11 de dez de 2024 às 15:14
As ruas do Líbano se encheram de pessoas comemorando a queda do presidente da Síria, Bashar al-Assad. Bandeiras se agitaram, doces foram distribuídos, fogos de artifício iluminaram o céu e os sinos das igrejas repicaram.
Uma história sombria
Cristãos libaneses têm uma animosidade com o regime da família Assad, que ocupou o Líbano por 29 anos. A ocupação do Líbano por 40 mil soldados sírios no início dos anos 1990 pôs fim à Guerra Civil libanesa, iniciada em 1975.
Síria e Líbano pertenciam ao Império Otomano, aliado da Alemanha e do Império Austríaco na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Derrotado, o império otomano teve seu território dividido entre países que se tornaram independentes, a Inglaterra e a França. O protetorado francês foi encerrado em 1945, Antes de desocuparem a região, os franceses estabeleceram que o território seria ocupado por dois novos países. O Líbano, na região em que os cristãos eram maioria, e Síria, no restante do território.
Com a ascensão de Hafez Assad ao poder através de um golpe militar em 1971, a Síria passou a alegar que a divisão era artificial e o Líbano deveria ser parte da Síria.
A Constituição libanesa, escrita pelos franceses, determinava que o presidente do país seria sempre um cristão e o primeiro-ministro um muçulmano, refletindo a demografia do país. Com a chegada de milhares de palestinos liderados pela Organização para Libertação da Palestina expulsos da Jordânia, os muçulmanos passaram a ser maioria no Líbano e, em 1975, teve início uma guerra civil. A Síria interveio a favor dos muçulmanos.
O impacto das ações do regime sírio deixou uma marca profunda e duradoura. Jornalistas libaneses foram sequestrados, mutilados e executados por se oporem ao regime. Veículos de comunicação foram atacados e fechados à força. Assassinatos políticos eram comuns, e a vida diária de civis era marcada por humilhações, torturas e interrogatórios pela inteligência síria.
Cidadãos libaneses enfrentaram a dura realidade de ter postos de controle sírios dentro de seu próprio país, com cada travessia repleta de perigo potencial. Estudantes foram violentamente retirados das salas de aula e espancados.
Cidades como Zahleh — uma das maiores cidades predominantemente cristãs do Líbano e do Oriente Médio — resistiram a cercos, enquanto bairros de Beirute, capital do país, como Ein el-Remmaneh e Ashrafieh, sofreram bombardeios pesados. Carros-bomba, bombardeios de navios de suprimentos vitais e massacres perpetuaram um clima de medo e repressão.
Quase todas as famílias cristãs libanesas têm uma história de sofrimento na ocupação do Líbano pelo regime da família Assad.
Cidadãos libaneses começaram a divulgar histórias pessoais e familiares na rede social X que falam sobre aqueles dias sombrios e opressivos. A notícia não foi importante apenas para a Síria, mas também para o Líbano, que sofreu muito sob o governo da família Assad.
Jean Bou Assi, ativista cristão libanês de 27 anos de idade que participou de comemorações, falou sobre a notícia da queda do regime à ACI Mena, agência de notícias em árabe da EWTN News.
“Eu queria expressar minha felicidade como um cristão libanês após esse evento histórico”, disse Bou Assi. “ queda do regime de Assad está profundamente ligada a anos de opressão, ocupação e assassinatos que o Líbano suportou sob esse regime”.
“Como cristãos libaneses, nossa história e destino têm sido frequentemente ligados à entidade libanesa. O fato de que a entidade do Líbano perdurou apesar da existência desse regime opressivo é um motivo significativo para comemorar depois de sua queda”.
Justiça feita
Muitos cristãos libaneses veem a queda de Assad como uma forma de justiça sendo feita.
Bou Assi falou sobre a atmosfera, ao dizer que cânticos de “Bachir hay fina” (“Bachir vive entre nós”, em árabe) foram entoados em memória do presidente eleito do Líbano, Bachir Gemayel.
Gemayel foi um importante líder cristão libanês morto num atentado à bomba em 1982.
Bou Assi disse que, para muitos, esse parece ser um momento de justiça para Gemayel.
“Muitos sentem que o presidente Bachir foi finalmente vingado, já que a Síria foi amplamente implicada em seu assassinato”, disse Bou Assi.
“Esse sentimento é reforçado pelo histórico da Síria de dar asilo ao seu assassino, Habib Chartouni, mesmo depois de libertá-lo em 1990. As pessoas agora esperam ação do novo governo sírio, ao esperar que eles [membros do governo] entreguem Habib Chartouni assim que [ele for] identificado”.
Michel Moawad, membro do parlamento do Líbano e fundador do partido Movimento pela Independência, divulgou uma homenagem ao seu pai, René Moawad, que foi presidente do Líbano de 5 a 22 de novembro de 1989, quando foi morto num atentado à bomba.
“Durma bem, pai, pois a justiça do Céu foi feita na terra, mesmo que tenha demorado um pouco”, disse Moawad.
