“Assim como o futebol está para o Brasil e todo menino já nasce sabendo chutar uma bola, aqui em São João, a cultura mais forte é a cultura do sino”, disse José Januário da Silva Neto, o Janu, 26 anos, à ACI Digital.

Janu é sineiro da igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei (MG), e estará neste fim de semana no combate dos sinos, uma tradição de Quaresma na cidade. Amanhã (28), sábado (29) e domingo (30), às 12h15, 15h e 18h, do alto das torres da catedral basílica Nossa Senhora do Pilar, da igreja Nossa Senhora do Carmo e da igreja São Francisco de Assis, sineiros disputam qual igreja fica mais tempo tocando seus sinos.

“O combate é um jogo de paciência entre sineiros”, disse Janu. “A última igreja a parar ganha”.

Paciência e resistência física. O sino São Pedro de Alcântara, na igreja de São Francisco, pesa três toneladas e o sino Imaculada, 2,1 toneladas. Para tocá-los, Janu e seus companheiros se arriscam na beirada de uma torre de aproximadamente 33 metros de altura. Na igreja do Carmo, as torres têm cerca de 28 metros de altura e, dos sinos, o Simão Stock pesa aproximadamente 750 kg e o São João da Cruz, 850 kg. Na catedral do Pilar, a altura das torres é de aproximadamente 26 metros e o sino Passos pesa cerca de 850 kg.

Segundo Janu, a tradição remonta a meados do século XIX. Naquela época “não tinha limite de tempo, os sineiros ficavam por horas” tocando. Depois, foi estabelecido um limite de cerca de uma hora para o combate.

Agora, no entanto, os sineiros começam “a resgatar isso, de não ter esse limite de tempo”.

“Se deixar, a gente emenda um horário ao outro”, disse Janu.

O combate dos sinos faz parte da programação dos Passos. Geralmente, a celebração dos Passos acontece na Semana Santa. Mas, em São João del-Rei, acontece no quarto domingo da Quaresma. Na sexta-feira, a imagem de Nossa Senhora das Dores é levada para a igreja do Carmo. No sábado, a imagem do Senhor Bom Jesus dos Passos é levada para a igreja de São Francisco. E, no domingo, acontece a procissão do encontro.

O combate dos sinos nesses três dias segue as mesmas igrejas. Na sexta-feira, combatem a catedral do Pilar e a igreja do Carmo; no sábado, a catedral e a igreja de São Francisco; e, no domingo, as três igrejas.

Sineiros tocando o sino em São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)
Sineiros tocando o sino em São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)

Janu explicou à ACI Digital que existem diferentes toques do sino. “O repique é feito com o sino parado e vamos badalar o sino usando a corda e o gancho” e é feito com “todos os sinos daquela torre”. Há também o dobre, que “é o movimento” e “pode ser em um sino só, como é o caso de um dobre para a missa, ou pode ser como no caso do dobre fúnebre, em que são dobrados todos os sinos da torre”. “Junto ao dobre, vem o que chamamos de revirada, que é o ato de fazer o dobre, porém, numa velocidade a mais, aceleramos a velocidade do sino”.

Segundo Janu, São João del-Rei “tem a cultura de calar os repiques durante a Quaresma”. “E no combate é basicamente isso: são os sinos revirando e os sineiros combatem quem revira por mais tempo”. Em cada torre das igrejas, sineiros vão se revezando para revirar o sino. “Em um horário, pode dar 20 pessoas em uma torre. Em outro horário, pode dar menos, pode dar mais”, disse.

Janu disse ainda que, “toda vez que vai dobrar o sino, tem que executar a catada, que é quando o sino vai se balançar até conseguir ficar a pino, porém, o sineiro vai junto”. “Ele vai acompanhando todo esse processo, chega lá fora, até a beirada e volta”. Segundo ele, quem assiste tudo “lá de baixo”, e “geralmente é turista”, “pensa que vamos cair, é aquele êxtase”.

Além dos toques dos sinos, o combate conta com uma forma específica de comunicação entre os combatentes, panos vermelho e branco. “Como algumas igrejas são próximas e outras não, não conseguimos estabelecer contato visual, nem por sinal, nem nada. Hoje em dia tem a tecnologia, mas tempos atrás não tinha. Então, o modo de se comunicar com o sineiro de outra torre era com os panos”, disse Janu.

Segundo ele, o pano vermelho “é para incitar mais o combate, como se dissesse: pode vir que estamos prontos”, já o branco “é uma trégua”. Mas, o sineiro contou que, na prática, o pano branco é muitas vezes usado “para ludibriar o outro”, como se fosse parar, mas de repente volta. “Acontece muito isso de fingir que foi embora, fingir que parou. É como se fosse o golpe. É um combate mesmo”, disse.

A “terra onde os sinos falam”

A tradição dos sinos em São João del-Rei é tão forte que a cidade é conhecida como a “terra onde os sinos falam”.

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“O sino sempre teve esse papel de mensageiro, sempre foi um anunciante. E aqui em São João del-Rei não foi diferente”, disse Janu. Segundo ele, “a linguagem” utilizada pelos sineiros na cidade, “os repiques e as modalidades de toque vieram em grande maioria dos escravos, dos músicos e boa parte também da orquestra”.

