Cinco anos depois do incêndio que a privou de seu pináculo, a catedral de Notre Dame reabriu suas portas em uma celebração especial no último sábado (7).

As imagens do monumento iluminado na escuridão da noite, o som do grande sino da catedral rompendo o céu depois de cinco anos de silêncio, os segundos de suspense quando o arcebispo bateu com a sua cruz no portal central, os cantos celestiais elevando-se sob as abóbadas da catedral, a ressurreição gloriosa do grande órgão... tantos elementos que gritaram ao mundo e aos 40 chefes de Estado que chegaram para a ocasião, que o cristianismo não disse a sua última palavra.

Mas embora a virtude da esperança obrigue os cristãos a trabalhar a todo vapor e a ver o mundo com o otimismo de um construtor de catedrais, temos o direito - correndo o risco de sermos chamados de estraga-prazeres - de lamentar que esse grande momento na história da Igreja das últimas décadas foi sequestrado pelo mundo do entretenimento americanizado com um concerto fora de lugar e, mais ainda, pelo governo francês e por seu atual presidente Emmanuel Macron, que nos últimos anos ofenderam os católicos de várias maneiras.

Muitos comentaristas católicos na França e em outros lugares elogiaram a eficiência do governo francês, dono da catedral e responsável pela restauração, em manter a sua promessa de reconstruí-la em cinco anos. Mas embora seja legítimo destacar o savoir-faire das centenas de artesãos franceses, dos EUA e de todo o mundo que trabalharam dia e noite para cumprir esse prazo, não devemos esquecer que o incêndio de 2019, cujas causas ainda não foram reveladas, poderia, segundo muitos especialistas, ter sido evitada se as medidas de preservação do edifício, exigidas há anos, tivessem sido tomadas a tempo.

O presidente Macron, que aproveitou a cerimónia de reabertura para polir a sua imagem no contexto de uma longa série de crises institucionais, fez um discurso solene com referências diretas à esperança cristã que soou como uma homenagem do vício à virtude, parafraseando o moralista fgrancês François de La Rochefoucauld (1613-1680).

Na verdade, o homem que disse que somos “herdeiros de um passado maior do que nós”, que “o significado e a transcendência nos ajudam a viver neste mundo” e defendeu a “transmissão”, é também o homem que, há apenas alguns meses, conseguiu que o direito de matar uma criança no útero entrasse na Constituição francesa, medida que descreveu como “orgulho francês”. Encorajado pelo impacto internacional dessa medida, ele rapidamente anunciou um projeto de lei sobre o fim da vida que introduziria gradualmente a eutanásia e o suicídio assistido no país.

Foi também Macron quem, em julho deste ano, elogiou a cerimônia de abertura da Olimpíada Paris 2024, que ridicularizou abertamente o ato central da liturgia cristã instituído na Última Ceia. O diretor artístico da cerimônia confirmou ao jornal americano The New York Times que o presidente da França leu e aprovou previamente o roteiro, descrevendo-o como uma “grande história de emancipação e liberdade”.

O comportamento do presidente da França ao dar a si mesmo duas vezes o privilégio de falar dentro de Notre Dame é chocante para qualquer pessoa familiarizada com a história francesa e a sua longa tradição de separação estrita entre Igreja e Estado.

Na verdade, os meios de comunicação disseram que o presidente da França pretendia inicialmente entregar as chaves de Notre Dame ao chefe da Igreja local, diante das câmeras. Mas, em nome do mesmo princípio sacrossanto do secularismo, que não é uma via de sentido único, o arcebispo de Paris, dom Laurent Ulrich, recusou-se a fazer isso e deu a ele um palanque na esplanada da catedral.

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Macron driblou a proibição em 29 de novembro, ao fazer um discurso na restaurada Notre Dame, antes do arcebispo de Paris, por ocasião de uma última visita de alto nível à obra. Ele estava acompanhado por Anne Hidalgo, prefeita de Paris, ateia declarada que recentemente anunciou um projeto para substituir escolas católicas privadas por moradias para “habitação social”.

Há apenas um século, esse flagrante desrespeito pela autoridade religiosa teria sido inconcebível. Até agora, apenas o rei Filipe, o Belo, tinha falado na catedral, ainda em construção, nos primeiros Estados Gerais da França em 1302, mas num contexto de conflito aberto com o papa Bonifácio VIII. Até Napoleão Bonaparte, que reformou a catedral depois da revolução francesa para ser coroado imperador num contexto altamente anticlerical, submeteu-se à autoridade da Igreja, pelo menos simbolicamente.

Quando o general Charles de Gaulle entrou no edifício no dia da libertação de Paris, no final da Segunda Guerra Mundial, foi para agradecer a Deus pela vitória, fazendo eco sob as abóbadas do monumento a um clamoroso canto Te Deum que passou para a história.

Junto com a legítima euforia internacional causada pelas esplêndidas imagens da joia restaurada da cristandade medieval, a forma secularizada como a catedral voltou ao culto público ilustrou uma realidade mais profunda para a Igreja na França: a de uma perda total de autoridade.

Por uma notável coincidência, essa celebração ocorreu apenas um mês depois do livro Métamorphoses Françaises (Metamorfoses francesas), do sociólogo francês Jérôme Fourquet, ser publicado. Fourquet analisa incansavelmente a “grande mudança ideológica” que completa o declínio do catolicismo na França. Segundo Fourquet, a verdadeira consciência dessa perda de influência remonta ao Manif pour tous (movimento marcado por uma identidade católica que tentou, sem sucesso, impedir que uniões homossexuais fossem consideradas casamento entre 2012 e 2013), e tornou-se mais evidente com a constitucionalização do aborto este ano.

Fourquet acredita que nada vai mudar este estado de coisas sem um grande despertar, uma mobilização em massa dos católicos franceses, a quem recentemente encorajou a “recuperar a autoconfiança”.

E para isso podem contar com um patrimônio que permanece totalmente insuperável. Na verdade, cerca de 40 chefes de Estado viajaram a Paris para assistir à reabertura de Notre Dame. Muito provavelmente não foi simplesmente para prestar homenagem ao presidente Macron por ter superado o desafio de reconstruí-la em cinco anos. Será que eles teriam se aglomerado em tal número na pirâmide do Louvre, ou mesmo na torre Eiffel? É razoável duvidar disso, embora poucos admitam que esse marco da Idade de Ouro do Cristianismo seja mais capaz de unir as pessoas do que qualquer outro monumento.

Poucos vão admitir que a catedral diz mais sobre a nossa civilização e identidade ocidentais do que todas as criações do humanismo ateu juntas. Os católicos não deveriam ter medo de lembrar ao mundo que quase perdeu um monumento que muitos não valorizavam.

No entanto, é possível encontrar consolo no fato da imagem de Nossa Senhora, milagrosamente intacta depois do incêndio, ter sido na verdade a primeira a entrar na catedral recentemente restaurada, em 15 de novembro, zombando das lutas pelo poder terrestre.