CARACAS, 2 de out de 2019 às 11:04
O Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas (Venezuela), publicou seu terceiro artigo sobre o Sínodo da Amazônia, que será realizado entre os dias 6 e 27 de outubro, no Vaticano, para explicar por que não se deve ordenar idosos casados nem mulheres.
“Como compaginar sacerdotes casados nas Missões com os celibatários na diocese vizinha? E depois: essa abertura disciplinar: estaria limitada apenas à Amazônia? Não enfraqueceria o sacerdócio celibatário no resto do mundo? Há muitas perguntas sérias sobre a ordenação desses bons idosos casados. E talvez não resolva os problemas da situação atual. Não acho que seja conveniente nem útil”, afirma o Cardeal em seu artigo enviado à ACI Prensa, agência em espanhol do Grupo ACI.
A seguir, o artigo completo do Cardeal Urosa:
O SÍNODO DA AMAZÔNIA
COMENTÁRIOS AO INSTRUMENTUM LABORIS (3)
ALGUMAS PROPOSTAS PASTORAIS
Cardeal Jorge Urosa Savino, Arcebispo Emérito de Caracas, 1º de outubro de 2019
Esta terceira parte dos comentários sobre o Instrumentum Laboris do Sínodo Pan-amazônico estuda a terceira parte do texto, ou seja, "Igreja profética na Amazônia, desafios e esperanças". E especialmente algumas das propostas pastorais.
Uma observação importante: chama a atenção que as respostas e indicações das consultas feitas aos fiéis da Amazônia falem pouco da situação especificamente religiosa, pastoral e eclesial das missões amazônicas. Da mesma forma, assombra que a maioria dos comentários sobre o Sínodo, feitos recentemente por eclesiásticos vinculados à sua preparação, fale apenas ou principalmente sobre o aspecto ecológico e os problemas de ordem social e econômico dos povos amazônicos. Como se isso fosse o mais importante para a Igreja. Falam pouco sobre o aspecto religioso e espiritual da missão da Igreja de anunciar a Palavra e comunicar os dons de Cristo à humanidade. O Instrumentum Laboris também dá essa impressão. No próprio Sínodo, isso deverá ser corrigido, e destacar a centralidade da ação evangelizadora e pastoral para a revitalização da Igreja na Amazônia.
Outra observação interessante: o Instrumentum laboris parece pensar que toda a população amazônica é indígena, originária. Não é verdade, pelo menos na Venezuela. Em nossa região amazônica, nas dioceses já estabelecidas – não nos vicariatos –, há uma maioria de criollos, venezuelanos de raça branca ou mista e afro-venezuelanos que não têm essa cultura indígena. O mesmo acontece com Manaus e Belém, no Brasil.
OPÇÃO PELOS POBRES E INCULTURAÇÃO
O documento acertadamente recorda a opção pelos pobres como linha de ação e exigência da Igreja latino-americana e amazônica. Bento XVI disse em Aparecida que “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza” (Discurso de Sua Santidade na inauguração da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe 3).
Por outro lado, o texto destaca a missão evangelizadora da Igreja como algo realizado ao longo dos séculos e que é vigente e urgente (115). E para realizá-la hoje na Amazônia, o I.L. propõe uma conversão pastoral e missionária (119). Esta, entre outras coisas, implicaria "captar aquilo que o Espírito do Senhor ensinou a estes povos... a fé no Deus Pai-Mãe Criador... a relação viva com a natureza e a ‘Mãe Terra’ (fazendo uma distinção entre essas duas ideias?), os ritos e as expressões religiosas, e o sentido sagrado do território... (121). Também propõe reconhecer a espiritualidade indígena como fonte de riqueza para a experiência cristã (123b). São expressões que, para aqueles que não conhecemos seu sentido, parecem muito estranhas e alheias à fé católica sobre a realidade criada e sua relação com o ser humano. E parecem evocar um tipo de sincretismo cristão-animista. Isso seria inaceitável. Nesse sentido, esperamos que os Padres sinodais esclareçam isso e discirnam bem as propostas realmente conformes à fé católica na criação e na natureza. Na mesma linha de conversão pastoral, fala-se de inculturação da fé, mas dando um valor quase absoluto às culturas originárias, e não valorizando nem propondo a evangelização da cultura. Esta é a necessária transformação da existência humana e da vida religiosa, social, cultural e familiar dos povos através do Evangelho de Cristo e da moral bíblica, cristã e católica. É um ponto que precisa ser revisto e melhorado.
