A queda do presidente da Síria, Bashar al-Assad, depois de 24 anos no poder desenha um cenário de incerteza para os cristãos sírios. Bashar, que sucedeu seu pai Hafez al-Assad, foi derrubado por uma coalizão armada liderada pelo grupo radical muçulmano sunita Hayat Tahrir al-Sham (HTS) em 8 de dezembro.

“Sob os regimes de Hafez al-Assad e Bashar al-Assad, a Igreja na Síria viveu uma situação complexa, caracterizada por certa tolerância religiosa, mas com limitações impostas pelo contexto político autoritário”, disse à ACI Digital o bispo eparca dos Greco-Melquitas, que tem jurisdição sobre os fiéis greco-melquitas católicos de todo o Brasil, dom George Khoury.

A Igreja Greco-Católica Melquita é uma Igreja oriental católica particular sui iuris . Com a Igreja Latina e outras 22 Igrejas particulares, ela está com comunhão plena com Roma e reconhece a autoridade do papa.

A Igreja Melquita segue o rito litúrgico bizantino e usa o grego e o árabe como línguas litúrgicas. A principal catedral melquita é a catedral Nossa Senhora da Dormição em Damasco, catedral da Síria.

Nascido em Tartus, Síria, em 14 de fevereiro de 1970 dom George Khoury é bispo eparca de Nossa Senhora do Paraíso, em São Paulo (SP) desde 22 de setembro de 2019.

Al-Assad estava no poder desde 2000, quando assumiu o poder depois da morte do pai, Hafez al-Assad, que governou o país por quase 30 anos, desde 1971.

Ao tomar o poder através de um golpe militar, Hafez al-Assad adotou o modelo de secularismo autoritário do Baath, partido nacionalista árabe que, durante um período governou o Egito, a Síria e o Iraque.

A Constituição da Síria declarava o islã como religião oficial, mas o Estado garantia liberdade religiosa para outras comunidades, incluindo cristãos. A convivência entre as diversas comunidades religiosas foi incentivada, mas sob estrita vigilância do governo. As lideranças cristãs, como as de outras comunidades religiosas, eram cuidadosamente monitoradas e, em alguns casos, cooptadas para apoiar o regime.

Os próprios Assad eram alauítas, membros de uma seita islâmica minoritária da Síria, cuja maioria dos muçulmanos é sunita.

Os cristãos, representando cerca de 10% da população na época, ocupavam posições de destaque na administração pública, educação e economia. Eles sempre tiveram um papel importante gerenciando escolas e hospitais que servem a toda a população.

Dom Khoury diz que havia certa liberdade para construir igrejas e organizar eventos religiosos, desde que os cristãos não se envolvessem em atividades políticas ou desafiassem o governo. Qualquer crítica ao regime, seja de líderes religiosos ou leigos, era duramente reprimida. A Igreja evitava conflitos com o governo, ao adotar uma postura de neutralidade política.

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Dom Khoury diz que Bashar manteve a política de tolerância religiosa de seu pai, mas com maior abertura à globalização e ao diálogo inter-religioso no início de seu governo. Os cristãos continuaram a ter liberdade de culto e mantiveram posições na sociedade do país.

Com o início da guerra civil na Síria em 2011, o regime de Bashar passou a se apresentar como um protetor das minorias religiosas, incluindo os cristãos, diante da ameaça de grupos extremistas.

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Para o eparca melquita do Brasil, isso era um disfarce para manter a minoria cristã sob controle. “Ou seja, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, diz o bispo.

A guerra causou a destruição de igrejas e o deslocamento forçado de comunidades cristãs. A Igreja na Síria recebeu apoio de redes internacionais, especialmente da Santa Sé e de organizações cristãs, para lidar com os desafios impostos pelo conflito.

Tanto Hafez quanto Bashar al-Assad buscaram cooptar lideranças religiosas cristãs para legitimar seus governos e projetar uma imagem de pluralismo, diz dom Khoury. A Igreja beneficiou-se de estabilidade e proteção, mas ao custo de sua autonomia política.

“Sob Hafez, havia mais estabilidade, mas o autoritarismo restringia iniciativas autônomas da Igreja. Sob Bashar, a guerra civil desafiou profundamente a Igreja, ameaçando sua sobrevivência física e cultural em algumas regiões”, diz dom Khoury.

Segundo o bispo, a Igreja viveu uma relação de tolerância pragmática com o governo sob ambos os regimes, mas sempre com a ameaça de controle político. Igrejas construídas há séculos foram destruídas ou abandonadas, como a igreja de São Simeão Estilita, próxima a Aleppo, uma das mais antigas do mundo. Bizantinos construíram a igreja no século V a.C.

Antes da guerra, os cristãos representavam cerca de 10% da população síria. Hoje, estima-se que mais de metade deles tenha deixado o país devido à violência e falta de perspectivas de futuro. Tanto o regime de al-Assad quanto grupos rebeldes foram acusados de atacar igrejas e destruir locais de importância religiosa e cultural. Apesar das dificuldades, igrejas locais e líderes cristãos mantiveram a presença cristã em várias partes da Síria.

Muitos melquitas no Brasil apoiam iniciativas de ajuda humanitária e fazem lobby por proteção aos cristãos na Síria. Organizações religiosas melquitas frequentemente promovem campanhas para arrecadação de fundos ou conscientização sobre a situação dos refugiados. Entre os melquitas brasileiros, também há divisões. Alguns apoiavam o regime por sua política de proteção às minorias e outros criticam o regime por violações de direitos humanos.

“De modo geral, tanto os cristãos na Síria quanto os melquitas no Brasil enfrentam um dilema entre a defesa de sua segurança física e identidade cultural, e o desejo por reformas que garantam maior liberdade e justiça na Síria”, concluiu o bispo.