O Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano publicou suas razões para condenar o cardeal Angelo Becciu, ao dizer que ele estava envolvido na utilização ilícita de fundos da Santa Sé, apesar de não ter um “objetivo lucrativo”.

O extenso documento de quase 800 páginas detalha não só o seu veredito de dezembro do ano passado sobre a venda de uma propriedade da Santa Sé em Londres, Inglaterra, que resultou em perdas de € 200 milhões (mais de R$ 1,2 milhões) para a Santa Sé, mas também outros crimes que surgiram no que ficou conhecido como “julgamento do século”.

O tribunal condenou o cardeal Becciu por três acusações de peculato e o condenou a cinco anos e seis meses de prisão. O cardeal também foi multado em € 8 mil (mais de R$ 50,2 mil) e permanentemente desqualificado para exercer cargos públicos.

Cinco outros acusados – Raffaele Mincione, Enrico Crasso, Gianluigi Torzi, Fabrizio Tirabassi e Cecilia Marogna – também foram condenados a penas de prisão de duração variável.

O cardeal Becciu, que foi substituto da secretaria de Estado da Santa Sé de 2011 a 2018, está apelando do veredito, e a publicação da decisão do tribunal significa que o seu recurso pode agora prosseguir. As audiências deverão começar no novo ano e durar pelo menos até a metade do ano que vem.

No documento judicial, o Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, liderado por Giuseppe Pignatone, reconstrói não só o que aconteceu a partir de 2018, quando a Santa Sé foi afetada pelas perdas do negócio imobiliário de Londres, mas também o que ocorreu em 2012 e 2013, estabelecendo uma cadeia de crimes financeiros que exploravam os fundos da Santa Sé.

Ele descreve a venda do edifício na Sloane Avenue, em Londres, como uma “operação extremamente arriscada, incompatível com a atitude sempre obediente e prudente do investidor”.

Mas, sobretudo, destaca-se o crime de peculato, que, segundo a lei da Santa Sé, é o “uso ilícito” de dinheiro, independentemente de ter havido lucro ou não.

O cardeal Becciu sempre disse que não havia provas de que tivesse beneficiado da operação, mas o tribunal considerou que a sua autorização para investir num fundo propriedade de Mincione, e que foi utilizado em parte para adquirir uma participação na propriedade de Sloane Avenue, “certamente constitui um ‘uso ilícito’ dos bens eclesiásticos públicos que o então substituto da secretaria de Estado da Santa Sé Becciu tinha à disposição devido ao seu cargo”.

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O tribunal disse estar “muito consciente” dos “limites legais” da utilização desses fundos.

A sentença diz que o crime foi “a vontade de utilizar bens em conflito com os interesses” da Santa Sé.

“Certamente não se pode negar”, disse o tribunal, “que o uso ilícito de bens da Igreja resultou numa vantagem óbvia e significativa para Mincione e seus associados como consequência direta da conduta ilícita levada a cabo” pelo cardeal Becciu, “pela qual não importa que ele não tenha tido a intenção de agir com fins lucrativos, nem que não tenha obtido qualquer vantagem”.

O tribunal disse que nem o ex-secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Tarcisio Bertone, nem o atual secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, estiveram envolvidos no assunto, nem o autorizaram.

O cardeal Becciu também foi condenado por peculato por organizar a transferência de € 125 mil (mais de R$ 785 mil) de fundos da Santa Sé para uma conta controlada pelo seu irmão, Antonio Becciu, que dirige uma instituição de caridade católica chamada Spes Cooperative, na região da Sardenha, Itália. No julgamento, o cardeal admitiu ter transferido os fundos para a conta pessoal do seu irmão e disse que a prática era legal.

A sentença diz que nem os objetivos da instituição de caridade nem o fato do dinheiro ter sido gasto na prática importam, porque “a questão central continua a ser uma: a ilegalidade da doação, especialmente aquela feita a familiares”. Os bens e fundos da Igreja não podem ser doados a membros da família “sem permissão especial dada por escrito pela autoridade competente”.

O tribunal também considerou o cardeal culpado de não se distanciar de Marogna, um especialista em geopolítica que, graças à intermediação do cardeal Becciu, recebeu mais de € 500 mil (mais de R$ 3, 14 milhões) para libertar uma freira sequestrada no Mali, país na África ocidental. Marogna então gastou esses fundos em itens de luxo.

“Apesar da plena consciência da absoluta gravidade dos fatos”, o cardeal Becciu “não se distanciou de Marogna nem nas declarações feitas como acusado, nas quais continuou a apoiar o profissionalismo e a fiabilidade da mulher, sem nunca abordar a questão do dinheiro que ele gastou”, diz a decisão. Marogna foi condenado a três anos e nove meses de prisão.

Apesar das críticas de que as audiências, iniciadas em julho de 2021 e concluídas em dezembro do ano passado, foram conduzidas de forma injusta, a decisão diz que “os princípios do devido processo legal sempre foram respeitados”. O sistema jurídico da Santa Sé, diz o tribunal, “reconhece o princípio de um julgamento justo” e que este “não está em dúvida”.