Estas propostas do I.L. se juntam à sugestão de uma liturgia inculturada, isto é, adaptada à mentalidade e tradições dos povos, como sugere o documento Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II (37-40). Neste campo, teremos que ver em particular durante o Sínodo o que pode ser sugerido em termos de uma "descentralização saudável da Igreja" (126 d). Claro está, sempre preservando a integridade da fé, a natureza de cada sacramento e as condições e requisitos para a participação viva e frutuosa na sagrada liturgia.
ORGANIZAÇÃO, SERVIÇOS PASTORAIS E SACERDÓCIO
Em sua busca de novos caminhos para a vida da igreja, o Instrumentum laboris se interessa pela organização da comunidade e dos serviços pastorais (I.L. 127). Nesta linha, propõe reconsiderar a ideia de que o exercício da jurisdição (poder de governo) deve estar vinculado em todos os âmbitos (sacramental, judicial e administrativo) e de maneira permanente ao sacramento da ordem. Em outras palavras, parece propor que essas funções possam ser exercidas nas comunidades indígenas por diversas pessoas, não ordenadas sacramentalmente.
Aqui, novamente, teremos que ver exatamente o que essa proposta significa. Porque as faculdades religiosas, espirituais e pastorais dos Bispos e Presbíteros não são funções diversas de um operador pastoral, de um "funcionário". São a expressão do Ministério e Ofício (Munus) sacerdotal do Bispo e presbítero, estes configurados a Cristo Sumo e Eterno Sacerdote pelo sacramento da ordem. Elas são ações de Cristo, que se faz presente no bispo e presbítero com ordenação sacramental. São faculdades conferidas e concedidas no sacramento da ordem. Essas faculdades não são atividades cumulativas ou separadas atribuídas a uma pessoa por um documento ou um ato jurídico ou administrativo, uma nomeação... qualquer. Essas faculdades pastorais, sacramentais, judiciais e magisteriais são a atuação do representante sacramental de Cristo sacerdote, profeta e rei. O sacerdote é sacramento-pessoa de Jesus, um homem configurado pela ordenação sacerdotal a Cristo, bom pastor e sumo e eterno sacerdote, a serviço e benefício do povo santo de Deus. Essas faculdades – exceto a administração material – não o governo pastoral – não são funções que possam ser delegadas isoladamente. São conferidas apenas com a ordenação sacramental. Por isso, uma concepção funcionalista do sacerdócio não é correta. Não corresponde à concepção do sacerdócio como participação nos três "Munera Christi": sacerdote, profeta e rei.
ORDENAÇÃO DE IDOSOS CASADOS
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Na aspiração muito necessária e desejável de uma maior presença pastoral, ou seja, de uma presença pastoral e não de uma visita (128), também é proposta a ordenação sacerdotal de pessoas idosas (I.L. 129 a, 2). Um detalhe: o texto não usa o termo conhecido e popular de "viri probati", "homens de virtude comprovada". Utiliza a expressão "pessoas idosas" e deixa aberta então a possibilidade da ordenação sacerdotal da mulher. Não vamos considerar esta segunda possibilidade, já abertamente descartada diversas vezes por São Paulo VI e São João Paulo II e também recentemente pelo Papa Francisco. Escutemos São João Paulo II diretamente:
4. “Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal que deve reservar-se somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e universal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia atualmente em diversos lugares continua-se a retê-la como discutível, ou atribui-se um valor meramente disciplinar à decisão da Igreja de não admitir as mulheres à ordenação sacerdotal. Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”. (São João Paulo II, Carta Apostólica Ordinatio sacerdotalis, 1994).
Por isso nos limitaremos aqui a refletir sobre a possibilidade de conferir o presbiterado a homens idosos casados.
O texto afirma claramente a vigência da disciplina do celibato sacerdotal como uma dádiva para a igreja. Muito bem. De fato: imitando Cristo, celibatário e esposo da Igreja, os presbíteros de rito latino e muitos também das igrejas orientais, escolhemos livremente consagrar nossas vidas a Deus e à Igreja, renunciando ao matrimônio e comprometendo-nos religiosamente com Deus à vivência da castidade perfeita. Algo que convém perfeitamente com a natureza do sacerdócio, que é a configuração a Cristo, sumo e eterno sacerdote e bom pastor.
Está claro que o tema de ordenar idosos casados é um assunto de disciplina, de conveniência religiosa e pastoral, e exige pesar prós e contras. Não é um dogma de fé. Sem dúvida poderiam ser ordenados. Mas seria preciso pensar que tipo de sacerdotes seriam. Uns de segunda classe? Como os famosos "sacerdotes missa e panela" do passado? Como se preparariam? Os diáconos permanentes requerem uma preparação séria, geralmente pelo menos 4 anos. E depois, não andam sozinhos. Geralmente agem em colaboração com algum bispo ou algum sacerdote. Como seria essa preparação? E qual seria o seu ministério, simplesmente celebrar os sacramentos? De quem dependeriam, ou seja, quem seria seu superior imediato? Não haveria conflitos entre esses sacerdotes idosos-só-sacramentalistas e os párocos ou vigários paroquiais? Como seria seu regime econômico ou administrativo, ou seja, quem os sustentaria em dioceses ou vicariatos de extrema pobreza?
