30 de out de 2024 às 09:09
Qualquer pessoa que usa um smartphone provavelmente já passou pelo mesmo fenômeno perturbador: um anúncio colocado de forma incisiva que aparece logo depois de você falar sobre um tópico ou produto.
Será verdade que seu telefone está “ouvindo” suas conversas privadas?
É uma pergunta surpreendentemente difícil de responder — e que gerou incerteza suficiente para que bispos começassem a proibir o uso de smartphones no mais privado dos espaços católicos: o confessionário.
A seguir, o que é preciso saber sobre as preocupações com a privacidade em torno dos smartphones e como uma diocese está respondendo a isso.
Proteger o segredo de confissão
É importante dizer que a Igreja leva muito a sério a privacidade no confessionário.
O sacramento da confissão, também chamado de reconciliação, foi implementado por Jesus Cristo como meio de perdoar pecados. Ele passou a autoridade de perdoar pecados para seus apóstolos, que por sua vez a passaram para os padres de hoje.
O “segredo de confissão” obriga os padres a tratar a privacidade do penitente com a máxima solenidade. De fato, ao longo dos séculos, alguns padres escolheram morrer em vez de revelar o que ouviram. Se um padre revelar qualquer informação que ouviu no contexto da confissão, ele será excomungado da Igreja latae sententiae — automaticamente.
E se outra pessoa ouvir sua confissão, ou você acidentalmente ouvir outra pessoa confessando seus pecados? Bem, nesse caso, a pessoa que ouve a confissão está vinculada ao que é conhecido como o “segredo” e é proibida de divulgar qualquer informação.
É possível que um leigo católico seja excomungado por quebrar o segredo, embora normalmente isso envolva um processo penal em vez de ocorrer automaticamente como acontece com os padres.
Como se pode imaginar, registrar intencionalmente a confissão de alguém também é proibido. A Igreja abordou formalmente esse problema em um decreto de 1988 no qual a congregação (agora dicastério) para a Doutrina da Fé escreveu que qualquer um que registre ou divulgue a confissão de uma pessoa é excomungado da Igreja latae sententiae.
Smartphones — vale o risco?
Há muito se sabe que os “assistentes inteligentes” incorporados em quase todos os telefones modernos, como Siri da Apple, de fato “ouvem” constantemente palavras de ativação como “Hey Siri”, a menos que um usuário desative especificamente essa configuração. (É muito provável que a maioria das pessoas com conhecimento de tecnologia que se preocupam com privacidade já tenha feito isso).
Talvez uma preocupação mais profunda, no entanto, seja a grande quantidade de aplicativos de smartphone que inexplicavelmente pedem acesso total à câmera, ao microfone e à localização de um usuário — apesar de não haver uma necessidade clara de controle sobre esses aspectos do telefone de um usuário. Esses aplicativos poderiam estar “espionando”?
Esse medo voltou à tona no fim do ano passado, quando foi divulgado que a CMG Local Solutions, uma subsidiária do grupo midiático americano Cox Media Group, se gabava abertamente de sua capacidade de ouvir através dos microfones dos dispositivos inteligentes das pessoas para "identificar compradores com base em conversas casuais em tempo real" ao usar inteligência artificial.
O CMG rapidamente recuou ao responder sobre isso, alegando que nunca ouviu conversas privadas de ninguém e não tinha acesso a nada além de "dados agregados, anônimos e criptografados de terceiros usados para veiculação de anúncios".
Apesar de a CMG ter laços com o Google, a Amazon e o Facebook por meio de programas de parceiros de anúncios dessas empresas, todas as três empresas negaram que já fizeram parte do programa “Active Listening” (Escuta Ativa) da CMG. Mas muitas pessoas acharam essas negações pouco convincentes.
Ao navegar online, é possível encontrar várias páginas que dizem que de fato, os smartphones escutam pessoas. (É verdade que muitos deles são publicações de blog de empresas de segurança cibernética que vendem produtos relacionados à privacidade, o que os torna mais ou menos confiáveis, dependendo de como se olha para isso).
A revelação do CMG também acrescenta alguma incerteza adicional à questão.
Então o que dizem as evidências? Segundo um especialista em tecnologia, é complicado.
David Choffnes, diretor executivo do Cybersecurity and Privacy Institute da Northeastern University em Boston, EUA, disse à CNA, agência em inglês da EWTN News, que uma pesquisa que ele fez pessoalmente sugere que a resposta à pergunta sobre saber se nossos smartphones ouvem constantemente conversas privadas é, na maior parte, "não".
Choffnes, que também é professor associado de ciência da computação, fez estudos em 2018 e 2020 para testar a hipótese de que nossos telefones ouvem pessoas constantemente. Choffnes e seus colegas examinaram mais de 17 mil aplicativos ao tentar obter informações sobre seu potencial de vazar conteúdo de mídia.
