A Santa Sé divulgou ontem (27) uma nova “nota” abordando as implicações éticas e antropológicas da inteligência artificial (IA), destacando as distinções entre inteligência humana e artificial e dando diretrizes para que o desenvolvimento e o uso da IA ​​sirvam à humanidade e defendam a dignidade humana.

O documento Antiqua et Nova (Antiga e Nova), de cerca de 30 páginas, foi assinado pelo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé da Santa Sé, cardeal Víctor Fernández; e pelo prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação da Santa Sé, cardeal José Tolentino de Mendonça.

O documento começa estabelecendo uma estrutura cristã para entender a inteligência humana como um dom de Deus, enfatizando a natureza relacional e de busca da verdade da humanidade dentro de uma existência corporificada. A tradição cristã considera o dom da inteligência um aspecto essencial da criação dos seres humanos “à imagem de Deus”, diz o documento.

Os sistemas modernos de IA funcionam por meio do reconhecimento de padrões, e a maioria é limitada a certas tarefas — embora o documento diga que a “inteligência geral artificial” (AGI, na sigla em inglês), é uma meta declarada de muitos desenvolvedores de IA e pode ser alcançada em breve. Tal sistema seria capaz de “operar em todos os domínios cognitivos e executar qualquer tarefa dentro do escopo da inteligência humana”.

No entanto, mesmo em suas formas mais avançadas, a IA ainda opera com base em algoritmos e lógica computacional, diz o documento, o que significa que lhe faltam as dimensões criativas, espirituais e morais do pensamento humano.

“A inteligência humana não é primariamente sobre completar tarefas funcionais, mas sobre entender e se envolver ativamente com a realidade em todas as suas dimensões; ela também é capaz de insights surpreendentes. Como a IA não tem a riqueza da corporeidade, da relacionalidade e da abertura do coração humano à verdade e à bondade, suas capacidades — embora aparentemente ilimitadas — são incomparáveis ​​com a habilidade humana de compreender a realidade”.

A IA em si é um produto da inteligência humana, não uma forma igual ou superior de inteligência, diz o documento.

IA e sociedade

O documento fala sobre várias armadilhas potenciais do desenvolvimento da IA, como a possibilidade de interrupção da força de trabalho; o enfraquecimento dos relacionamentos humanos face a face; a degradação da privacidade à medida que novos sistemas de vigilância de IA são desenvolvidos; a introdução de informações imprecisas ou tendenciosas no contexto da educação, da mídia ou da sociedade em geral; e até mesmo, como alertou a Santa Sé, a possibilidade de implantar de IA em guerras que tenham o poder de tirar vidas diretamente.

Diante desses desafios potenciais, o documento pede uma estrutura ética forte para orientar o desenvolvimento e a implantação da IA, guiada pelos princípios da Doutrina Social da Igreja. De modo geral, o desenvolvimento da IA ​​deve sempre respeitar e promover a dignidade intrínseca de cada ser humano.

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O documento diz que, em contraste com uma visão “funcionalista” da IA ​​que é fortemente focada nas habilidades da IA, o valor e a dignidade de uma pessoa, em contraste, são baseados em sua criação à imagem de Deus, não em suas habilidades cognitivas ou realizações tecnológicas. O desenvolvimento da IA ​​deve respeitar esse fato e promover a dignidade intrínseca de cada ser humano, independentemente de sua condição, escreveram os prefeitos do Dicastério para a Doutrina da Fé e do Dicastério para a Cultura e Educação da Santa Sé .

Os prefeitos disseram também que a IA deve ser usada para servir ao bem comum, promover o desenvolvimento humano integral, e não só para ganho individual ou corporativo. Ela deve ser usada, tanto quanto possível, para reduzir a desigualdade e não reforçar os desequilíbrios de poder existentes, escreveram.

Os cardeais disseram que os sistemas de IA não podem ser autorizados a correr soltos sem supervisão humana e que os humanos, como agentes morais, têm responsabilidade pelo design, propósito e consequências dos sistemas de IA. E, segundo o conceito católico de subsidiariedade, a tomada de decisões relacionadas à IA deve ser descentralizada e envolver vários níveis da sociedade, permitindo um amplo espectro de contribuição, escreveram dom Fernández e dom Tolentino.

O desenvolvimento da IA ​​deve nos estimular a “uma apreciação renovada de tudo o que é humano”, talvez por um interesse renovado no estudo das humanidades, diz também o documento.

Verdadeira sabedoria

O documento conclui discutindo o que o papa Francisco chamou recentemente de “sabedoria do coração” — a percepção de que a verdadeira sabedoria não se trata só de aprender conhecimento ou dominar habilidades técnicas, mas sim de integrar o intelecto humano com a capacidade das pessoas dada por Deus de apreciar os valores da verdade, da bondade e da beleza.

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A “sabedoria do coração” é apresentada como um contraponto aos perigos de uma mentalidade puramente tecnológica — o que o papa Francisco chamou de “paradigma tecnocrático” — que enfatiza a eficiência e o controle sobre a dignidade humana e os relacionamentos humanos, rejeitando a ideia de que a tecnologia sozinha pode resolver todos os problemas.

“Como 'a perfeição de uma pessoa não é medida pelas informações ou conhecimentos que ela tem, mas pela profundidade de sua caridade', a maneira como incorporamos a IA 'para incluir os menores de nossos irmãos e irmãs, os vulneráveis ​​e os mais necessitados será a verdadeira medida de nossa humanidade' ”, concluem os prefeitos.

“A ‘sabedoria do coração’ pode iluminar e guiar o uso centrado no ser humano dessa tecnologia para ajudar a promover o bem comum, cuidar da nossa ‘casa comum’, avançar na busca da verdade, fomentar o desenvolvimento humano integral, favorecer a solidariedade e a fraternidade humanas e conduzir a humanidade ao seu objetivo final: a felicidade e a plena comunhão com Deus”.

O lançamento do documento do Dicastério para Doutrina da Fé da Santa Sé segue as novas “Diretrizes sobre Inteligência Artificial” para o Estado da Cidade do Vaticano que o papa Francisco publicou no início do mês.