Por outro lado, ordenar sacerdotes casados em comunidades indígenas não os coloca em uma espécie de terreno fechado. As terras da missão são vizinhas de Dioceses estabelecidas. E os idosos sacerdotes casados não deixariam de se locomover para outros lugares. Como compaginar sacerdotes casados nas Missões com os celibatários na diocese vizinha? E depois: essa abertura disciplinar estaria limitada apenas à Amazônia? Não enfraqueceria o sacerdócio celibatário no resto do mundo? Há muitas perguntas sérias sobre a ordenação desses bons idosos casados. E talvez não resolva os problemas da situação atual. Não acho que seja conveniente nem útil.
Acho que a solução para a atenção às comunidades é que haja uma maior atividade evangelizadora e santificadora, para fortalecer a vida de fé nessas comunidades cristãs sem sacerdotes. A evangelização e a pastoral vocacional dão resultados a médio e longo prazo. Já vimos isso na Venezuela. Não há dúvida de que o trabalho de nossos queridos missionários foi e é magnífico, sacrificado, digno de todo respeito, reconhecimento e louvor. Por isso que devemos estudar por que motivo a pregação evangélica e o trabalho missionário não produziram mais frutos nas comunidades indígenas, incluindo as vocações indígenas ao sacerdócio ou à vida consagrada. Contudo, ordenar sacerdotes a bons idosos de função apenas litúrgica dará o impulso necessário à vida da Igreja? Há muitas perguntas que devem ser respondidas. Além disso, o tema dos idosos casados chamados ao sacerdócio é muito importante e grave para que um Sínodo regional o resolva para a Igreja universal.
OUTROS MINISTÉRIOS
Outra proposta do texto para fortalecer o trabalho pastoral na Amazônia é também um ministério oficial para a mulher (129 a, 3). Atualmente, em toda a Igreja, a mulher já exerce vários ministérios: leitoras, servidoras do altar na Eucaristia, ministras extraordinárias da Comunhão, catequistas. E também exercem outras funções diversas de grande importância nas escolas, na administração diocesana ou paroquial, nos meios de comunicação eclesiais e nos centros de saúde da Igreja, e como assistentes sociais, etc. Teremos que ver o que aqueles que propõem este novo ministério oficial têm em mente. E o Papa Francisco já se pronunciou contra o diaconato feminino. Vamos ver o que acontece no Sínodo...
A vida consagrada é, com justiça, muito bem apresentada no Instrumentum Laboris (I.L. 129 d). Com grande entrega e dedicação, as irmãs e irmãos da vida consagrada estão fazendo um belo trabalho na Amazônia. Que continuem e reforcem o aspecto especificamente evangelizador e religioso de seu trabalho, para promover e revitalizar a vida da Igreja naquele território.
CONCLUSÃO
Na véspera do Sínodo, elevamos nossas orações ao Senhor, para que derrame seu Espírito Santo abundantemente sobre os Padres sinodais. Eles terão a tarefa de indicar os novos caminhos para a revitalização da Igreja, bem como para proteger os povos da Amazônia e seu território, e para uma correta conversão ecológica. Tudo isso é muito importante.
Para isso, este Sínodo deve abraçar os pontos fortes do Instrumentum Laboris, e necessariamente superar suas falhas e omissões, para promover um trabalho cada vez mais evangelizador e revitalizante da Igreja, não apenas no Amazonas, mas em todo o mundo.
Que a Santíssima Virgem Maria, mãe de Deus e nossa mãe, abençoe e incentive todos os queridos e esforçados missionários da Amazônia. Bispos e sacerdotes, diáconos, consagrados e apóstolos leigos, eles e elas. Muito obrigado por este trabalho tão belo e sacrificado! Que continuem em frente na belíssima missão apostólica da Igreja de anunciar Jesus Cristo com força e entusiasmo a todos os habitantes da Amazônia. Ele é o único em cujo nome temos a redenção e o perdão dos pecados (Cf. Col. 1,14), Amém.
Confira também:
Cardeal venezuelano analisa o Instrumentum Laboris do Sínodo da Amazônia https://t.co/QO2Xxmbl6r
— ACI Digital (@acidigital) September 24, 2019