Nayla Tueni, diretora-executiva do An-Nahar, um dos jornais mais influentes do Líbano, publicou o artigo “Para Gebran e todos os mártires: a justiça do destino” para homenagear seu pai, Gebran Tueni, jornalista morto em um atentado à bomba em 2005 por criticar a família Assad.
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A MTV, um grande canal de televisão libanês, foi fechada pelo regime de Bashar al-Assad em 2002, dando a eles um motivo para celebrar a queda do regime esta semana.
“O regime do tirano caiu, mas a MTV permaneceu”, escreveu a MTV em publicação na rede social X.
Um vislumbre de esperança
Nomes de cidadãos libaneses que se acredita que estejam em prisões sírias se tornaram um ponto focal na mídia libanesa, gerando esperança de reencontros com entes queridos.
Desde 1975, mais de 17 mil libaneses desapareceram, e não há uma contagem definitiva de quantos ainda estão vivos nas prisões de Assad. No entanto, as famílias divulgam ativamente publicações sobre seus parentes desaparecidos, mantendo a esperança de seu retorno.
Um dos detidos, mantido preso por 32 anos por causa de sua afiliação com as Forças Libanesas — partido cristão anti-Assad e movimento de resistência — foi libertado e devolvido à sua família no Líbano. Muitos outros esperam ansiosamente por mais reuniões como essa e o retorno de outros detidos.
Os libaneses também estão esperançosos de que a crise de refugiados, que pressiona o país, comece a diminuir.
“Com a guerra na Síria reacendendo, eu temia que o Líbano enfrentaria um fluxo ainda maior de refugiados, somando-se aos 2 milhões de refugiados sírios já acolhidos — um fardo que sobrecarregou a demografia, a economia e a infraestrutura do Líbano”, disse Bou Assi.
“Muitos sírios citaram o medo de maus-tratos pelo regime de Assad como uma razão para não retornarem para casa. Agora que Assad se foi, essa justificativa não se sustenta mais. O governo libanês estará em uma posição mais forte para lidar com a crise, implementando medidas que incentivem os refugiados a retornarem à Síria”.
Os eventos recentes também deixaram o grupo terrorista islâmico Hezbollah sem um importante aliado e apoiador. Como um apoiador político significativo, fornecedor de armas e facilitador das operações do Hezbollah por meio de rotas de contrabando de fronteira — particularmente no tráfico da droga captagon — a saída de Assad marca uma mudança fundamental.
“Com o fim do apoio da Síria e o Hezbollah enfraquecido por sua última guerra com Israel há dois meses, as tentativas de rearmar o grupo serão significativamente prejudicadas. Esse isolamento vai interromper a rede logística e política do Hezbollah, forçando-o a uma posição mais precária dentro da dinâmica de poder mutável do Líbano”, disse Bou Assi.
Esse novo isolamento do Hezbollah é visto como uma oportunidade estratégica por seus adversários.
Samir Geagea, líder das Forças Libanesas, o maior partido cristão do Líbano, falou sobre suas frustrações de longa data e as esperanças atuais ao canal MTV.
“Nos últimos 50 anos, o regime de Hafez e Bashar al-Assad foi o maior obstáculo para a construção de um estado no Líbano. Não importa como a situação na Síria será depois de Assad, é impossível que seja pior do que Assad. Não sei o que nos espera com as novas autoridades sírias, mas não há nada pior do que Assad”, disse Geagea.
Geagea pediu que o Hezbollah entregue suas armas ou as venda, ao pedir um esforço coletivo para construir um Estado no Líbano. Geagea escreveu em publicação na rede social X: ''Para o Hezbollah, o jogo acabou.''
Com a mudança da situação, também há esperanças de melhores relações entre os dois países marcados por uma história brutal.
''Embora ainda seja cedo para prever o futuro, continuo otimista de que o Líbano e a Síria podem virar a página em direção a um novo capítulo de amizade", disse Bou Assi.
"Isso pode marcar o fim da agressão síria ao Líbano, desde negar a existência do Líbano como uma entidade independente até sua ocupação militar e facilitar o armamento do Hezbollah. A queda do regime de Assad pode fechar a porta para esta era sombria, abrindo caminho para um relacionamento melhor baseado no respeito mútuo''.
Alegria em meio à incerteza
Embora haja alegria pelo fim do regime brutal, o medo e o ceticismo persistem.
O processo de transição continua incerto, e o Líbano deve estar vigilante contra a potencial infiltração de forças de inteligência e comandantes pró-Assad por meio de travessias ilegais.
O Líbano ainda não está livre do conflito, pois o cessar-fogo temporário foi planejado para durar 60 dias. O Líbano também deve lidar com seu próprio desafio significativo: o Hezbollah.
Os cristãos libaneses podem não saber o que vai acontecer na Síria ou mesmo no Líbano, mas eles estão cientes das atrocidades cometidas contra eles pela família Assad. Por enquanto, é hora de se alegrar.