deles apresentam erros teológicos, contradições, ou “seriam ligadas a desejos ou interesses dos presumidos videntes ou de outras pessoas”.

Os frutos espirituais

A autoridade da Santa Sé usa a expressão “o fenômeno Medjugorje” para se referir aos seus abundantes frutos espirituais, que são produzidos principalmente “no contexto das peregrinações aos lugares dos eventos originários”.

O dicastério menciona o crescente número de devotos em todo o mundo e o grande número de peregrinos que vão renovar a fé, e “as abundantes conversões, o frequente retorno à prática sacramental (Eucaristia e reconciliação), as numerosas vocações à vida presbiteral, religiosa e matrimonial”.

O dicastério fala sobre o “aprofundamento da vida de fé, a prática mais intensa da oração, muitas reconciliações entre cônjuges, e a renovação da vida matrimonial e familiar”.

Diz que houve curas e surgiram obras de caridade para cuidar de órfãos, dependentes químicos e deficientes, que também há grupos de cristãos ortodoxos e muçulmanos e destacada a presença de muitos jovens.

Aspectos centrais das mensagens

O documento diz que a “paz” é elemento central das mensagens supostamente transmitidas por Nossa Senhora e diz que a paz deve brotar da caridade e implica também “amor por aqueles que não são católicos”.

Segundo o cardeal, isso não significa “propor um sincretismo, nem de dizer que todas as religiões são iguais diante de Deus”, embora diga que “todas as pessoas são por Ele amadas”.

O cardeal também diz que nas mensagens “Nossa Senhora não se põe a si mesma ao centro”, e que “a intercessão e a obra de Maria aparecem claramente submissas a Jesus Cristo, como autor da graça e da salvação para cada pessoa”.

Fernández diz que muitas mensagens convidam à conversão, a reconhecer a importância de pedir a ajuda do Espírito Santo e a abandonar “um estilo de vida mundano”.

O prefeito do dicastério para a Doutrina para a Fé diz que as mensagens atribuídas a Nossa Senhora em Medjugorje exortam a não subestimar “a gravidade do mal e do pecado” e a tomar “muito a sério o chamado de Deus para lutar contra o mal e contra a influência de Satanás”.

Fernández fala também sobre o papel fundamental da oração e do jejum, a centralidade da missa, a importância da comunhão fraterna, a busca do sentido último da existência na vida eterna e convida a viver a alegria de seguir a Cristo em comunhão com toda a Igreja.

Esclarecimento sobre algumas mensagens para evitar confusão

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A segunda parte do documento diz que existem algumas supostas mensagens “desviantes” do que foi dito até agora e que por isso é necessário “esclarecer algumas possíveis confusões que podem conduzir grupos minoritários a distorcer a preciosa proposta desta experiência espiritual”.

Em primeiro lugar, o documento diz que alguns deles podem parecer “conexos a experiências humanas confusas, a expressões imprecisas do ponto de vista teológico ou a interesses não totalmente legítimos”, embora diga que esses erros não se devem à má intenção, “mas à percepção subjetiva do fenômeno”.

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O documento diz que, em alguns casos, “Nossa Senhora parece mostrar certa irritação porque não foram seguidas algumas de suas indicações; adverte assim sobre sinais ameaçadores e sobre a possibilidade de não aparecer mais”.

Mas na realidade, diz o cardeal Fernández, outras mensagens, como aquelas em que Nossa Senhora dizia que “o castigo virá se o mundo não se converter” e que “tudo depende da vossa conversão”, dão uma interpretação correta.

Outro exemplo são as mensagens para a paróquia, “nelas Nossa Senhora parece desejar ter um controle sobre detalhes do caminho espiritual e pastoral – pedidos de dias de jejum ou indicações de específicos empenhos para os diversos tempos litúrgicos – dando assim a impressão de querer substituir-se aos organismos ordinários de participação”.

O documento diz que “esta insistência se torna ainda mais problemática” quando as mensagens “se referem a pedidos de improvável origem sobrenatural, como quando Nossa Senhora dá ordens sobre datas, lugares, aspectos práticos e toma decisões sobre questões ordinárias”.

A Santa Sé também define como problemáticas as mensagens que atribuem a Nossa Senhora as expressões “o meu plano”, “o meu projeto” e outras expressões que “poderiam confundir”.

“Na verdade, tudo quanto Maria realiza é sempre a serviço do projeto do Senhor e do seu plano divino de salvação”, diz o cardeal.

O cardeal Fernández diz que “quando se reconhece a ação do Espírito Santo em meio a uma experiência espiritual, isto não significa que tudo aquilo que pertence àquela experiência seja isento de qualquer imprecisão, imperfeição ou possível confusão”.

Um encontro com Maria e não “com os presumidos videntes”

No final do documento, o cardeal Víctor Fernández diz que, embora “isto não implique uma declaração do caráter sobrenatural do fenômeno em questão” e que “os fiéis não são obrigados a crer nele”, a Santa Sé diz que os fiéis “podem receber um estímulo positivo para sua vida cristã através desta proposta espiritual e autoriza o culto público”.

O cardeal fala sobre a “avaliação positiva da maior parte das mensagens de Medjugorje como textos edificantes”, mas isso “não implica declarar que tenham uma direta origem sobrenatural”.

O documento convida as autoridades eclesiásticas dos lugares onde a experiência está presente “a apreciar o valor pastoral e a promover a difusão desta proposta espiritual”.

Tudo isso sem alterar o poder de cada bispo diocesano de tomar decisões prudenciais no caso de existirem pessoas ou grupos que “utilizando-o inadequadamente, atuem de modo errado”.

Por fim, o dicastério para a Doutrina da Fé exorta os que vão a Medjugorje “a aceitar que as peregrinações não são feitas para encontrar-se com os presumidos videntes, mas para ter um encontro com Maria, Rainha da Paz”.

O que acontece em Medjugorje?

As supostas aparições marianas em Medjugorje, Bósnia-Herzegovina, começaram em 24 de junho de 1981. Seis crianças teriam sido as destinatárias das mensagens de Nossa Senhora, das quais três dizem continuar a receber mensagens diariamente.

Em janeiro de 2014, a então congregação – hoje dicastério – para a Doutrina da Fé concluiu um relatório solicitado pelo papa Francisco que, em novembro de 2013, disse que Nossa Senhora “não é chefe dos correios, para enviar mensagens todos os dias”, sem mencionar especificamente Medjugorje.

Em 2017, ao resumir o conteúdo do relatório, o papa Francisco disse que as aparições iniciais são algo que “deve continuar a ser investigado”, enquanto sobre as atuais “o relatório tem as suas dúvidas”.

Francisco também reconheceu que existe um “fato espiritual” e “pastoral” no lugar que “não pode ser negado” e que muitos experimentam conversões, mas disse que “não há varinha mágica para isso”.

Alguns meses antes, o papa nomeou o então bispo de Warszawa-Praga, Polônia, dom Henryk Hoser, “enviado especial” para Medjugorje. Quando ele morreu em 2021, foi substituído pelo monsenhor Aldo Cavalli.

Desde maio de 2019, o papa Francisco autorizou oficialmente a organização de peregrinações, ao dizer que tais peregrinações devem ser “evitadas de criar confusão ou ambiguidade quanto ao aspecto doutrinário”.

Em 2020, 2021 e 2023, o papa Francisco enviou mensagens por ocasião do Festival da Juventude realizado em Medjugorje.