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Embora a análise tenha revelado alguns riscos de segurança, "não encontramos evidências de que os aplicativos estejam gravando secretamente o áudio dos microfones dos nossos telefones", disse Choffnes.
Os resultados que eles obtiveram ao testar alto-falantes inteligentes como o Amazon Alexa, no entanto, mostram algo diferente. A maioria dos modelos que eles testaram, como mencionado antes, não “acordaram” e começaram a gravar a menos que uma “palavra de ativação” específica fosse falada. Mas às vezes, disse Choffnes, alto-falantes inteligentes podem ser ativados inesperadamente sem o conhecimento do usuário porque eles acham que a palavra de ativação foi falada.
Choffnes disse que seus testes sugeriram que os alto-falantes inteligentes geralmente coletam “apenas alguns segundos de gravação na maioria das vezes, mas às vezes eram dezenas de segundos”.
Quanto à questão de se algum ser humano vai ouvir essas gravações, Choffnes disse que houve casos em que conversas privadas foram disponibilizadas a terceiros que as ouviram com o propósito de melhorar a precisão do assistente de voz para reconhecimento de fala.
“Então há a preocupação de que pessoas reais tenham ouvido conversas reais. Contratualmente, essas conversas não devem ser compartilhadas ou vazadas, mas é claro que contratos não impedem o uso indevido”, disse Choffnes.
“Resumindo, acho que é sempre uma boa ideia ser cauteloso, mas não acho que isso [gravação secreta por smartphones] deva ser uma preocupação primária para usuários de dispositivos inteligentes no momento”, disse.
“Por outro lado, acredito que há um valor incrível em remover a tecnologia de espaços que pretendemos que sejam privados — não apenas para privacidade, mas também para paz de espírito e eliminação de distrações”.
Respondendo sobre sua opinião sobre as políticas que proíbem smartphones no confessionário, Choffnes disse que, como cientista, ele “[apoia] fortemente essa posição” — e não apenas por questões de privacidade.
“Acredito que o valor vai além da privacidade, já que esses dispositivos também servem como distrações constantes que eu esperaria que não fossem bem-vindas em locais de culto”, disse o cientista.
Choffnes disse, no entanto, ser importante ressaltar que “um aplicativo móvel gravando suas conversas geralmente não é sua maior ameaça à privacidade”.
Afinal, já é bem conhecido que empresas de tecnologia podem rastrear o histórico de navegação de seus usuários, uso de aplicativos e localização exata — usando tudo isso para fins de marketing. Até mesmo aplicativos religiosos foram algumas vezes pegos explorando dados de usuários dessa forma, disse.
“Considerando o quão sensível e pessoal é a religião e a atividade religiosa de cada um, acredito que essa seja uma consideração importante para o clero e os fiéis: pense duas vezes antes de instalar aplicativos, tente ler as letras miúdas se puder, [e] não conceda permissões que não sejam necessárias”, disse Choffnes.
E reiterou: “Desligue seu dispositivo quando precisar de privacidade e foco”.
Proibir ou não proibir?
O bispo de Lincoln, Nebraska, EUA, dom James Conley, formalizou uma nova política este ano que proíbe padres de usar seus smartphones no confessionário.
O padre Caleb La Rue, chanceler da diocese de Lincoln, disse à CNA que ouviu falar de várias outras dioceses implementando políticas semelhantes, especificamente por questões de privacidade — medo de "acidentalmente ligar [o gravador] ou, na pior das hipóteses, um padre ligar sem querer para alguém e transmitir a confissão de alguém", disse La Rue.
Mas, o principal motivo para a política da diocese de Lincoln não foram preocupações com privacidade, mas sim o reconhecimento de que o tempo de um padre no confessionário deve ser tranquilo, cheio de oração e livre de distrações, disse o padre La Rue.
O padre disse que dom Conley vinha “fortemente encorajando” os padres a deixarem seus smartphones fora do confessionário desde pelo menos 2014, sem chegar ao ponto de emitir uma proibição formal até este ano.
“Você não vai deixar seu telefone no altar quando estiver celebrando a missa — por que você estaria com seu telefone enquanto ouve confissões?”, disse La Rue, ao acrescentar ser importante combater “a percepção de que o padre está navegando no Twitter enquanto ouve confissões”.
La Rue reconheceu que muitos padres de Lincoln — incluindo ele mesmo — gostavam de usar smartphones no confessionário por razões perfeitamente inocentes, como para verificar as horas e buscar orações ou leituras das Escrituras. Penitentes também costumam levar seus telefones ao confessionário porque têm uma lista de seus pecados nela ou porque têm a oração do ato de contrição aberta para referência.
No fim das contas, porém, La Rue disse que a política é realmente sobre “remover qualquer coisa que possa atrapalhar ou ser um obstáculo” para “um encontro autêntico com Cristo”.
“Trata-se de tentar manter os sacramentos como encontros sagrados com Deus, especialmente a misericórdia de Deus no confessionário”, disse o padre.