Essa linguagem, disse, “foi se aprimorando ao longo do tempo, criando novas maneiras de informar o que está acontecendo”. Foram sendo criados “toques para nascimento, para unção de enfermo, para chamada de padre, para chamada para a missa, para enterro, quando o defunto é homem, quando é mulher... Assim, foi se criando essa cultura de divulgar tudo através dos sinos”, disse.

Sineiro de São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)
Sineiro de São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)

Embora seja possível “encontrar a cultura do sino” em muitas cidades do Brasil, disse Janu, “você não vai encontrar igual a São João, com uma cultura de repique que tem uma característica tão limpa, sonoramente falando, e ao mesmo tempo musical”.

Segundo ele, os diferentes toques são reconhecidos pelas pessoas que vivem nos arredores das igrejas, por “quem é natural da cidade, pelo pessoal mais velho”. Essas pessoas conseguem reconhecer até “o som dos sinos”, pois “todos os sinos têm sons diferentes”.

Mas, como a cidade abriga muitos universitários e pessoas vindas de fora, o reconhecimento da mensagem transmitida pelos sinos “tem se tornado cada dia um pouco mais difícil”.

Mesmo assim, a tradição se mantém, é passada de geração em geração e encanta os meninos desde pequenos.

Meninos na torre da igreja acompanhando o toque dos sinos. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)
Meninos na torre da igreja acompanhando o toque dos sinos. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)

Aos oito anos, Janu começou “a frequentar a torre”, diz. Na época, ele era coroinha, mas os sinos falaram mais alto e decidiu se dedicar ao ofício de sineiro. “Por volta de uns 14 anos, eu já sabia executar a maioria de todos os toques. Porém, eu ainda não tinha corpo o suficiente, força o suficiente, para executá-los em todos os lugares”, disse.

Como os outros sineiros da cidade, Janu aprendeu tudo “na base do ouvido”. “Não existe um curso. Conforme vamos frequentando, vamos pegando um pouco da malícia do repique para cada movimento e cada movimento traz um som”.

Janu disse que “basicamente 99%” dos sineiros são católicos, o que é importante, porque a cultura dos sinos está “ligada à vida da Igreja”. Além de transmitir as mensagens por meio de seus toques, os sinos “também participam das festividades da Igreja”. “Em quase todas as celebrações, o sino está presente não só avisando, mas também durante elas”, disse, citando por exemplo as missas e as procissões. “Aqui, as procissões são abrilhantadas pelo sino, pela banda, pelas orações e cânticos dos fiéis”, disse.

“Em alguns casos”, destacou Janu, “em algumas liturgias, é necessária até entender um pouco do latim, ou pelo menos saber o que está sendo falado naquele momento”.

Sinos batizados

Outra tradição “bem antiga” em relação aos sinos, contou Janu, é o fato deles serem batizados e receberem um nome. “Sempre quando chega um sino à cidade para ser colocado na torre, faz-se uma cerimônia, uma missa especial, os fiéis participam. É feita toda a cerimônia de benzer o sino, batizá-lo. Ele recebe um nome que geralmente é de algum santo pertencente à ordem da igreja na qual ele será colocado”, disse.

Além disso, quando o sino é elevado até a torre, “o outro sino já presente na torre faz aquela festa, toda aquela alegria para a chegada de um novo mensageiro na cidade”.

Sineiro repica o sino em São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)
Sineiro repica o sino em São João del-Rei. José Januário da Silva Neto (Arquivo pessoal)

Como o sino é batizado e tem nome, ele também pode ser responsabilizado. Segundo histórias contadas na cidade de São João del-Rei, um deles, o sino Jerônimo, chegou a ser preso.

“Essa história aconteceu por volta de 1915”, conta Janu. “Um sineiro, João Pilão, tinha o costume de ingerir bebida alcoólica e subir para a torre. Certo dia, ele estava na torre da igreja São Francisco de Assis durante uma procissão que chegava, mas já estava alcoolizado e sozinho na torre executando o dobre. De repente, ele deu uma bobeada, foi atingido pelo sino e já caiu desfalecido”. As pessoas da procissão estranharam porque “o sino parou do nada”. Quando subiram a torre para verificar, encontraram o sineiro morto na torre da igreja.

“Na mentalidade deles na época, acharam que o melhor a ser feito seria descer o sino e fazer um julgamento para ele, porque o sino era batizado, ele tinha um nome, ele era uma pessoa. Então, fizeram o julgamento, condenaram o sino a ficar alguns anos acorrentado. Então, ele ficou ali na igreja, acorrentado, para não ser tocado e para não ser tirado dali. Cumpriu a sua pena”, disse Janu, destacando que “esse sino, hoje em dia, já não existe mais”, porque foi desmanchado depois de sofrer uma rachadura.

“Essa é uma história de fato, de fato. Dizem ser uma lenda pelo tempo que tem, mas, de fato, chegou a acontecer mesmo”, garantiu o sineiro.